Uma sentença da 5ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba, assinada no último dia 11 de agosto, pôs fim à ação de improbidade nº 0004126-41.2015.8.16.6000, ajuizada pelo Ministério Público contra autoridades que integram (ou integraram) o governo do Estado. Esse julgamento tem a ver com fatos ocorridos no Centro Cívico no início da tarde de 29 de abril de 2015, quando tropas da Polícia Militar reprimiram com violência um protesto de servidores públicos. Para o Poder Judiciário, a operação se deu na mais absoluta normalidade e nos termos da lei. Segundo a interpretação judicial, os culpados pelo cenário de guerra construído pelos agentes da “ordem” foram os trabalhadores contrários a um projeto de lei que transferia ao Executivo verbas do fundo de Previdência pública. Tudo para recompor as finanças controladas pelo governador Richa e seus auxiliares. A estes, a Justiça concedeu, com a generosidade de praxe, um atestado de bom comportamento e responsabilidade administrativa.
Para quem, como eu, testemunhou o que aconteceu naquele dia, a decisão causa mal-estar, embora não surpreenda. Ao tomar por referência um inquérito policial militar que chancelou, sem nenhuma reserva, a conduta dos policiais e seus comandantes, a decisão da 5ª Vara da Fazenda Pública afirmou a prevalência da ficção jurídica sobre a realidade vivida pela maioria da população. Condenou os manifestantes – ou a massa de intransigentes, ou os indivíduos sediciosos e rebelados, ou a turba irresignada, ou o contingente de revoltosos, agressores, contestadores e invasores, como foram chamados – pela “subversão de limites”. Com isso, deu a paz social por restabelecida.
Haveria muito a dizer e pouco a acrescentar de novo sobre esse desfecho. Prefiro, então, reproduzir o que me ocorreu nos dias seguintes ao conflito. Deixo o texto abaixo, de 6 de maio de 2015, em sua versão original. Dele, retirei apenas a última frase: “Resta esperança, portanto”. Imagino que a supressão seja a medida mais indicada para os tempos de agora.
Confira, aqui, a íntegra da sentença da 5ª Vara da Fazenda Pública.
As balas de borracha, os gases tóxicos, a violência e a humilhação que agrediram milhares de trabalhadores no Centro Cívico, em Curitiba, formam uma trama que não tem nada de mistério. O dia 29 de abril [de 2015] presenciou, além da truculência policial e da loucura de um governo autocrata, o trágico desabamento das aparências. As instituições públicas chegaram ao fundo do poço. De mãos dadas, Executivo, Legislativo e Judiciário, despidos da capa de neutralidade que embeleza seus discursos e impregnados do cinismo com que costumam negar a realidade que os cerca, mostraram o que são, de fato. E a imagem que ficou é próxima do horror.
As autoridades estaduais, com raríssimas exceções, ocupam um espaço ideológico comum, em que pontuam a defesa de privilégios, a troca recíproca de favores e a mais completa insensibilidade social. Essa visão de mundo, individualista e tacanha, parece ter inspirado o “salve-se quem puder” que marcou as entrevistas captadas nos dias seguintes ao massacre. Para o governo e para o parlamento, as tropas militares agiram no estrito cumprimento de uma decisão judicial. Seus dignos representantes esqueceram-se, apenas, de um detalhe: foram eles mesmos que solicitaram as liminares que o Tribunal generosamente lhes deu, e que impediram que a multidão concentrada nas ruas exercesse o direito fundamental de se locomover e se reunir de forma pacífica.
Nessa confusão toda, a Justiça cumpriu papel determinante – e triste. Autorizou, num fim de semana, que as ruas onde estão as sedes dos poderes fossem isoladas militarmente, numa ação preparatória do massacre que viria alguns dias depois. Com isso, reforçou as interpretações técnicas que amparam a sua vasta jurisprudência, majoritariamente contrária ao exercício do direito de greve e próxima dos interesses dos patrões, estejam eles na iniciativa privada ou na administração pública.
Quando a pressão já se tornava insuportável, poucos minutos antes do delírio autoritário que transformou o Centro Cívico em praça de guerra, uma nova decisão judicial, de viés pretensamente conciliatório, “permitiu” que sindicalistas entrassem na Assembleia Legislativa. Com um palavrório rocambolesco, em que despontam conceitos como “indisciplina coletiva”, “comoção social” e “permanência ordeira” nas dependências do plenário interditado, o despacho magnânimo, amplamente divulgado pelo Tribunal de Justiça em sua página na internet, se mostrou inócuo. Em seu conteúdo, não restabeleceu o caráter público da sessão parlamentar que aprovaria o projeto de mudanças na Previdência contestado pelos servidores; na prática, com os manifestantes sufocados por tropas de choque, cães ferozes e explosivos disparados de helicópteros, simplesmente não existiu. Mesmo assim, uma nota oficial, entre tantas outras emitidas pela burocracia em seus diferentes níveis, tentou dizer que a cúpula judiciária agiu nos limites das suas atribuições, sem ter nada a ver com a crise. Tudo se passaria, então, como se Justiça e política fossem coisas que não se misturam.
O jogo de empurra jogado pelos respeitáveis senhores da lei e da ordem teve ares de farsa. Vai prosseguir, certamente, sem chegar a lugar nenhum, porque a responsabilidade objetiva pela tragédia é do Estado que eles todos personificam. A base operacional da violência, não por acaso, encontrou abrigo no Palácio Iguaçu, na Assembleia Legislativa e no Tribunal de Justiça. Desses três prédios partiram as balas e as bombas que atingiram manifestantes desarmados. Foi nesses três prédios que a soldadesca se aboletou, ladeada por cães e equipada com escudos, tanques, cassetetes e ódio.
Os artífices da repressão, partes integradas a um conjunto de harmonia macabra, deveriam pedir desculpas à população pela vergonha que protagonizaram. Não o farão, eis que agora se recolhem ao descanso e à meditação, empenhados em preservar suas imagens ilibadas. Esse sumiço não surpreende. Lá, do fundo do poço, ecoa o velho recado: o poder não abandonará os seus patrocinadores e os seus modos peculiares de vida.
Mas o poder não é eterno. As imagens recorrentes dos manifestantes feridos expressam a dureza do mundo real, distante e distinto do conforto aveludado dos gabinetes. Imediatamente, servem para dizer àqueles que não perderam a sensibilidade que tudo tem que mudar: o seu governo, os seus deputados e os seus juízes.