Foi há bastante tempo, num dia qualquer do começo da década de oitenta. Eu vinha pela estrada, sozinho e sem pressa, quando avistei o ponto desejado, a xícara enorme pendurada numa torre modesta de tijolo aparente – a torre do chá Tupi. Era onde eu deveria estacionar. Dei o sinal e saí da pista, sempre com os olhos naquela peça de louça estilizada a evocar uma sonoridade que me impressionou desde a primeira viagem, quando nós dois nos encontramos, a peça e eu, eu ainda criança. Gostava de repetir o nome da marca estampada na xícara improvável, repetir com as variações que a minha cabeça inventava: chá tupi, chatupi, patropi, sapoti, pororó, piriri, xatupi, xaropi… Essa brincadeira produzia, sem que eu percebesse, uma imensidão de poemas concretos, aleatórios e ingênuos. E eu voltava para o banco de trás do carro, satisfeito e pronto para seguir.

Naquele dia do começo da década de oitenta, quando o motorista solitário era eu e a tarde se preparava para o descanso, parei para esticar as pernas antes de me largar no espaço acolhedor do restaurante, mesa colada no muro baixo que dava para o lado de fora, num quintal cheio de árvores. Feito o pedido, o garçom, um tipo de gravata borboleta e paletó impecável, me atendeu e serviu um pão crocante com bife de carne macia coberto por uma porção generosa de queijo. E uma xícara – sim, a xícara – de café preto, e não de chá Tupi.

Enquanto o lanche supremo me ocupava, notei que, entre uma viga de sustentação e o parapeito do muro, uma pequena aranha se dedicava a construir sua teia, num desenho lógico, circular e perfeito. À medida que tecia, se esticava sorrateiramente na direção de um inseto desatento caído na armadilha da morte. Aquilo chamou minha atenção. Admirei tudo: a engenharia da obra, o esforço da transformação fiandeira, a beleza arquitetônica da seda iluminada pelos raios derradeiros do sol.

Permaneci entretido mais do que havia planejado, submerso no encantamento que me provocou a aranha no desempenho do seu ofício. Eu era testemunha de um destino de Sísifo. Toda aquela estrutura, a curiosidade me levou a pesquisar mais tarde, estava condenada a ser destruída antes do amanhecer. A artesã caprichosa devoraria seu castelo lentamente, necessitada de repor a energia consumida no trabalho exaustivo, para erguer outro castelo durante o dia. E assim, em gestos repetidos, até o fim da vida.

Nada disso me ocorreu naquele momento, porém. Fiquei apenas com a beleza arrebatadora da cena. E com o desejo aflito de conversar com a aranha, transmitir-lhe admiração, o reconhecimento pela luta proletária, a minha solidariedade de classe. Antes de qualquer diagnóstico de loucura, confortei-me com a realidade histórica dos poetas e suas exaltações, e seus versos não raro estranhos ao cotidiano dos mortais. Imediatamente, pensei em Neruda e na ode à cebola, com suas “escamas de cristal”. E em Fernando Pessoa, na versão Álvaro de Campos, que compôs a “ode triunfal”, sobre a modernidade implacável e suas lâmpadas elétricas, suas engrenagens e suas máquinas. E em Vinicius de Moraes, que homenageou o mês de maio, o “maio em flor”.

Nem foi preciso ir adiante na resenha poética. Decidi que faria a minha ode, e pronto! Não à teia, o produto do trabalho, mas à aranha, a operária. Gastei mais alguns minutos de contemplação, em silêncio absoluto, até fechar a conta e ir embora, a noite já instalada por inteiro. Passaram-se dias, meses, anos, muitos deles. Como seria de se esperar, nunca escrevi a ode, esmagado pelo cotidiano racional e frio dos homens de ternos cinzas que me acompanharam, personagens reais saídos da ficção de Sloan Wilson.

Voltei àquele lugar, um punhado de tempo transcorrido, para o ato de despedida. Manobrei outra vez o carro, encaixando-o numa vaga imaginária, como se estivesse num pátio cheio de gente. Só que não havia nada ali, a não ser os escombros da torre da xícara, destruída parcialmente. Nem sinal do restaurante, ainda menos do garçom que me servia pão com bife e café quente.

O sopro do vento na minha cara, em dueto com os barulhos da rodovia, me convidou a ir embora. Liguei o motor e ajustei o volume do som para escutar um pouco de música. Estava lá a voz de George Harrison, que perguntava insistentemente, em forma de gemido: “isn’t a pity”? E eu respondia para mim mesmo, olhar fixo na paisagem em movimento: “sim, é uma pena”!