Célio Heitor Guimarães é figura única, inconfundível. Só ele, mesmo, virginiano convicto, para fazer o que fez: diagramar um livro inteiro, detalhadamente ilustrado, e encomendar a uma gráfica alguns poucos exemplares da obra concluída, para distribuição restrita a seus amigos. Diagramar é maneira de dizer, expressão pequena para se referir a um trabalho tão meticuloso. No folheto explicativo que acompanha o livro, uma informação impressionante (apenas para quem não conhece o seu autor): “Eu mesmo fiz a pesquisa, coletei dados, escrevi o texto, reuni as ilustrações, diagramei e montei a edição, no sistema word do computador”.
Pois o que o Célio exibe, a partir da aplicação do sistema word, é uma profusão de imagens e textos que se harmonizam, explicam e encantam. Preciosidade pura, abrigada em 160 páginas cheias de cores e movimento. Nelas, a história dos quadrinhos vem desde o começo, há mais de 120 anos, com o personagem Yellow Kid, que eu não imaginava existir. Assim como desconhecia os muitos artistas que se dedicaram à tarefa de dar vida e enredo a personagens fantásticos, criaturas sobrenaturais e romances improváveis.
Os quadrinhos talvez ainda careçam de reconhecimento, o que é uma bruta injustiça. Está certo o Célio, que não se preocupa muito com os que tentam reduzi-los a “coisa de criança”, no sentido de manifestação cultural menor. “O significativo”, diz, “é que eles [os quadrinhos] existem, já faz algum tempo, e divertem para valer, grandes e pequenos”. E dá a receita: “Precisam, apenas, ser lidos sempre com espírito infantil, aberto e desarmado, para que deles se extraia o que têm de melhor”. Para provar sua tese, o Célio oferece dados que, para mim, que fui gentilmente presentado com uma dose desse trabalho monumental, confirmam impressões que sempre tive, mas que não sabia traduzir.
Os quadrinhos fizeram parte da minha infância. Eu os lia compulsivamente, hábito que se estendeu até o início da fase adulta. Separei-me deles sem motivo aparente, sem perceber. Aos poucos, as pilhas de “revistinhas” que habitavam os quartos da minha juventude ficaram menores, até que desapareceram. Restou a lembrança dos detalhes dos desenhos, dos diálogos curtos sustentados por “balões”, das capas, das edições especiais. Enxergava-me a montar aqueles pequenos volumes, a distribuí-los, a criar aventuras inéditas.
Sucumbi, porém, aos padrões estéticos da modernidade – da televisão, primeiro, e depois das redes sociais, que dominam tudo. Ou nem tanto assim. O livro do Célio, que devorei com curiosidade enorme, no final do ano passado, fala de arte e comunicação, coisas que não morrem, ainda que golpeadas pelo vazio da tecnologia. Há motivos para se perder a paciência, sem dúvida. “Desesperados com a queda das vendas, eles [os editores] enlouqueceram”, reclama o autor. “Aboliram a retícula e passaram a produzir gibis pelo computador; repaginaram os heróis, descaracterizando-os e extraindo-lhes a essência”. Mas haverá quem resista, os teimosos dos quadrinhos. Formo com eles, e me integro, ainda na condição de aprendiz, à legião dos inconformados, como a cumprir uma dívida com o meu passado.
O livro do Célio Heitor se chama HQ: a arte que está no gibi. Guardo-o com carinho, em lugar especial e seguro, sem pensar em seu único, grave e imperdoável defeito: a baixíssima tiragem, opção de quem o escreveu. Recomendo a leitura, evidentemente, mas o meu exemplar não está disponível para empréstimo, protegido pelo ciúme que o mantém sempre ao meu alcance e sob o meu controle. Daí o pedido: que venham mais edições dessa obra fundamental. O mundo dos leitores, tão carente de boas iniciativas, agradecerá.