O Maracanã que não existe mais: construído para a Copa do Mundo de 1950, estádio perdeu a imponência do anel superior e se transformou em arena para abrigar exigências do futebol moderno
Recebi de presente, no final do ano passado, um livro de crônicas chamado O corpo encantado das ruas. Não conhecia o autor, Luiz Antonio Simas, que adquiriu fama literária ao retratar a vida carioca dos dias que correm. A estrutura do livro, publicado pela Civilização Brasileira, me remeteu a João Antônio, contista que explorou temática semelhante à que a obra recente do Simas contém. Fui a ele, o velho escritor, e encontrei, na orelha do Leão de chácara, também da Civilização Brasileira (1976), a apresentação de Mário da Silva Brito: “[João Antônio] se revelava, desde logo, senhor dos segredos da arte de narrar, tinha a sua própria visão de mundo e trazia para o conto, ao lado de uma linguagem ricamente inventiva, desentranhada do coloquial da malandragem e habilmente engastada no fluxo da frase artística, todo um novo universo: o do pobre-diabo dos grandes centros urbanos, a gente sofrida dos subúrbios da vida, os pequenos burgueses quase proletários e os proletários às vezes quase pequeno burgueses”. E prosseguia o Mário: “Há de se ressaltar a vivacidade da linguagem de João Antônio, que sabe fazer valer estilisticamente, dentro de sua fatura literária elaborada, o vocabulário, a sintaxe, a língua falada nascida do cotidiano popular. Ele é pródigo – e prodigioso – na valorização do idioma com que o povo se comunica”.
Pouco me animo a comparações, acho-as arriscadas, mas os dois Antônios me deram a sensação de continuidade. O João, com uma linha descritiva interiorizada na realidade dos bares, das vilas, do samba; o Luiz, com textos mais curtos e análise protagonista e ao mesmo tempo ampla da tragédia social que toma conta do País. Pode ser que não seja nada disso, mas é o que me parece. Meus olhos veem – sempre foi assim, ainda que eu não percebesse enquanto o meu corpo era novo e as tardes se alongavam – um Rio de Janeiro criativo, popular e culturalmente irrequieto, cujo destino de Sísifo é resistir aos padrões europeus e norte-americanos impostos pelo capitalismo. “Em certo momento crucial para o Rio, aquele da transição entre o trabalho escravo e o trabalho livre e entre a monarquia e a República, a cidade encarou os pobres como elementos das ‘classes perigosas’ (a expressão foi largamente utilizada em documentos oficiais do período) que maculavam, do ponto de vista da ocupação e reordenação do espaço urbano, o sonho da cidade moderna e cosmopolita”, lembra o Simas.
A referência coincide com o período de destruição do cortiço chamado “Cabeça de Porco”, no centro da cidade, ocorrida no final do século XIX. Naquele episódio, a polícia, acionada por autoridades públicas a serviço de proprietários e especuladores, se encarregou de “limpar” a área, identificada como “valhacouto de desordeiros”. O que se queria não era apenas evitar o contato entre antigos moradores da estalagem e os ricaços em minoria, mas efetivar uma política de “higienização”, expulsar a pobreza de lugares reservados à burguesia. Nada muito diferente do que fariam, mais de um século depois, os organizadores da Copa do Mundo e da Olimpíada.
Onde se encontram a informalidade dos botecos, a alegria espontânea das ruas e as brincadeiras de criança – coisas simples e verdadeiras –, percebe o livro, é para lá que vão os donos do dinheiro, empenhados em estragar tudo. Daí os jogos eletrônicos atuais, excessivos e alienantes, a glamourização brega do comércio, a vida virtual, a descaracterização das escolas de samba, a privatização dos espaços coletivos e a transformação do Maracanã em lixo estético para abrigar a arenização do esporte, exemplos da modernidade triunfante.
A alternativa é resistir, eis que a semente da cultura popular sobrevive. E o Luiz Antonio Simas, como um João Antônio contemporâneo, cumpre essa tarefa com o uso adequado, rasante, das palavras. O futebol é seu aliado: “O futebol é uma das minhas referências para olhar o mundo. Aprendi a ler nas páginas da Placar, gosto de escrever sobre o jogo a partir da saga de times pequenos, clubes de várzea, goleiros frangueiros, perebas, falsos craques, beques da roça, jogos delirantes e similares. Sou adepto da nano-história, um escritor de irrelevâncias, da corriola dos pequeninos”.
Humilde, fecho com o autor dessas frases, sem restrições, e indico a leitura do texto integral a quem eventualmente se interessar pelo meu palpite.