Demorou um pouco, mas aconteceu. Era inevitável. No início de fevereiro, foi a vez do doutor Paulo Guedes investir contra o servidor público. Para ele – como já fora para vários de seus antecessores no poder, federal, estadual e municipal –, a desgraça da administração pública nacional são os servidores, a quem acusa de “parasitas” que estão matando o hospedeiro (o governo).
Pobre coitado! Pensa que é ele e seus semelhantes companheiros que administram o Brasil, que fazem a máquina administrativa funcionar…
O “Posto Ipiranga” do capitão Messias acordou atormentado com falta de argumentos para defender o seu (dele) projeto de emergência fiscal e resolveu descarregar a fúria sobre os servidores públicos. Estava indignado com o reajuste automático de salários de determinadas categorias funcionais – que está quebrando os Estados. E, na essência, tem razão. Isso é verdade e um absurdo. Mas S. Exª. não pode generalizar. Até porque sabe que essas discrepâncias e esses privilégios são pontuais. E, sobretudo, gerados e mantidos pelas próprias autoridades públicas. Recordai-vos do “auxílio-moradia”, recebido por juízes, desembargadores, agentes do Ministério Público, ministros e conselheiros de Tribunais de Contas, procuradores, deputados, senadores e assemelhados. Um fazia de conta que não via a malandragem do outro (ou a copiava) e todos iam se locupletando. Ninguém era capaz de uma atitude saneadora – a não ser, anos depois, através de uma manobra dissimulada do Supremo Tribunal Federal. Outro exemplo são as “rachadinhas”, presentes nos legislativos (estaduais e municipais) de todo o país.
Dê o nome aos bois, ministro. V. Exª. sabe quem eles são.
Queiram ou não, o serviço público é uma coisa muito séria e não pode ser enlameado pelos patifes que dele se valem para tirar proveito próprio. Esses sim são as ditas parasitas, que corroem a Nação.
Já lhes disse aqui que tenho alguma experiência pessoal na Administração Pública. Estive lá. Como funcionário efetivo. Em cargos de carreira (e também em comissão). Foi uma caminhada de mais de trinta e cinco anos, iniciada ao rés do chão e encerrada no topo da montanha. Isso me permite fazer algumas afirmações, com conhecimento de causa. Por exemplo:
1. Ninguém, que paute a vida pelo trabalho e pela decência, enriquece na função pública, tenha o salário que tiver e receba as gratificações que receber.
2. Serviço público é um ganha-pão como outro qualquer, com o qual o sujeito sobrevive, alimenta a família, educa os filhos. Sem luxo e sem ostentações. Apenas isso. E não se pode ter vergonha disso.
3. É preciso ter vocação para ser servidor público. E também muita coragem para enfrentar um sistema viciado, capenga, injusto e estigmatizado, com o qual pouca gente se preocupa, a não ser para desqualificar e tirar proveito.
4. Quem pretende ficar rico deve fugir do serviço público. E, se alguém enriquecer sendo apenas servidor público, merece ser investigado. Pertença à esfera administrativa que pertencer, e em qualquer um dos Poderes.
Sempre teve Maurícios Marinhos no serviço público. Talvez muito menos ontem do que hoje. No meu tempo, havia poucos. No Poder Judiciário, ao qual servi, quase nenhum. Sabem por quê? Porque no Poder Judiciário não havia, então, interferência político-partidária, caixinhas, mensalões, e os cargos em comissão eram sempre ocupados por funcionários efetivos, profissionais de carreira, do quadro permanente de pessoal, em regra admitidos por concurso público. Eu escrevi então porque não é mais bem assim. Hoje em dia, o Judiciário padece – e muito – de influência externa e está abarrotado de cargos comissionados, nem sempre ocupados por gente do ramo, profissionais capacitados e bem intencionados. Quer dizer: está sujeito, como os outros Poderes e órgãos da administração pública direta e indireta, ao aparecimento de Maurício Marinhos.
Eu sei, minha senhora, que o Maurício Marinho original – usado aqui como exemplo – era um funcionário público de carreira. Mas também sei que sem o incentivo ou a omissão e a proteção dos poderosos de plantão, ocupantes de cargos de confiança, comissionados, ele não passaria de um burocrata, talvez com mania de grandeza e planos de corrupção na cabeça, mas inofensivo.
Lembram-se de Maurício Marinho, 28 anos de Correios? Casado, pai de filhos, especialista em licitações públicas, era um patife, que envergonhava a classe dos servidores públicos.
Como disse no início, eu também fui servidor público. Por mais de quinze anos, dirigi departamento de compras e distribuição de materiais e da realização de obras; elaborei editais de concorrência pública e contratos administrativos; presidi comissões de licitação e encarei fornecedores, prestadores de serviços e empreiteiros de obras públicas. E posso fazer aqui uma derradeira afirmação: isso não dói. Pode-se sair ileso, sem um pingo de lama, e ir para casa com a cabeça erguida e a consciência tranquila.