Um sonho estranho me atormenta de vez em quando. Nele, estou no futuro, em lugar que não conheço, cercado de pessoas cujos rostos aparentam indiferença. A sobrevivência humana, dizem os comunicados oficiais, exige o deslocamento da população, dos bilhões de seres que somos, para o fundo dos oceanos, onde se instalará uma nova civilização. Dos continentes do planeta não restará nada. O tempo para a transição é escasso, e uma multidão de cientistas se empenha em aplicar um treinamento rápido e individualizado para a adaptação dos nossos corpos aos segredos do mar. Aprenderíamos a fazer desse ambiente o palco das nossas atividades. Comer, caminhar, trabalhar, ver um filme, sentir frio e calor, amar, tudo aconteceria em cidades submersas. E todos seríamos felizes, segundo aqueles tais cientistas daquela sociedade ameaçada.
Pego a rabeira de uma fila e observo os voluntários. Um a um, eles se instalam em pequenas cápsulas, viveiros que reproduzem as condições do paraíso aquático prometido. Mergulhadas em água salobra, as cobaias reagem com desconforto, mas logo abrem seus olhos e parecem se conformar à regra imposta pelas circunstâncias. Imediatamente, recebem um certificado de habilitação que lhes autoriza a transferência.
Quando chega a minha hora, recuo. E repito esse gesto medroso uma, duas, cem vezes. Falta-me impulso para me largar no aperto da cápsula. A sensação de afogamento me assusta, busco o ar de um planalto distante e minhas pernas recusam a oferta dos orientadores e seus jalecos esverdeados. Percebo, sem emoção, que faço parte de uma minoria de “não-adaptados”, grupo de velhos – com exceções raras – que não acreditam em comunicados oficiais, a perambular por um deserto iminente, à espera do final. Assumo a exclusão, com a altivez que o cansaço permite, e acordo aliviado.
Fico a procurar a mensagem contida no sonho recorrente. Parece-me, de início, que o enredo sugere uma espécie de isolamento, o destino de homens sem rumo num mundo cada vez mais artificial e tecnológico – o mundo que não me pertence. Estou, afinal, entre os que dispensam os aparelhos moderninhos que exibem imagens esquisitas e matam a perspectiva do diálogo, transformando a palavra em mágoa, enigmas ou frases de efeito. Entre os que preferem coisas antigas, reflexões em desuso, pensamentos contidos, gritos no escuro da solidão que se anuncia. Entre os que não existem para a institucionalidade digital.
Pode ser esse o recado onírico, a chamada derradeira para que eu me renda à legião dos vivos. Mas não creio. O provável é que as imagens aflitas tenham a ver com temas mais amplos do que a minha existência pequena e desimportante. Quando meus olhos se põem diante das notícias dos dias que seguem, compreendo o sonho. A periferia massacrada, o óleo que envenena plantas, peixes e gentes, a miséria alheia planejada pelos donos do dinheiro, a criminalização do pensamento, a educação ferida de morte, eis o retrato de um tempo que se julgava enterrado.
Tempo de cúmplices da barbárie, de tribunais lulocentristas que fabricam teses desconexas para legitimar prisões políticas sob a encomenda de representantes das armas, agentes da tortura e chefes religiosos que oprimem seus rebanhos com a promessa de salvação operada por deuses falsos e cruéis. Ou de juízes partidarizados e procuradores reacionários a impor suas vontades sobre a Constituição que deixou de ser. Ou de ministros que regurgitam discursos primitivos de ódio e desprezo a valores que suas pastas deveriam preservar. E por aí vai, numa sucessão de eventos constrangedores que faz do presente uma coleção macabra de retrocessos.
São esses os tipos inacreditáveis que nos querem tornar quadrados, caretas, tristes e mudos, aprisionados em viveiros sob as águas escuras de um mar desconhecido. Os nossos algozes. Percebo, então, enxergando-os em sua dimensão de vitória, que o futuro delineado na trama sufocante do meu sonho é agora. Afundamos.