No dia 19 de julho, transcorreu o sexto aniversário da morte do escritor Rubem Alves. Para registrar a data, o jornalista e consultor jurídico Célio Heitor Guimarães publicou, no blog do Zé Beto, um artigo – Rubem Alves, seis anos depois – que foi reproduzido, também, na seção Palavra Livre do site da Assejur. Confira, abaixo, o texto completo.

 


Rubem Alves, seis anos depois

Célio Heitor Guimarães

 

Nesta triste época de pandemias do coronavírus, de administradores insanos e perigosos, de ódio generalizado, de desesperança e de desamor, sinto muita saudade de Rubem Alves, cuja partida completou seis anos no dia 19 de julho. Ele deixou este mundo de maldades e desigualdades, mas legou-nos como herança o seu exemplo de vida, o seu trabalho e as suas lições, reunidas em mais de uma centena de livros, que continuam sendo reeditados pela filha querida Raquel, sua sucessora e presidente do Instituto Rubem Alves, mantido na cidade de Campinas (SP).

Rubem era um homem que tinha um caso de amor com a vida e passou toda a sua existência exercendo-o. Suas palavras e sua escrita eram lições de vida. Suas crônicas ainda hoje nos emocionam e fazem-nos pensar. Às vezes, ele era irônico e bem-humorado; outras, lírico e romântico; e outras mais, crítico e até mordaz. Mas sempre inteligente, humano e sincero. Era capaz de, com toda a simplicidade, construir verdades eternas, de enorme significado. E era, sobretudo, um avô que adorava brincar e compartilhar pensamentos: uma extraordinária figura humana, que amava a beleza das pequenas coisas, a natureza, as netas, os jardins e os pássaros, a sabedoria das crianças, o mar e as montanhas, o vento fresco da tarde, os ipês floridos, o outono, os animais, os campos e os cerrados, o orvalho sobre a teia de aranha e os pores-do-sol.

Cultuava a amizade, porque sabia que “a beleza da poesia, da música, da natureza, as delícias da boa comida e da bebida perdem o gosto e ficam meio tristes quando não temos um amigo com quem compartilhá-las”. Tamanha era a importância que dava à amizade que oferecia nova interpretação ao ritual eucarístico pintado por Salvador Dalí e Leonardo da Vinci: “Jesus não queria comer e beber. Ele queria estar junto, falar de amizade e saudade. E, para isso, valeu-se de pão e vinho”.

Fora pastor protestante. Presbiteriano. Pregou, durante anos, o evangelho na linha severa ditada pelo calvinismo. Um dia, teve uma iluminação: não podia continuar divulgando a palavra de um Deus cruel e vingativo. Entendeu que o seu Deus não podia ser aquele contido nas Sagradas Escrituras, onde só encontrava sentimentos de medo, de vingança, de autoritarismo, de castigos e vingança. “O Deus adulto é terrível: grave, sério, não ri, não dorme, seus olhos estão sempre abertos e nem sempre têm pálpebras, jamais esquece, e registra tudo nos seus livros de contabilidade, que serão abertos no Dia do Juízo para o acerto final de contas.” Diante disso, Rubem afastou-se da religião. E da fé.

Mas continuou acreditando em Deus – “Deus tem de existir. Tem beleza demais no Universo…” –, mas à sua maneira: “É claro que acredito em Deus, do jeito como acredito no perfume da murta, do jeito como acredito na beleza da sonata, do jeito como acredito na alegria da criança que brinca, do jeito como acredito na beleza do olhar que me contempla em silêncio. Tudo tão frágil, tão inexistente, mas me faz chorar. E, se me faz chorar, é sagrado. É um pedaço de Deus…”

Educador por vocação e profissão, Rubem Alves garantia que a maioria das escolas não gosta das crianças. Para ele, “são gaiolas” que aprisionam as crianças como os pássaros e as impedem de voar. Comparava-as, também, a “máquinas de moer carne: numa extremidade entram as crianças com suas fantasias e brinquedos. Na outra saem rolos de carne moída, prontos para o consumo, ‘formados’ em adultos produtivos”. E então, “a transição da infância para a condição adulta é a transição da inteligência para a burrice”.

Mais do que tudo, porém, Rubem dava importância às coisas simples da vida, do mesmo modo que desprezava a riqueza e o poder. E explicava por quê: “Morávamos numa fazenda velha que um cunhado emprestara ao meu pai. Não tinha luz elétrica: de noite acendiam-se as lamparinas de querosene com sua chama vermelha, sua fuligem negra e seu cheiro inconfundível. Não tinha água dentro de casa: minha mãe ia buscar água na mina com uma lata de óleo vazia. Não tinha chuveiro: tomávamos banho de bacia com água aquecida no fogão de lenha. Não tinha forro: de noite víamos os ratos correndo nos vãos das telhas. Não havia privada: o que havia era a clássica casinha, do lado de fora. E eu não tinha brinquedos. Não me lembro de um, sequer. E, no entanto, não consegui encontrar nenhuma memória infeliz. Eu era um menino livre pelos campos, em meio a vacas, cavalos, pássaros e riachos.”

Grande Rubem! Onde estiver, receba a nossa saudade e a certeza de que, um dia, haveremos de nos reencontrar, sob o olhar compreensivo Daquele em quem você deixou de acreditar, mas descobriu que existe.

 

(Publicado originalmente no blog do Zé Beto em 23/7/20)

 

Célio Heitor Guimarães é jornalista e consultor jurídico aposentado.