Há pouco mais de um ano, chuvas torrenciais e deslizamentos de terra deixaram 64 mortos e milhares de desabrigados na Vila do Sahy, em São Sebastião, no litoral paulista. A desigualdade de riqueza se traduziu em focalização da tragédia nos mais pobres, desproporcionalmente vulneráveis às intempéries climáticas causadas pelo consumo desenfreado dos ricos. O Senado agora deseja liberar a selvageria do mercado imobiliário sobre nossas praias. A Comissão de Constituição e Justiça aprovou, na semana passada [final de maio], uma proposta de emenda à Constituição que busca transferir a jurisdição das áreas de Marinha da União para estados, municípios e proprietários privados.
A “PEC das Praias” cria um problema inexistente no Brasil. Ao descentralizar-se a propriedade do terreno de Marinha, abrem-se as portas para um contubérnio legislativo subnacional —além do risco a comunidades locais e ao ecossistema ao longo dos 8.500 quilômetros da costa brasileira. Um dos argumentos em defesa da proposta é que, ao fazer o cercamento do espaço público de Marinha, potencializa-se a preservação das áreas, agora sob controle atomizado de quem realmente tem interesse econômico na área. O argumento é primitivo. O conluio entre a aristocracia e o poder público locais torna real a ameaça a áreas de preservação ambiental. O exemplo do Rio Grande do Sul deveria ser suficiente para bloquear tamanho despautério. A jurisdição federal dificulta a captura regulatória por poderes locais e deveria ser mantida.
A proposta é mais uma tentativa de impor ao Brasil um transplante mal-ajambrado da realidade norte-americana. Diferentemente do Brasil, onde a União é proprietária de tudo o que está abaixo da superfície e de toda a extensão costeira, nos EUA a ocupação do litoral se deu de forma descentralizada, à mercê dos lucros imobiliários e da concentração de riqueza promovida pelo neoliberalismo pós-1980. Reportagem de Michael Waters para a revista The Atlantic, em setembro de 2023, mostrou a bagunça que é o sistema norte-americano. Grande parte das propriedades que margeiam a costa está em mãos privadas: cerca de 60% em Nova York e na Flórida. No norte do país, a situação fica pior: nos estados de Maine e Massachusetts, menos de 12% da costa marítima é de livre acesso. A maior demanda por terrenos à beira-mar elevou os preços e foi dificultando o acesso às áreas públicas de praias parcialmente privadas.
A pressão pela privatização de áreas costeiras ganha vulto mundo afora. Austrália, Itália, Espanha e Porto Rico, para citar alguns países, enfrentam processos similares. A causa dessa invasão das praias é a extrema concentração de riqueza, que não dá mostras de arrefecer. Levantamento recente mostrou que, em 2023, os 22,8 milhões de pessoas mais ricas do mundo somaram uma riqueza conjunta de US$ 86,6 trilhões. Tamanho poder econômico se traduz em poder político, por meio de lobby para desregulamentar mercados, em particular o imobiliário, destino de investimento preferido pelos indivíduos mais ricos.
Como mostrou a Folha de S.Paulo, 9 dos 81 senadores têm imóveis ou terras nessa faixa em questão. A ideia de criar uma “Cancún brasileira” é o retrato de elites econômicas predatórias, incapazes de usar sua riqueza para gerar inovações tecnológicas e soluções para os desafios do século 21. Mesmo que ocorra um recuo tático por parte do Congresso — devido à reação negativa da opinião pública—, deve-se manter a vigilância contra essa intentona privatista.
Tornar o espaço público das praias uma mercadoria levará à exclusão da população de uma recreação acessível e do contato com a nossa natureza, cada vez mais ameaçada. Ouçamos o brado do grupo BaianaSystem, na canção “Lucro (Descomprimindo)”: “Tire as construções da minha praia, não consigo respirar!”.