Foto: reprodução Justificando/Pixabay

 

Na manhã de uma segunda-feira, na costumeira fala a apoiadores e repórteres, o presidente da República se referiu mais uma vez ao ex-presidente brasileiro como “nove dedos”. Os veículos de imprensa repercutiram a declaração, acrescida de críticas devido à ausência das esperadas palavras de um líder diante da marca assustadora de 500 mil brasileiros mortos pela Covid-19.[1] Contudo, para as autoras deste texto e muitos membros do Movimento de Pessoas com Deficiência, o que mais chama a atenção é a referência jocosa e pública a um deficiente físico. E a ausência de indignação, por parte da sociedade, inclusive dos meios de comunicação, envolvendo tal comportamento.

Sim, quem tem um dedo amputado faz parte do grupo de pessoas com deficiência. E, assim como os demais, tem a garantia constitucional de não ser ofendido, agredido, debochado, desrespeitado em decorrência de sua deficiência. Nossa Constituição Federal, nela incorporada a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto 6.949/2009)[2], estabelece que o Estado brasileiro se compromete a tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação baseada em deficiência, por parte de qualquer pessoa, organização ou empresa privada (artigo 4, item 1, “e” da Convenção), e proíbe todo tipo de discriminação baseada na deficiência, garantindo às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo (artigo 5, item 2 da Convenção).

Por sua vez, a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), que tem como base a Convenção, tipifica o crime de “praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência” e impõe pena de reclusão de dois a cinco anos e multa se tal crime for cometido por intermédio de meio de comunicação. Referir-se a alguém não pelo nome, mas por sua deficiência, em tom de deboche, estimulando os admiradores a fazerem o mesmo, não se encaixaria nesta tipificação penal? Difícil encontrar fundamento para uma resposta negativa.

Pois nem a pandemia nem a polarização política podem nos anestesiar a ponto de não observarmos e cobrarmos os patamares mínimos de civilização que, a duras penas – graças aos que por aqui passaram antes de nós – conseguiram construir e deixar para a sociedade atual. Então, é preciso lembrar que todos, pessoas famosas ou desconhecidas, cumpridoras ou não da lei, que te provoquem admiração ou repulsa, todos sem exceção são protegidos por legislação nacional e internacional contra humilhações e outras afrontas à dignidade humana, e mais ainda quando envolve menção à deficiência física ou outro tipo qualquer de deficiência, objetivando provocar riso, achincalho ou rebaixamento.

Cabe destacar que, embora haja expressões a serem evitadas porque politicamente incorretas no âmbito dos direitos humanos e do paradigma da inclusão social[3], o problema não são as palavras, mas sim o sentido negativo que se dá ao atributo ou qualidade da deficiência. Assim, não há nenhum desrespeito se for dito “eu tenho um amigo nove dedos” ou “meu ex-namorado é cego”. Afinal, a discriminação está no uso da deficiência para desqualificar e subjugar o outro, está na desvalorização associada à deficiência.

Nos últimos anos, tem ganhado espaço na mídia o termo “capacitismo” para se referir a esse preconceito ou aos atos discriminatórios contra as pessoas com deficiência. O termo é um neologismo que, nos moldes do racismo, sexismo ou classismo, sugere um afastamento da capacidade, da aptidão, pela deficiência. A concepção capacitista considera determinados corpos inferiores ou passíveis de reparação quando situados em relação aos padrões hegemônicos corporais/funcionais[4]. Em sentido oposto, o reconhecimento de que a diversidade corporal é condição humana e que deficiência não significa incapacidade foi cristalizado no bordão lançado na ONU em 2015 e que repercute ainda mais forte nos dias atuais: “Disability is not inability!”.[5]

Alguns nascem com a deficiência, outros se tornam deficientes no decorrer da existência. A própria pandemia e as consequências ainda em estudo da Covid-19, podendo deixar sequelas permanentes, coloca todos em uma posição vulnerável. E ainda, se pensarmos que a maior parte de nós quer ter vidas longevas e ultrapassar os cem anos de idade, muito provavelmente teremos limitações de audição, visão, locomoção etc., que, a depender do grau – nos moldes do modelo social da deficiência e sua avaliação biopsicossocial –, vão nos inserir no grupo das pessoas com deficiência.

Mas temos uma legislação protetiva que garante vida digna e punição para quem nos discriminar em razão da nossa deficiência. Todos estão protegidos por leis e instituições para que se penalize aquele que gera prejuízo moral ou material a quem quer que seja. E o grupo de pessoas em desvantagem social e vulneráveis – neste incluídas as pessoas com deficiência[6], idosos e crianças – teve um sistema de proteção legal maior e específico construído pelas sociedades modernas sob o pilar dos Direitos Humanos, sendo preciso inclusive agir preventiva e pedagogicamente, abarcando a esfera coletiva. Até mesmo para cobrar os direitos daqueles que jamais utilizaram de sua condição pessoal para usufruir das garantias legais, as quais, aliás, ajudaram a construir para toda a sociedade. Queremos nada menos do que o país da nossa Constituição Federal!

 

 


Sandra Regina Cavalcante é doutora e mestre em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, especialista em Direito do Trabalho e em Direito Ambiental, advogada e professora de Direito do Trabalho e Direito dos Vulneráveis.

Katia Regina Cezar é doutora e mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo.

 


[1] Entre tantas publicações, seguem algumas: XAVIER, Getúlio. Bolsonaro insiste em voto impresso e ataca Lula: ‘Só na fraude o nove dedos volta’. Carta Capital, 21/06/2021. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/bolsonaro-insiste-em-voto-impresso-e-ataca-lula-so-na-fraude-o-nove-dedos-volta/>. Acesso em/6/2021; SOARES, Ingrid. Bolsonaro sobre Lula nas eleições: ‘Só na fraude o nove dedos volta’. Correio Braziliense, 21/6/2021. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/06/4932640-bolsonaro-sobre-lula-nas-eleicoes-so-na-fraude-o-nove-dedos-volta.html>. Acesso em 24/6/2021; e MENDES, Adriana. Bolsonaro sobre Lula: ‘Só na fraude o nove dedos volta’. Yahoo Finanças [repercutindo notícia de O Globo]. Disponível em: <https://br.financas.yahoo.com/noticias/bolsonaro-sobre-lula-s%C3%B3-na-135427477.html >. Acesso em 24/6/2021.

[2] Menção à convenção no formato pedagógico sugerido pela maior autoridade brasileira sobre o tema, desembargador Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, no relatório Contribuições para o Projeto de Lei PL7699/2006 Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2013, no qual afirma: ‘Sugeri, também, para efeito pedagógico, que, em vários dispositivos, onde se menciona a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD) e a Constituição Federal (CF) diga-se sempre ‘a Constituição da República Federativa do Brasil, nela incorporada a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU’, porque até hoje a grande maioria da população e dos operadores do direito desconhece o fato e poucos lerão o artigo 1º da minuta, no que fui acompanhado pelo Grupo de Auditores Fiscais do Trabalho, da SIT, na mencionada reunião’. Disponível em: <https://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/Content/uploads/20131210122433_RELATORIO_ESTATUTO_Dr.RicardoTadeu.pdf>. Acesso em 23/6/2021.

[3] SASSAKI, Romeu Kazumi. Terminologia sobre deficiência na era da inclusão. In: VIVARTA, Veet (coord.). Mídia e deficiência. Brasília: Andi/Fundação Banco do Brasil, 2003, p. 160-165. Disponível em: <https://campanhas.cnbb.org.br/wp-content/uploads/2015/04/terminologiasobredeficiencia.pdf>. Acesso em 23/6/2021.

[4] MELLO, Anahi Guedes de. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2016, v. 21, n. 10, pp. 3265-3276. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.07792016>. Acesso em 23/6/2021.

[5] UNITED NATIONS. Disability Is Not Inability, Special Rapporteurs Tell Third Committee, Urging National Reforms to Ensure Social Inclusion, Human Rights Protection. Geneve, 2015. Disponível em: <https://www.un.org/press/en/2015/gashc4144.doc.htm>. Acesso em 23/6/2021.

[6] O uso do termo ‘vulneráveis’ para pessoas com deficiência tem sido questionado porque ele está relacionado com a ausência de autonomia e independência.