O Congresso atualmente discute a reforma tributária por meio de uma proposta de emenda constitucional (PEC). O uso dessa via legislativa para promover as mudanças é justificado por uma peculiaridade brasileira: boa parte das regras tributárias está prevista na própria Constituição. O texto constitucional detalha princípios, limites de atuação, competências, mecânicas dos tributos, hipóteses de incidência, imunidades, bases de cálculo etc. Este modelo começou na Constituição de 1934 e desde então se manteve. A ideia por trás sempre foi garantir uma maior segurança jurídica no campo tributário. Hoje em dia, uma parcela dos tributaristas considera que esse objetivo foi alcançado. Já outra corrente defende que o excesso de regras tributárias na Constituição traz um efeito totalmente contrário — e que, portanto, seria melhor deixar os detalhes para as leis e normas infralegais do Fisco.
Excesso constitucional – Na visão do tributarista Luciano Fuck, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), a ideia de incluir tudo na Constituição gerou um efeito rebote: um excesso de litígios levados ao Supremo Tribunal Federal. “Hoje o texto é muito extenso”, opina. “E qualquer coisa pode ser uma infringência ao texto constitucional”. Fuck diz que o problema é causado pela previsão de “pequenas mecânicas” na Constituição. Ele ressalta que o texto também possui, por exemplo, um número considerável de regras sobre processo penal, mas que não chega perto do volume de dispositivos tributários. Para o advogado, quanto mais definidas são as normas no texto constitucional, maior a necessidade de que os conceitos, caso levados à Justiça, sejam interpretados pelo Supremo. Uma regra prevista em ato da Receita Federal, por exemplo, poderia ser discutida por um juiz federal. Mas, “a partir do momento em que se coloca a palavra ‘faturamento’ na Constituição, quem vai definir o que é faturamento é o STF”, exemplifica.
De acordo com Fuck, isso gera uma “sobreoneração” do STF, que é obrigado a arbitrar “regras mínimas de Direito Tributário”. Há também uma demora para a resolução definitiva das controvérsias. Muitos temas tributários levam mais de uma década até serem pacificados. O professor lembra que o papel do STF é decidir sobre direitos fundamentais. “Mas, de repente, o Supremo se vê tendo que resolver cada minúcia do sistema”, como “a correta definição de uma contribuição previdenciária”. Por isso, ele defende que a Constituição tenha somente um rol de direitos do contribuinte e uma divisão básica de competências entre os entes federativos. Outros países costumam ter Constituições mais “econômicas” em temas tributários, que se limitam a prever dispositivos gerais e cláusulas abertas de direitos fundamentais do contribuinte. Não é comum a adoção do mesmo detalhamento presente no texto constitucional brasileiro.
Alternativa válida – Por outro lado, o advogado tributarista e professor Fábio Pallaretti Calcini entende que o volume de normas tributárias na Constituição brasileira não é um problema, mas apenas “uma opção política valorativa”. Ele não acredita que o excesso traga prejuízos e considera que os regramentos são razoáveis, positivos e relevantes. Segundo Calcini, a Assembleia Nacional Constituinte se preocupou em “delimitar o exercício do poder de tributar” e dar mais segurança e previsibilidade ao sistema: “O que se pretendeu foi nada menos do que deixar mais rígidas as regras do jogo, do ponto de vista tributário”. Isso não significa que a Constituição resolve todos os problemas tributários. O advogado destaca que nem tudo pode ser inserido nela e que leis adequadas são fundamentais para concretizar e aplicar os conceitos básicos — o próprio texto constitucional delega diversos assuntos às leis. “A Constituição, por si só, não gira a engrenagem”, assinala.
Mesmo com as leis, o Poder Executivo também pode ir mais a fundo para orientar o contribuinte por meio de atos infralegais, como instruções normativas e portarias. Na esfera federal, isso é feito pela Receita. Já no nível estadual, a função cabe às secretarias de Fazenda. “O importante é que toda essa hierarquia de atos normativos seja estruturada harmonicamente”, diz Calcini. Ou seja, as leis e os atos infralegais precisam vir em sintonia com os objetivos da Constituição, para não gerar problemas e litígios tributários.
O foco do problema – Mesmo assim, Calcini considera que o Brasil não conseguiu atingir plenamente a finalidade de maior proteção e segurança ao contribuinte. Um dos motivos, segundo ele, são as interpretações feitas pelo Judiciário, em especial o STF — que, por vezes, atenua e relativiza princípios constitucionais e modula suas decisões para resguardar a arrecadação dos entes federativos. Já quando o Supremo invalida um tributo, o Legislativo formula emendas constitucionais para poder cobrá-lo. Além disso, produz leis que desconsideram propositalmente os parâmetros da Constituição, com “intuito arrecadatório”. Por fim, o Executivo usa a mesma estratégia nos atos infralegais. Assim, na visão do advogado, o problema não está na Constituição, mas sim no comportamento de quem elabora, executa e julga as normas tributárias — ou seja, nos abusos do poder público. Para ele, os litígios são fruto da falta de cidadania fiscal.
Calcini identifica que tem ocorrido um movimento negativo de produção de leis que, com frequência, delegam temas tributários aos atos do Executivo, ao passo em que o STF ocasionalmente legitima tais medidas. “Isso, para mim, é um alerta muito significativo da relativização de direitos e garantias fundamentais dos contribuintes que estão muito bem postos no texto constitucional”, afirma. Já o tributarista Luiz Gustavo Bichara reconhece que a Constituição brasileira é “‘poluída’ em matéria tributária, tratando de temas que costumeiramente deveriam ser delegados à lei”. Mas ressalta que, no Brasil, “o Fisco mal respeita os direitos constitucionalmente reconhecidos dos contribuintes — as chamadas limitações constitucionais ao poder de tributar”. Por isso, embora não encare como ideal, ele considera que o sistema tributário com abundância de regras constitucionais é melhor “do que enfraquecer ainda mais a defesa dos contribuintes”.
Mudanças à vista – O advogado Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), considera que o grande número de regras tributárias na Constituição é “um erro abissal”, que leva a um cenário de “insegurança e judicialização”. Também destaca que tal modelo “gera um número enorme de jabutis” nas propostas de reforma tributária, como a que atualmente se discute no Congresso. Scaff defende o abandono da ideia de reforma constitucional tributária. Para ele, o Brasil poderia seguir outro caminho e buscar resolver questões tributárias por meio de normas infraconstitucionais — que poderiam, por exemplo, reduzir a carga de multas, revisar todo o sistema de substituição tributária e implantar um novo sistema de tributação, mais simples, para as pequenas e microempresas.
Já Fuck entende que, devido ao modelo estabelecido, qualquer reforma estrutural precisa ser feita via PEC. Mas ele critica a ideia, presente na atual reforma, de “inchar a Constituição”, com a inclusão de novas previsões. “Cada um desses dispositivos pode ensejar uma controvérsia que vai ter de ser resolvida pelo STF”, alerta. Por isso, o professor defende uma “lipoaspiração constitucional” — ou seja, uma PEC que, em vez de incluir dispositivos, retire parâmetros e revogue regras da Constituição, para discipliná-las por meio de lei. “Talvez seja a hora de pensar em dar um passo para trás”, avalia. Já Calcini vê a ideia de “enxugar” a Constituição como preocupante, pois entende que, com a delegação das regras tributárias às leis, o poder público teria ainda mais liberdade para violar direitos dos contribuintes. Ele lembra que o Brasil tem um histórico de gastos públicos altos, ineficiência de serviços e problemas de corrupção. Isso exige cada vez mais dinheiro para o governo, o que se consegue por meio dos tributos. Assim, sem o texto constitucional “para se apegar”, o país “fica com menos instrumentos para poder defender o contribuinte”. Além disso, na sua visão, a retirada de previsões constitucionais não resolveria os problemas: os litígios ainda existiriam, mas teriam “outra natureza”; ou sequer seriam iniciados, pois o contribuinte não teria “onde se apegar para se defender”.