Montagem (detalhe): portal Justificando
No último dos seus Doze contos peregrinos, García Márquez conta a história de um jovem casal que atravessa a fronteira franco-espanhola de carro, para passar a lua-de-mel em Paris. A certa altura, a noiva, que havia ferido seu dedo em um espinho de uma rosa durante a cerimônia, diz ao seu marido: – “Se alguém quiser nos encontrar será muito fácil […] só vai ter que seguir o rastro do meu sangue na neve”.
O lirismo do texto do colombiano é entrecortado por um drama vivido pelos protagonistas, mas a frase dita pela jovem, e que se tornou o título do conto de Gabo, nos veio à lembrança quando do julgamento, pelo STF da Reclamação 43.007. Na ocasião, a 2ª Turma confirmou a decisão do ministro Ricardo Lewandowski, convalidando o amplo acesso ao conteúdo de mensagens trocadas por Procuradores da República e o ex-juiz Sérgio Moro, quando este ainda integrava a magistratura.
Os eventuais leitores deste artigo devem estar se perguntando: qual a relação, afinal, entre o conto do colombiano, a decisão do STF e o tema central da coluna? Não se trata, ao contrário do que pode parecer, de um devaneio do subscritor. Afinal, desde sua estreia, a coluna tem se dedicado a denunciar a barbárie que vem sendo cometida contra o trabalho e as instituições que o defendem – ou, ao menos, que deveriam defendê-lo.
Toda a desconstrução que se iniciou com a “reforma trabalhista” de 2017 e teve sequência nas normas voltadas ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus – parte das quais foi referendada pelo mesmo STF – tem evidente conexão com os fatos descortinados no julgamento da semana que passou. Desde as eleições de 2014, o Brasil tem presenciado um processo de deslegitimação da democracia, que tem como marco inicial a não-aceitação do resultado do pleito pelo candidato derrotado. Representante autêntico das elites políticas e econômicas brasileiras, ele liderou um movimento de questionamento da vontade popular, o que foi sucedido pela adoção de práticas que inviabilizaram o governo da presidenta legitimamente eleita.
A esse grupo aliou-se o que se tem de mais retrógrado na política brasileira, culminando como afastamento injustificado da mandatária, pelas mãos de um presidente da Câmara que, naquela época, já não tinha boa reputação. Todo esse contexto levou a um controvertido e traumático processo de impeachment, mascarado sob falsas imputações de crime de responsabilidade, sem nenhuma sustentação de fato ou de direito. Como consequência, assumiu a Presidência da República um político da velha guarda, com perfil moldado de acordo com a aristocracia por ele representada. Apropriando-se do cargo, de forma golpista – como ele próprio reconheceu posteriormente – tratou de implementar várias medidas que tinham sido rejeitadas pelas urnas, que impuseram a já citada derrota ao candidato do capital.
Para quitar a fatura do golpe, o presidente alinhou as demandas do poder econômico e começou a desenhar a destruição do incipiente Estado social brasileiro: implementou o teto de gastos públicos, com motivações estritamente fiscais, e aprovou uma criminosa “reforma trabalhista”, usando o falso argumento da criação de empregos, o que nunca iria se concretizar. Aqui, vale lembrar – para que jamais seja esquecido – que contou com a inestimável ajuda de integrantes da própria Justiça do Trabalho, que ignoraram seu papel institucional e se tornaram co-responsáveis pela destruição do Direito do Trabalho.
Mas já se sabia que o breve e conturbado mandato do então presidente não seria suficiente para saciar o apetite das elites brasileiras pelo sangue dos mais pobres. E é nesse ponto que entra o cenário ora descortinado pela citada decisão do STF. Os mesmos protagonistas do golpe viram uma grande oportunidade para dizimar as possibilidades de retomada da democracia, assimilando o uso do lawfare como instrumento capaz de interferir no processo eleitoral de 2018. Contando com a vaidade de um juiz obscuro – com poucas qualificações, mas muita ambição – e de procuradores da República mais preocupados com holofotes do que com justiça, fizeram um pacto sinistro com várias instituições, inclusive a grande imprensa, para impedir uma candidatura que pudesse derruir o projeto em curso.
Esses fatos são bastante conhecidos; o que não se sabia até há pouco tempo é que essas práticas foram resultado de uma imperdoável concertação de interesses escusos entre os acusadores e o julgador. Sim, o devido processo legal na autodenominada “República de Curitiba” foi substituído pelas combinações, pelos ajustes e acordos realizados por meio de aplicativos de mensagens instantâneas, criando uma situação indefensável sob o ponto de vista da civilização democrática. Seria preciso retroceder o Direito Penal em alguns séculos para que esse tipo de conduta fosse considerada minimamente aceitável. Muito mais grave ainda se identificado que tais procedimentos foram concebidos e executados com a finalidade clara de interferir no processo político e, naturalmente, nos destinos da sociedade brasileira. Talvez os métodos medievais de apropriação do poder fossem menos cruéis e traumáticos do que aqueles adotados na indigitada “República”.
O fato é que os anseios dessa ORCRIM – como eles mesmos costumavam falar – foram concretizados. Moro tornou-se uma celebridade e virou ídolo dos segmentos mais reacionários da sociedade. Arrebanhou incontáveis fãs pelo Judiciário afora, em todos os graus de jurisdição e em todas as esferas da Justiça. Recebeu honrarias, elogios e mais uma porção de puxa-saquismos típicos dos medievalescos tribunais brasileiros. Outros tantos chegaram a invejar o suposto heroísmo, como se a atividade de um juiz pudesse ser comparada à de um justiceiro de histórias em quadrinhos. Como já dissemos em outras oportunidades, em situações de normalidade institucional as atitudes desse juiz seriam motivo de vergonha para qualquer magistrado comprometido com a Constituição e com as leis que jurou defender. Mas, na república do “lavajatismo”, o que vale é a interferência no Estado de Direito e na democracia para favorecimento das elites, ainda que à custa dos direitos e garantias fundamentais, dentre as quais atuação imparcial dos órgãos que deveriam cumprir e fiscalizar o cumprimento da lei.
Coroando a falta de respeito com os deveres que teria de cumprir, o ex-juiz deixou a carreira assumiu o ministério do governo de ultradireita que ajudou a eleger e o que deixou melancolicamente. Mas, antes disso, foi cúmplice dos desmandos causados por um governo inconsequente e que está cuidando de completar o trabalho sujo feito pelo antecessor. Além da reforma previdenciária, a resposta conferida aos efeitos da pandemia têm sido os mais cruéis possíveis para os pobres, acentuando a desigualdade latente que se vê há séculos no Brasil.
Nesse compasso, a revelação mais ampla do conluio entre acusadores e julgador, e dos termos em que ele se deu, tem sido capaz de causar indignação em diversas instituições e pessoas, a partir dos próprios integrantes do STF. Mas não se pode jamais esquecer que o crescimento exponencial das práticas ditatoriais ora reveladas foi tolerado e incentivado por essas mesmas instituições. Os desmandos do ex-juiz envolveram até a prática de crime, com usurpação de competência do próprio STF, mas isso não acarretou mais do que um leve “puxão de orelhas”, incapaz de corrigi-lo e desfazer os males que causou. O Conselho Nacional de Justiça, a quem compete apurar condutas irregulares de juízes, abdicou de julgar as dezenas de reclamações disciplinares que existiam contra ele, até que perdessem o objeto pela sua saída da magistratura. O mal por eles mesmo criado e cultivado ora é objeto de escárnio e de indignação.
Ainda que corretas, todas as manifestações de censura que ora são propagadas tendem a ser inócuas, pelas mais diversas razões. Mas não podemos jamais esquecer que as impressões digitais de todos aqueles que urdiram o golpe de 2016 e conduziram os fatos que lhe sucederam estão à vista de todos. Na paisagem árida de Brasília, não há neve. Mas quando, no futuro, olharmos para trás e virmos um imenso rastro de sangue, saberemos que ele foi tirado das trabalhadoras e trabalhadores do Brasil. Foi extraído pela precarização do trabalho promovida pelo capital, com a inestimável colaboração do Poder Judiciário brasileiro, produzindo um cenário de degradação, violência e miséria. Se alguém quiser encontrar os responsáveis, basta seguir os rastros de sangue no cerrado. Que a história os julgue e não os perdoe.
Carlos Eduardo Oliveira Dias é juiz do Trabalho (TRT 15), ex-Conselheiro do CNJ (2015-2017) e membro da Associação Juízes para a Democracia, da Associação Brasileira de Juristas para a Democracia e da Associação Americana de Juristas.