O juiz Federal substituto João Moreira Pessoa de Azambuja, de Goiânia, absolveu homem negro, autodeclarado indígena, acusado pelo MPF de racismo contra a raça branca por “reiteradas declarações pregando, com incitação ao ódio, a separação de raças”. Para o magistrado, “o conceito de racismo reverso constitui evidente equívoco interpretativo”. A acusação do parquet apontou que o acusado citou, nas declarações feitas no Facebook, caso de mulheres negras que se relacionam com homens brancos (caucasianos).
A defesa do réu, representado pela Defensoria Pública da União, pugnou pela absolvição. A defensora pública Federal Mariana Costa Guimarães defendeu, em alegações finais, a ausência da crime por falta do elemento formador do tipo de racismo reverso. “A presente inicial acusatória, ao fazer uma interpretação enviesada do tipo penal, afirmando a existência de racismo reverso, para além do enorme desserviço à causa negra, só confirma que o racismo está enraizado nas instituições e opera as estruturas da sociedade brasileira. […] Condenar um negro, autodeclarado indígena, por racismo, sendo a vítima uma pessoa branca, perfaz a desvirtuação da delimitação do tipo penal, que tem sua razão de ser na proteção das minorias étnicos raciais no país.”
Segundo a defensora, “em tempos de ódio nas redes sociais, de truculência da polícia, de morte de líder indígena, de falta de políticas públicas para as minorias, de esvaziamento dos direitos humanos, defender um jovem negro, indígena e pobre, acusado de ter praticado e/ou incitado discriminação ou preconceito de raça ou cor, exige esperança”.
Escravidão no Brasil – Após citar o tipo penal e jurisprudência do STF, João Azambuja explicou na sentença que, embora não restrito aos aspectos biológicos ou fenotípicos, a tipificação do racismo tem o claro objetivo de proteger grupos sociais historicamente vulneráveis de manifestações de poder que objetivam subjugá-los socialmente, ideologicamente, politicamente e negar a dignidade humana dos seus integrantes. “O racismo no Brasil é fato histórico – pretérito e presente – social, decorrente, principalmente, da adoção do regime escravocrata como modo econômico de produção”. O magistrado recorda no decisum que a escravidão formal no Brasil, que durou cerca de trezentos anos, foi caracterizada como forma de exploração da força de trabalho de homens e mulheres negros, oriundos da África, sustentada pelo tráfico negreiro. “Durante esse longo período, o homem negro, por não ser titular de direitos, não era tratado como ser humano, mas como coisa”.
Na sentença, o julgador citou inclusive Machado de Assis, que em sua obra Memórias Póstumas de Brás Cubas não deixou de anotar “a perversidade do sistema escravocrata no Brasil”. João Moreira Pessoa de Azambuja também lembrou que o racismo teve como vítima preferencial em terras tupiniquins justamente os povos indígenas. “A partir da colonização portuguesa, eles foram praticamente dizimados. Seus homens, assassinados; suas mulheres, estupradas e violadas; seus valores culturais e religiosos, usurpados.”
Equívoco interpretativo – De acordo com o magistrado, por se tratar de fato histórico e social, a discriminação e o preconceito racial não escaparam ao controle social, por meio do Direito, mediante a elaboração de diversas leis. Ele fez referência a trechos das alegações finais da defesa neste sentido. E continuou: “Evidentemente que a proteção constitucional, instituída ao longo do tempo, visa essencialmente a proteger minorias discriminadas em função de sua raça, etnia, orientação sexual ou identidade de gênero, mas especialmente negros e índios. Na sociedade brasileira, a pessoa branca nunca foi discriminada em razão da cor de sua pele. É dizer, jamais existiu, como fato histórico, a situação de uma pessoa branca ter sido impedida de ingressar em restaurantes, clubes, igrejas, ônibus, elevadores, etc.”.
O juiz recordou, ainda, que nenhuma religião de matriz europeia sofreu discriminação no Brasil, a ponto de seus praticantes serem perseguidos e presos pela polícia, ou terem seus locais de culto depredados e destruídos por pessoas de crenças compartilhadas pela maioria da população, tal como se deu com as religiões de matriz africanas. “Foram as crenças europeias que subjugaram não somente as religiões de matriz africana, como também os valores culturais e religiosos dos povos indígenas. […] Diante de tal cenário histórico e social, o conceito de racismo reverso constitui evidente equívoco interpretativo”. O magistrado esclareceu que não existe racismo reverso, dentre outras razões, pelo fato de que “nunca houve escravidão reversa, nem imposição de valores culturais e religiosos dos povos africanos e indígenas ao homem branco, tampouco o genocídio da população branca, como ocorre até hoje o genocídio do jovem negro brasileiro. O dominado nada pode impor ao dominante”.
Absolvição – Nessa linha, prosseguiu o juiz sentenciante, não faz sentido postular que a Lei nº 7.716/1989 teria a finalidade de proteger os grupos majoritariamente brancos contra discriminação, “até porque, contra esse grupo, a discriminação que existe no Brasil sempre foi positiva, ou seja, a esse grupo foram reservados os melhores empregos, hospitais, escolas, cargos públicos etc”.
Ao analisar o caso concreto, o magistrado concluiu que o fato narrado na denúncia não tem tipicidade material. E por duas razões: a) não existe prova de que o acusado tenha agido motivado pela intenção de ofender; e b) as postagens feitas pelo acusado não têm o condão de subtrair direitos ou privilégios sociais do grupo majoritário branco, dominante, que eventualmente tenha tido acesso às publicações transcritas na denúncia. “Anote-se que as próprias interlocutoras das mensagens publicadas no Facebook pelo acusado, testemunhas […] e […], ambas pertencentes ao grupo majoritariamente branco, esclareceram que não se sentiram ofendidas pelas postagens.” A sentença de absolvição do acusado foi proferida no dia 27 de janeiro.