A PEC 32/2020, da reforma administrativa, anuncia medidas que pretendem, segundo os seus idealizadores, conferir “maior eficiência, eficácia e efetividade à atuação do Estado”. Essa retórica de aparência modernizadora se repete em vários trechos da versão encaminhada ao Congresso Nacional pelo Ministério da Economia. O ofício que a acompanha destaca “a percepção do cidadão, corroborada por indicadores diversos, […] de que o Estado custa muito, mas entrega pouco”. Para o leitor curioso, seria legítimo reivindicar que esse enunciado fosse detalhado na sequência, com a explicação, por exemplo, de como funcionam os “indicadores diversos” que levaram à conclusão posta na frase. A expectativa, porém, será frustrada.

A mensagem do governo não demonstra a ineficácia das ações do Estado em áreas de atendimento essenciais. E não se incomoda com isso. Interessa-lhe, apenas, insistir na necessidade de “[se] pensar em um novo modelo de serviço público, capaz de enfrentar os desafios do futuro e entregar serviços de qualidade para a população brasileira”. Permaneceria, então, o “escopo maior de transformação […] que pretende trazer mais agilidade e eficiência aos serviços oferecidos pelo governo, sendo o primeiro passo em uma alteração maior do arcabouço legal brasileiro”.

Percebe-se, nessa lengalenga liberal, um objetivo preponderante: baratear a administração, com o enfraquecimento de serviços públicos e a desconstitucionalização de direitos assegurados aos trabalhadores do setor. Quanto à qualidade da “entrega”, colocada em frases generalizantes, os novos preceitos não garantem as melhorias que prometem.

Para a análise da PEC nº 32/2020, é preciso contextualizar as várias reformas trazidas a votação em tempos recentes. Elas começaram a ser concebidas na década de 1990, avançaram parcialmente nos anos seguintes, com alguns percalços e resistências, e ganharam velocidade depois de 2016, quando a crise política que atingiu o segundo mandato de Dilma Rousseff culminou com o impeachment votado pelo parlamento. Com Michel Temer na Presidência, foi dado impulso a um programa de expansão neoliberal. Um programa feito de encomenda para Fernando Collor de Mello, vencedor da eleição de 1989 numa disputa de segundo turno com Luís Inácio Lula da Silva. Collor não conseguiu terminar o seu mandato como chefe do Executivo, o que provocou a reacomodação das forças que o sustentavam. A intenção foi, desde sempre, retirar da Constituição de 1988 os avanços sociais, ainda limitados, que sobreviveram às investidas de grupos conservadores reunidos no Centrão (em sua versão primitiva).

Não seria exagero situar a PEC 32/2020 entre as medidas fomentadoras do Estado “enxuto” desenhado pelo capital financeiro. Outros avanços em direção a esse propósito já haviam sido obtidos, em especial no período pós-2016. Os principais deles: a) a Emenda Constitucional nº 95/2016, que congelou em vinte anos investimentos em áreas sociais; b) a lei das terceirizações; c) a reforma trabalhista; e d) a reforma da Previdência.

Na verdade, as alterações legislativas de agora consolidam um projeto diretamente vinculado às metamorfoses do capitalismo mundial ocorridas nas últimas décadas. Essas transformações vêm provocando a crescente flexibilização do emprego. O que faz a proposta em discussão no Congresso Nacional, portanto, nada mais é do que transportar a tendência de supressão de direitos trabalhistas para a administração pública. O seu conteúdo pode ser resumido em dois aspectos centrais: o esvaziamento de garantias conferidas ao funcionalismo e a criação de mecanismos facilitadores da transferência de atividades estatais para o setor privado.

Para o serviço público, as consequências tendem a ser altamente regressivas. Assim como a reforma trabalhista destruiu as bases de proteção do Direito do Trabalho, em nome de uma modernidade que promove a superexploração da mão de obra, a reforma administrativa caminha no sentido de devolver à administração pública o caráter patrimonialista do período anterior a 1930. Quem vai ganhar com ela, caso se transforme em emenda constitucional, serão os parasitas do setor financeiro, os exploradores de sempre.

Imediatamente, o prejuízo ficará com os barnabés sufocados por campanhas midiáticas que os atacam de modo implacável e feroz. Mas eles não serão os únicos atingidos. O caminho traçado remete a um tempo distante, de desassistência completa à maioria da população brasileira, que se pensava definitivamente sepultado pela Constituição de 1988.

 

Mário Montanha Teixeira Filho é consultor jurídico aposentado.