Quando entrei no avião, pensei: duas horas só para mim, desligado do mundo, com minhas paixões eternas.

Sentei-me. Na mesa, fui distribuindo os jornais, os livros, o bloco de notas, a lapiseira. Já podem servir as bebidas?

Só depois da decolagem, disse a aeromoça. Apertem os cintos.

Decolamos. O choro começou.

Havia um bebê três assentos atrás de mim que, assustado com a trepidação da máquina, deu corda aos pulmões com o talento de um Pavarotti. A mãe tentava acalmá-lo, com palavras meigas, mas o ruído do choro só provocava mais choro.

Em pânico, fui ao bolso do blazer para resgatar os fones. Primeiro choque: foram para o porão, junto com a mala. Segundo choque: ainda só tinham passado dez minutos.

Abri o livro, comecei a ler, e a reler, e a reler —voltava sempre às primeiras linhas, sem entender o que lia, impedido de avançar. Prometeu acorrentado à primeira página, com o choro do pirralho a comer-me as entranhas.

Suor. O início promissor de uma dor de cabeça. Felizmente, havia álcool. Bebi. Pedi para repetir. Repeti. Mas o choro, que agora era mais cavo, mais gutural, pairava sobre a cabine.

Avancei para os jornais. Mas a dor de cabeça aumentava, como uma mancha de óleo no mar limpo. Cerrei os dentes e, mesmo antes de perguntar —”onde estão os remédios? Onde está o Xanax?”—, a resposta apareceu com um sorriso maléfico —”no porão, está tudo no porão”.

Desisti dos jornais, descalcei-me para sentir o tapete sob os pés —dizem que ajuda—, devorei as unhas das mãos com espírito gourmet e olhei para o meu companheiro de viagem pela primeira vez desde a partida.

Companheiro, não, era uma mulher de certa idade, que olhava para as fotos no celular como se revisitasse umas férias recentes.

Olhou para mim. Olhei para ela e esbocei o sorriso de um desesperado. Ela devolveu o sorriso, sem uma ruga de ansiedade, e voltou a mergulhar nas fotos.

Não era a única. O choro e os gritos continuavam a envenenar a viagem. Mas, olhando ao meu redor, todos pareciam resignados com uma beatitude que não é deste mundo.

O medo chegou: Estarei a enlouquecer? Será que esses berros só existem na minha imaginação?

Soube de histórias, ouvi contar, li algures, num dos meus ataques de hipocondria. Gente normal que, de um momento para o outro, é assombrada por alucinações auditivas, sintoma de algo pior.

A aeromoça passou. Uma serenidade igual. Pensei em perguntar-lhe “a senhora ouve este choro? Ouve estes gritos?”. Mas temi passar por louco e, seguindo são Tomé, decidi ver para acreditar.

Olhei para trás. Tentei, por todos os ângulos, vislumbrar os responsáveis pelo pandemônio. Sem sucesso. Uma floresta de cabeças indistintas.

Levantei-me. Fui em direção ao banheiro e, passando pelos assentos do meu desassossego, encontrei uma jovem mãe, beirando os 30, com uma expressão desesperada, mas compassiva.

Nos seus braços, não havia nenhum bebê: apenas uma criança de oito ou nove anos, um menino, contorcendo-se como um animal ferido, o olhar contemplando o vazio do teto, soltando bramidos de terror e incompreensão.

Era ele quem estava acorrentado a um pesadelo interminável. O pesadelo da sua enfermidade.

A mãe, tentando segurar-lhe os braços, mantinha a boca encostada ao seu ouvido, repetindo palavras vãs e exaustas.

Depois da breve parada, acelerei o passo, sem saber para onde ir. Caminhei até o banheiro, não entrei, dei meia-volta, regressei ao meu assento, constrangido e derrotado.

Aterrissei na minha cidade. Abandonei o avião de cabeça baixa, esperei pela mala, saí do aeroporto e a minha tribo, cá fora, acenou a sua presença.

O meu filho, rigorosamente vestido com o equipamento da seleção portuguesa de futebol —camiseta número sete, escuso de dizer—, correu para o pai para exibir o traje.

A minha mulher não gostou da minha cara: “Correu bem a viagem?”

Sem saber o que dizer, contei-lhe a verdade, só a verdade, nada mais que a verdade: tinha-me esquecido dos livros e dos jornais no avião. “Dá para acreditar?” E os dois ficaram a olhar para mim, talvez divertidos, talvez assustados.

Quem poderia imaginar que a falta de bibliografia causava tanta tristeza na alma dos literatos?

 

João Pereira Coutinho é cronista, cientista político e escritor.