Guernica (detalhe) – Pablo Picasso

 

Não, meus amigos. Não voto em Bolsonaro.

O título diz respeito à frase que imaginei saindo da boca de um operador do Direito, de qualquer área. De um advogado, promotor, juiz, professor, pesquisador, defensor público, delegado, analista jurídico, enfim. De qualquer pessoa versada, ainda que de forma simplória, em ciências jurídicas.

Fiquei a imaginar qual seria a sequência dada à frase. Qual seria o motivo para um operador do Direito, honestamente, votar em Bolsonaro?

A dúvida me acomete há algum tempo. É perfeitamente compreensível que pessoas de fora do Direito votem no ex-militar. Seja pela afinidade com as ideias ou com o jeito desbocado, seja pela decepção com a política. É possível entender. Não tiveram contato, por pelo menos cinco anos de faculdade, com a Constituição e as leis. E muito menos com a prática diária, adquirida posteriormente, nos fóruns, tribunais, delegacias e outros locais.

Mas, e os operadores do Direito?

Uma bandeira famosa de Bolsonaro é a sua luta contra os direitos humanos, algo que, em tese, deveria deixar a turma jurídica de cabelo em pé. Afinal, ela conhece a história e a razão dos direitos humanos, ao menos em sua concepção moderna. Sabe como eles surgiram nas revoluções liberais do século XVIII. Conhece a sua internacionalização, ocorrida no pós-Segunda Guerra Mundial, em resposta aos horrores do nazismo. Sabe da sua importância, conhece seus princípios, e o fato de serem, como o próprio nome indica, inerentes a todo e qualquer ser humano. E não desconhece que normas internacionais protegem pessoas presas, adolescentes em conflito com a lei e outros grupos constantemente atacados pelo capitão-candidato.

Operadores do Direito conhecem a gravidade do racismo, e como ele deve ser combatido. Conhecem o repúdio que o Constituinte direcionou a essa prática, bem como os crimes a ele ligados. Tem noção de que desde 1968 o Brasil é signatário da convenção internacional de eliminação de todas as formas de discriminação racial. Portanto, sabem o quão absurdo é se fazer menção – especialmente em evento destinado a grande público – a uma pessoa negra como tendo o peso contado em arrobas, unidade de medida destinada a animais.

Mais até do que o racismo, operadores do Direito conhecem o caráter machista de nossa sociedade. Vivenciam a violência contra as mulheres no dia-a-dia forense. Conhecem a famosa “Lei Maria da Penha” e os tratados internacionais voltados à proteção da mulher, inclusive a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, elaborada aqui, em nossa aprazível Belém do Pará. Assim sendo, devem ter ficado no mínimo incomodados quando Bolsonaro disse a uma colega deputada que não a estupraria por ela “não merecer”.

Ainda sobre mulheres, o mais displicente estudante de Direito sabe que a Constituição consagra a igualdade de gênero, assim como a própria CLT. Logo, sabe o quão absurdo é um candidato à Presidência defender, abertamente, que mulheres devem ganhar salários menores do que os dos homens.

Operadores do Direito também sabem das consequências da homofobia. Sabem que, embora ela não seja criminalizada, há Estados, como São Paulo, que punem a sua prática administrativamente. Também sabem que o STF vem, reiteradamente, reconhecendo direitos importantes à comunidade LGBT. Logo, percebem o quão deslocado, no tempo e no espaço, é o discurso de candidatos como Bolsonaro sobre o tema.

O pessoal do Direito sabe que a pena de morte é vedada em tempos de paz, só sendo admitida para certos crimes militares, praticados durante estado de guerra. Também sabe que sua instituição é juridicamente impossível, por ofensa à cláusula pétrea e a tratados internacionais. Consequentemente, a turma do Direito sabe que a defesa da pena de morte não passa de bravata política.

Outra das bandeiras de Bolsonaro diz respeito à busca de aprovação de uma “excludente de ilicitude” que beneficie policiais, que por ela estariam automaticamente amparados caso matem alguém no exercício de suas funções. Penalistas que o apoiam teriam que, pelo menos em seu íntimo, encontrar (inventar) um fundamento dogmático para a criação dessa “excludente” automática, que na verdade nada mais seria do que uma carta branca para homicídios.

Por fim, os operadores do Direito conhecem História, e não ignoram os crimes praticados pelos agentes do Estado brasileiro durante a ditadura militar. Também sabem que o Brasil foi internacionalmente condenado pelos fatos praticados por seus agentes naquele sombrio período de nossa história. Assim, devem sentir calafrios a cada defesa que o ilustre candidato faz daqueles anos de horror.

Essas são algumas das questões. Como haveria muitas outras, optei por um rol exemplificativo. A ideia foi levantar pontos de tensão, de conflito, que certamente geram reflexão em operadores do Direito que apoiem um candidato que age contrariamente a tudo aquilo que, ao menos em tese, estudaram.

E quanto a mim, para que seja definitivamente superada a impressão trazida pelo título do artigo, deixo claro que meu voto não pode ser Bolsonaro. Os motivos estão acima, sem paixões.

Não se trata de esquerda ou direita. A questão é o Direito, enquanto ciência.

 


Bruno Bortolucci Baghim é defensor público do Estado de São Paulo, membro do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública e fundador do portal Pessoal dos Direitos Humanos