Em marcha: no governo atual, ‘a esfinge militar voltou a desafiar a política’
A esfinge militar voltou a desafiar a política brasileira. Como não ocorria desde os anos 1980, nomes de generais da reserva como Mourão, Villas Bôas, Heleno, Santos Cruz — a lista é longa — voltaram a aparecer no noticiário, envolvidos nas sucessivas crises do governo de Jair Bolsonaro, seja como protagonistas, seja como parte de esforços para diminuir os danos (o porta-voz da Presidência, Rego Barros, é um general da ativa). Ao contrário do período ditatorial (1964-1985), desta vez não são as tensões entre os próprios militares que chamam a atenção. É o choque entre o núcleo castrense do novo governo e uma ativa extrema direita civil. Esta tem um patrono, o polemista Olavo de Carvalho, apoiado pelos três filhos do mandatário e pelos titulares das pastas da Educação e do Itamaraty. A posição do próprio presidente diante desse conflito é surpreendente. Ao ordenar comemorações nos quartéis no aniversário do golpe de 1964, Bolsonaro associou as Forças Armadas à ditadura militar de 1964-1985. Assustou-as ao deixar em suspenso uma possível intervenção na Venezuela ou a mudança da embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém. Permitiu que seus filhos divulgassem diatribes de Olavo contra generais proeminentes do governo, num crescendo que está longe de ser interrompido. É bom lembrar que, até há pouco, esse panorama não estava escrito nas estrelas. É unânime entre os estudiosos do tema que a mudança que levou os militares de novo ao Planalto foi de certa forma imprevista. É possível vincular a aproximação entre militares e Bolsonaro a uma nova ideologia militar?
Há quem diga que sim, e busque as origens da situação atual em ideias que há muito circulam na caserna. Em contraste, para o ex-chanceler e ex-ministro da Defesa Celso Amorim a caserna “não carrega hoje em dia uma ideologia pronta”, como em 1964. Mas é impossível negar que houve uma mudança significativa na atitude militar, sobretudo do Exército, diante da crise política nacional. O marco divisor desse processo foi a divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro de 2015, que responsabilizou toda a cadeia de comando do regime do pós-1964 pelas torturas e desaparecimentos de presos políticos.
Um retrato desse estado de espírito foi fornecido por um coronel da reserva, crítico da aproximação do comando com a candidatura do ex-capitão, em conversa com o autor: “os motivos principais e determinantes do apoio a Bolsonaro não se prendem a razões de fundo ideológico”. Ao contrário, continua, “o máximo de motivação política que os alimenta é a mesma que levou os eleitores em geral a votar” naquele candidato, expressa em máximas como “tem que tirar a esquerda – e o PT – que acabou com a economia do país pela corrupção”, ou “o que o Brasil precisa é dos valores militares para dar certo”, ou ainda: “está faltando ordem e disciplina na sociedade”. O substrato desses sentimentos é a antiga autoimagem militar de superioridade moral diante do mundo paisano, e dos políticos em particular. A crescente indignação nos quartéis foi acompanhada pela mudança de posição do comandante da força terrestre, nomeado por Dilma Rousseff em fevereiro de 2015, o general Eduardo Villas Bôas, visto então como um moderado e legalista. Com o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão do governo Temer, o general passou a expressar regular e publicamente as visões do alto comando sobre o processo político. Em agosto de 2016, associou a visibilidade da candidatura Bolsonaro à “exacerbação sem sentido do politicamente correto”. Em janeiro de 2019, em seu discurso na passagem da chefia do Exército, na presença do presidente, foi mais explícito: “O senhor traz a necessária renovação e a liberação das amarras ideológicas que sequestraram o livre pensar, embotaram o discernimento e induziram a um pensamento único”. Ouviu em resposta: “O que já conversamos, morrerá entre nós. Mas o senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui, muito obrigado mais uma vez”. Entre esses dois pontos no tempo, a 3 de abril de 2018, Villas Bôas divulgou mensagem no Twitter, na véspera do julgamento do habeas corpus impetrado em favor do ex-presidente Lula no Supremo Tribunal Federal, na qual dizia “assegurar à nação” que o Exército compartilhava “o anseio de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia” de “todos os cidadãos de bem”. Posteriormente, justificou a ameaça como movimento para assumir o “controle da narrativa” no Exército, antes que algum aventureiro o fizesse. Imbuído dos sentimentos encampados por seu comandante, o Exército — Marinha e Aeronáutica mostram-se mais cautelosas — caminhou com gosto para a formação do chamado “núcleo militar” do governo Bolsonaro. E, em seguida, para o centro da disputa de poder dentro do Planalto, que se configurou nos seguidos ataques do guru do bolsonarismo aos militares em geral e ao vice-presidente Mourão em particular. Estes culminaram no vídeo em que o “filósofo” caracterizou o presidente como “um mártir” por “aguentar esses filhos da puta que tem em volta dele”. Ganhou do Itamaraty a Ordem de Rio Branco em seu mais alto grau.
Para quem, como Villas Bôas, tinha em mente guiar-se pelos princípios da legalidade, legitimidade e estabilidade, tudo isso parece revelar uma completa reversão de expectativas. Bastaram os primeiros meses de governo para transformar o mais respeitado general do Exército, de grande eleitor e confidente do chefe de Estado, em alvo, ele próprio, dos ataques virtuais do bolsonarismo civil, chamado por Olavo de Carvalho de “doente numa cadeira de rodas”, entre outros epítetos impublicáveis. Bolsonaro não o defendeu. Mesmo depois de uma reunião no quartel-general do Exército entre ele e a cúpula das Forças Armadas, a 7 de maio. Feitas as contas, até aqui, a pergunta que inspirou este artigo permanece sem resposta. Mas há nuvens ameaçadoras no horizonte.
João Roberto Martins Filho é professor titular sênior de ciência política da Universidade Federal de São Carlos.
(Texto indicado por Mário Montanha Teixeira Filho)