Vale do Paraíba: em meados do século XIX, no interior de São Paulo, escravos trabalham em fazenda café 

 

Um desabafo ganhou notoriedade nas redes sociais no dia de 20 de novembro, data que registra o Dia da Consciência Negra. O texto, reproduzido a seguir, foi escrito por Melque Silva, militante em defesa da justiça racial, e faz o resumo das circunstâncias em que se deu um dos episódios mais vergonhosos e longos da história brasileira: a escravidão de povos africanos.

 

 

Este é o meu pai [foto acima], Carlos Pereira da Silva. Nasceu em 10/4/1914 e faleceu em 1981, aos 67 anos, com a 4ª série primária – isso porque cursou o Mobral e a escola após os 40 anos. Se estivesse vivo, teria completado 105 anos. Ainda não descobri de onde vieram esses sobrenomes. Da África não foi.

A abolição se deu em 1888. Ouvi meu pai dizer que a mãe dele (minha avó) nasceu livre, mas que a mãe dela (minha bisavó) tinha sido escravizada. Portanto, sou a terceira geração nascida em liberdade. Eu nunca ouvi ele falar sobre indenizações do governo ou de algum sinhozinho ou sinhazinha (brancos) pelo trabalho escravo realizado pelos meus ancestrais raptados da África. Estudando um pouco, entendi por que as minhas avós não sabiam ler e por que meu pai aprendeu a ler somente depois de adulto. E por que eles não possuíam propriedade.

Havia uma lei que proibia os negros de frequentar escolas, porque eram escravos ou porque, segundo se afirmava, eram portadores de moléstias contagiosas. Outras leis proibiam negros de dar emprego, alugar ou vender imóveis. E ainda tinha a lei que os proibia de cultuar religiões diferentes da católica. Havia lei que os proibia de falar o idioma africano de origem ou de usar o nome da sua família ancestral africana, e que determinava que eles só poderiam usar um nome “cristão” e português.

Dessa forma, é praticamente impossível um africano nascido no Brasil, como eu, identificar o país africano de origem, ou requerer dupla cidadania, como ocorre com as pessoas de traços europeus.

Falando em catolicismo, foi o papa Nicolau V que editou o primeiro documento legitimando a captura de negros africanos para reduzi-los à escravidão perpétua, com o edito e a promulgação da bula Dum diversas.

Diante de tanta desqualificação forçada, fizeram, ainda, a “lei da vadiagem” para prender os desempregados – lógico que eram os negros. Nesse mesmo tempo, o Brasil trazia imigrantes brancos da Europa, com tudo pago, trabalho garantido, terras e insumo, escolas para os filhos e mesada para se estabelecerem da forma mais confortável que pudessem. Esse sistema foi regulado pelo Decreto nº 528/1890.

Entende agora por que os mais altos salários e os melhores cargos políticos e públicos dos diversos órgãos do Estado e do empresariado são destinados a pessoas com sobrenomes esquisitos, de pronúncia complicada, sobrenomes estrangeiros (não em português), que quase ninguém tem igual?

Pesquise os sobrenomes dos juízes, dos membros do Ministério Público, dos membros das Defensorias Públicas. Busque também os sobrenomes dos maiores banqueiros e empresários do Brasil.

O objetivo do governo brasileiro era branquear (eugenia) o Brasil e em 100 anos eliminar os negros pela fome, pela doença, pelo encarceramento e pela morte por intervenção policial. Dessa forma, legitimaram a exclusão dos negros do acesso à educação, à qualificação, à empregabilidade e à habitação. O Brasil chegou a ter até uma Constituição eugênica (1934).

Não fosse o grande poder de sobrevivência e de resistência que nós, os negros, demonstramos, o Brasil seria hoje como a Argentina. Não se veem negros naquele lugar! Na Argentina só há brancos, e é um país que praticou a escravização de pessoas negras africanas.

Para quem quiser saber mais um pouco sobre a consciência negra despertada e desenvolvida em mim, ou por que estou digitando no celular enquanto as palavras surgem em minha mente, lá vai síntese copiada de um texto que retirei da página Quebrando o tabu, cuja confiabilidade posso confirmar porque os dados combinam com as minhas antigas fontes de pesquisa.

  • 1837 – Primeira lei de educação: negros não podem ir à escola.
  • 1850 – Lei das terras: negros não podem ser proprietários.
  • 1871 – Lei do ventre livre: quem nascia livre?
  • 1885 – Lei do sexagenário: quem sobrevivia para ficar livre?
  • 1888 – Abolição (atentem, foram 338 anos de escravidão).
  • 1890 – Lei dos vadios e capoeiras: os que perambulavam pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada, iriam para cadeia. Eram mesmo “livres”? Dá para imaginar qual era a cor da população carcerária daquela época? Você sabe qual é a cor predominante nos presídios hoje?
  • 1968 – Lei do boi:  a primeira lei de cotas! Não, não foi para negros, mas para filhos de donos de terras, que conseguiram vaga nas escolas técnicas e nas universidades (volte e releia sobre a lei de 1850!!!).
  • 1988 – Nasce nossa atual Constituição. Foram necessários 438 anos para ter uma Constituição que dissesse que racismo é crime! Na maioria das ocorrências, o racismo é minimizado enquanto injúria racial, e nada acontece.
  • 2001 – Conferência de Durban: o Estado reconhece que terá que fazer políticas de reparação e ações afirmativas. Mas não foi porque acordaram bonzinhos! Não foi sem luta. Foram décadas de lutas para que houvesse esse reconhecimento! E olha que até hoje tem gente que ignora!
  • 2003 – Lei 10639: estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira”. Que, convenhamos, não é cumprida.
  • 2009 – Primeira política de saúde da população negra (que continua a ser negligenciada e violentada – quem são as maiores vítimas da violência obstétrica?) no sistema de saúde.
  • 2010 – Lei 12288: Estatuto da Igualdade Racial em Em um país que se nega a reconhecer a existência do racismo.
  • 2012 – Lei 12711: cotas nas universidades (a revolta da casa grande sob o falso pretexto meritocrata).
    Nossa sociedade é racista e ainda escravocrata, e essa linha do tempo está aí para evidenciar.

Digo, portanto, que consciência negra é não esquecer o que fizeram contra a minha família africana e as de todos os meus semelhantes africanos, no passado e na atualidade! Nunca esquecerei e não deixarei a minha descendência esquecer tão grande mal!

 

Melque Silva