Fazer listas é um hábito que está impregnado em nosso cotidiano: lista de compras, lista de contatos, lista de gastos, lista de tarefas. É um exercício quase sempre prazeroso, por meio do qual organizamos nossas atividades. Em Listas Extraordinárias (2014), Shaun Usher reúne 125 listas e assim nos convida a descobri-las na apresentação do livro: “Várias dessas listas dão conselhos para seguir durante toda a vida. Algumas nos revelam um pequeno momento da história que desconhecíamos. Outras simplesmente são uma delícia de ler. Cada uma, porém, certamente é uma lista extraordinária”.
Listas podem ainda designar um mero e simples exercício classificatório, como, aliás, deliciosamente efetuado por Nick Hornby em Alta Fidelidade (2013). É difícil não apreciar seus Top 5 para separações, músicas para um funeral, primeiras músicas do lado A, filmes e, sobretudo, “seus” cinco melhores livros. Eis sua lista: Cash, de Johnny Cash com Patrick Carr; Snow Crash, de Neal Stephenson; Zen e a arte da manutenção de motocicletas, de Robert Pirsig; os guias de rock da Trouser Press (o que importaria em cinco livros); além de alguma coisa do Kurt Vonnegut. Confesso que até subscreveria essa lista, embora minhas escolhas provavelmente recaíssem sobre a ficção científica de Philip K. Dick e seu Androides sonham com ovelhas elétricas?; o ritmo beatnik de On the road, de Jack Kerouac; o escracho da Pornopopeia, de Reinaldo Moraes; a iniciação poética experimentada com Quampérios, de Chacal; além de qualquer coisa do bom e velho Charles Bukowski. Definitivamente, não é difícil perceber que, quando fazemos listas, estamos a falar de nós mesmos.
O ministro Eros Grau indicou cinco livros que importavam em quinze volumes, cujo critério de escolha era o que “levaria comigo se condenado ao isolamento em uma ilha desabitada, sem nenhum outro ser humano senão eu.” O ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo listou dez livros para um estudante de direito com aspirações políticas. Ives Gandra da Silva Martins Filho, ex-presidente do TST, estabeleceu três premissas – fugir da vaidade ilustrada, desconsiderar os textos profissionais e ordenar suas escolhas pelo número de releituras – para listar os dez livros que mais teriam lhe influenciado. O juiz Sérgio Moro, ao enumerar dez livros de direito fundamentais, listou dois relacionados com a italiana Operação Mãos Limpas: Cosa Nostra: o juiz e os “homens de honra” e Excellent Cadavers: the Mafia and the Death of the First Italian Republic. Guilherme Guimarães Feliciano, atual presidente da Anamatra, também contribuiu com uma lista de dez livros essenciais para um jovem juiz do trabalho. O mesmo espírito de recomendação para um jovem juiz presidiu a lista de dez livros de direito constitucional formulada pelo ministro Gilmar Mendes.
Numa série construída pelo portal Jota, há ainda livros fundamentais para um jovem delegado civil, defensor público, procurador da República, procurador do trabalho, advogado criminalista ou civilista, além de uma lista para quem quer trabalhar com arbitragem. É um exercício arbitrário, que pode se revelar interminável e contraproducente. Afinal, estas listas falam pouco para o mundo lá fora e revelam muito de quem as formula.
No meio de todas essas listas, o Jota publicou a lista dos 20 livros jurídicos mais vendidos no ano passado, cuja elaboração foi feita pela consultoria Nielsen, a partir da ferramenta Bookscan. Curioso, fui dar uma olhada na lista e fiquei estarrecido: os cinco livros mais vendidos são vade mecums de diferentes editoras, todos eles devidamente adjetivados: tradicional, compacto, acadêmico de direito, compacto espiral e OAB e concursos! Mas fica pior: dos vinte, treze são mera reprodução de texto legislativo, incluindo o Novo CPC, a CLT, o CDC e um Minicódigo Civil e a Constituição Federal, que pesa mais de meio quilo. Em tempos de acesso fácil via internet, imaginei que havia algo errado. Mas a lista não cansa de surpreender. Seis livros são manuais de direito, cujas adjetivações remetem às ideias de direito esquematizado e descomplicado. Posso estar enganado, mas parece que nossos leitores anseiam por respostas prontas.
No final das contas, entre os vinte livros há apenas um que não é mera reprodução de texto legislativo ou manual de direito: é o clássico Dos Delitos e das Penas (1764), de Cesare Beccaria, que aparece em décimo quarto lugar na lista e pode ser facilmente obtido de forma gratuita na web. Definitivamente, há algo de errado. Reiterando que listas são um indicativo de quem as formula, fiquei imaginando o que a lista nos fala sobre o leitor de direito.
Na medida em que obras jurídicas são lidas essencialmente por estudantes e profissionais de direito, a lista dos mais vendidos de 2017 revela, por um lado, o fracasso do ensino jurídico e, por outro lado, o caráter utilitário com que profissionais utilizam essa literatura, que não produz qualquer viés analítico de contexto. É como se o direito se limitasse às normas postas pelo Estado e elas existissem desprovidas de suas circunstâncias, de uma reflexão sobre a sociedade em que estão inseridas. Esta é, sem dúvida, uma perspectiva preocupante, ainda mais quando o Poder Judiciário, onde atua a maioria dos leitores, é cada vez mais chamado a funcionar como árbitro da vida social.
No fundo, nosso leitor não parece estar à procura de textos reflexivos e críticos, mas sim em busca de atalhos para respostas fáceis. É uma perspectiva estarrecedora, quando pensamos nas gerações futuras que se encarregarão de dizer o direito e seu canhestro processo formativo, que privilegia a memorização e padrões esquemáticos e simplificados. É uma perspectiva frustrante, pois há uma farta literatura jurídica de qualidade, que não merecia ser desvalorizada por seus potenciais leitores. Enfim, é uma perspectiva angustiante, pois revela que nossos árbitros sociais constroem suas representações profissionais de forma esquematizada e descomplicada. É uma pena, pois a vida está longe de ser assim.
Roberto Fragale Filho é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).