Débora Moura: vítima de comentários preconceituosos nas redes sociais
Recentemente, as figuras de duas pessoas com deficiências surgiram como destaques na mídia. O primeiro caso que chamou a atenção foi a agressão em forma de ironia preconceituosa que a desembargadora Marilia Castro Neves, do TJRJ, praticou contra a professora Débora Araújo Seabra de Moura, conhecida e reconhecida pelo fato de ser a primeira professora com Síndrome de Down do Brasil.
O segundo caso foi de Ana Tereza Baeta Campomizzi, mulher com deficiência física, cadeirante, que teve que recorrer à justiça para anular deliberação em assembleia condominial do Edifício Parque Itália, em Juiz de Fora-MG, proibindo os porteiros do condomínio em que reside de lhe prestarem suporte.
Como ponto de partida para a reflexão, devemos denotar que o histórico de luta das pessoas com deficiência culminou no que hoje é denominado o “modelo social da deficiência”, reconhecendo a deficiência como expressão da diversidade humana, e não como desordem biológica. A deficiência, nesse sentido, é a consequência de barreiras físicas (no ambiente) ou atitudinais (preconceitos) que impede o pleno gozo dos direitos por esse grupo de pessoas que expressa em seu corpo ou seu intelecto uma dimensão da diversidade humana.
Além disso, a discriminação em razão de deficiência é crime, com previsão no artigo 88 da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146, de 6 de Julho de 2015), que prevê pena de 1 a 3 anos e multa para quem praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência. O parágrafo 1º, do artigo 4º dessa lei explica que se considera discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.
Ou seja, tratar com desdém uma pessoa com deficiência com o propósito de anular o reconhecimento do direito a ser professora é crime e, além disso, a pena é de 2 a 5 anos se o crime for cometido por intermédio de meios de comunicação social, como no caso da desembargadora do TJRJ. No caso do condomínio, o crime também fica configurado na medida em que foi recusada a adaptação necessária ao pleno exercício do direito de ir e vir e de morar de Ana Tereza, e na medida em que os condôminos lavaram as mãos para Ana e para todo o conjunto de leis existentes em nosso ordenamento jurídico.
Apesar do fato de Ana Tereza ter conseguido reverter a decisão ilegal e discriminatória adotada pelos condôminos do Edifício Parque Itália no Judiciário, é curioso que a fundamentação utilizada pelo Judiciário brasileiro se restringiu a analisar o dano moral sofrido numa perspectiva do Código Civil e com referências genéricas à dignidade humana. Embora acertada, a decisão do Judiciário deixa evidente a arraigada tradição da desvinculação da figura da pessoa com deficiência enquanto grupo minoritário que luta por afirmação política e jurídica, seja na dinâmica processual, seja na pauta dos movimentos sociais em geral.
No caso em análise, as decisões no curso da lide que enfrentaram o mérito restringiram-se tão somente ao reconhecimento de danos extrapatrimoniais a serem discutidos mediante a responsabilidade pautada pelo Código Civil, abrindo mão de qualquer referência aos documentos nacionais e internacionais que se dedicam exclusivamente às garantias do grupo minoritário, tal como a Convenção da ONU Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (incorporada com estatuto de Emenda Constitucional pelo Decreto 6.949/09) e a Lei Brasileira de Inclusão.
Ao reconhecer a pessoa com deficiência como minoria, reconhece-se que ela é vítima de violações estruturais que demandam a adoção de medidas e métodos de enfrentamento que vão além da mera reparação pecuniária entre indivíduos com o mesmo estatuto e poder social.
O que queremos ressaltar aqui é que a ausência do controle de convencionalidade em lides envolvendo pessoas com deficiência não colabora para o confronto das violações estruturais suportadas por elas, tal como as barreiras atitudinais que marcaram os episódios das duas mulheres referidas neste texto, uma vez que essas infrações demandam a adoção de contramedidas específicas afirmativas, constantes em diplomas legais que se debruçam sobre a temática de maneira aprofundada.
A mera aplicação do Código Civil atesta como causa da indenização a existência de um dano como mera relação de causa e efeito da ação de particulares e não como consequência de um preconceito estrutural contra as pessoas com deficiência. Isso pode ser afirmado mediante a aplicação dos diplomas legais voltados a esse grupo, tal como a Lei Brasileira de Inclusão que, é importante frisar, não sancionaria os particulares tão somente pelo dano suportado por Ana Tereza, mas, sobretudo, pela discriminação em razão da deficiência decorrente da recusa na implementação de adaptações razoáveis, tal como preceitua o artigo 4º, parágrafo 1º, do referido diploma legal.
Reconhecer a deficiência como fator discriminatório, seja dentro ou fora do Poder Judiciário, colabora para despertar toda a sociedade para a necessidade do reconhecimento e enfrentamento das múltiplas formas de barreiras atitudinais que surgem no cotidiano, para além da questão patrimonial e arquitetônica. Isso vale para os ataques sofridos por Ana Tereza e Débora, momento em que lhes foram negados o direito à existência, questionando-se qualquer chance de alcançarem a plena realização pessoal pelo simples fato de desdobrarem sua existência na figura da interdependência, tendo tomados seus corpos enquanto anormalidades biológicas e sociais.
Dessa maneira, surge como evidente a necessidade de se reconhecer que os estigmas sociais são fatores tão determinantes como os arquitetônicos na construção e manutenção de um cenário em que milhares de pessoas com deficiência permanecem reclusas em suas casas pelo fato de, a todo o momento, terem questionada sua dignidade e capacidade, impossibilitando a construção de qualquer projeto de vida.
Em última análise o modo pelo qual ambas se fazem estar no mundo lança-nos à reflexão sobre a fragilidade do dogma de que uma vida digna só se perfaz pela total independência (se é que ela existe), e o quão comum é a construção de baixas expectativas sociais lançadas sobre as pessoas com deficiência.
Cabe, por fim, valermo-nos das palavras de Antonin Artaud, parafraseada por Nise da Silveira: “há dez mil modos de ocupar-se da vida e de pertencer à sua época, há dez mil modos de pertencer à vida e de lutar pela sua época”. Seguimos lutando, e pertencendo.
Lucas Silva Lopes é pessoa com deficiência, estudante de Direito da PUC-Campinas e pesquisador de iniciação científica na linha de cooperação jurídica internacional
Pedro Pulzatto Peruzzo é professor pesquisador da Faculdade de Direito da PUC-Campinas