Manifestação: em 2022, trabalhadores lembraram, com protestos, os dez anos da desocupação do Pinheirinho (foto: SindMetal/SJC)

 

O Pinheirinho, uma ocupação na Zona Sul de São José dos Campos, no interior de São Paulo, organizada a partir de 2004, nunca foi visto com simpatia pelas autoridades locais, que pretenderam, desde o início, enfraquecer a resistência dos sem-teto ou simplesmente expulsá-los das casas que haviam sido construídas no terreno. A legalização não poderia acontecer, sob pena de servir de paradigma para outros movimentos sociais. Em outras palavras, o Pinheirinho era um “mal” a ser eliminado pelo poder público. O perigo não estava apenas no fenômeno que motivou a disputa pela terra – a crise do sistema habitacional –, mas no que se passava dentro da ocupação. Formou-se, ali, um agrupamento autorregulamentado, com a reprodução informal de bairros legalizados. Ao mesmo tempo, os habitantes daquela comunidade estavam subordinados a um sistema jurídico próprio, não-estatal, em que regras de convivência estabeleciam a distribuição de parte dos bens conquistados e os padrões de comportamento individual. Formava-se, em torno disso, um consistente arcabouço de autodefesa.

 

Caso se multiplicassem experiências como aquela, a ordem estabelecida seria ameaçada. A gigantesca área ocupada, de mais de um milhão de metros quadrados, pertencia à massa falida da Selecta Comércio e Indústria S.A., empresa controlada por Naji Robert Nahas. Nos marcos da ordem jurídica, o currículo polêmico de Nahas, condenado por crimes contra e economia do País – acionista majoritário de vários empreendimentos, ele inventou um esquema de movimentação artificial do mercado que levou à quebra da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, em 1989 –, não poderia, por si só, ser utilizado como justificativa para a expropriação dos seus bens. Tão certo quanto isso é que não caberia ao Estado, no sentido inverso, movimentar o peso da sua máquina burocrática para garantir a propriedade de um imóvel cuja titularidade nunca chegou a ser devidamente comprovada, e que não cumpria nenhuma função social.

 

A documentação do sítio pertencente à Selecta Comércio e Indústria S.A. apresenta indícios de irregularidades, reforçados pelo histórico da formação dos bairros em São José dos Campos – a Zona Sul, onde se localizava o Pinheirinho, pertenceu a uma família de alemães assassinada em 1969, e relatos de antigos habitantes dão conta de que a maior parte daquela área foi grilada. Essa informação é relevante, pois lança dúvidas sobre a autenticidade dos assentos cartorários exibidos na ação que resultou no despejo.

 

No momento da desocupação, que aconteceu na madrugada de um domingo, 22 de janeiro de 2012, existiam interpretações conflitantes sobre a execução da liminar de reintegração de posse do terreno, autorizada pela 6ª Vara Cível de São José dos Campos. As diferenças colocaram em lados opostos a Justiça Federal, que havia determinado a suspensão da ordem de despejo, e a Justiça Estadual, que queria desmobilizar o Pinheirinho a qualquer custo. Quando se coloca diante de situações desse tipo, a magistratura tradicional tende a optar por um comportamento discreto. Essa cautela, porém, desapareceu nos momentos decisivos do despejo. Num clima tenso, a violência institucional foi assumida unilateralmente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Quando entenderam necessário para chegar ao resultado previamente definido, desembargadores e juízes auxiliares ignoraram – ou subverteram – a legislação processual.

 

A intensidade das disputas e a posição “de classe” exibida pelo Poder Judiciário estadual provocaram a reação imediata de organizações nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos, que demandaram explicações sobre o ocorrido. Em suas respostas, os condutores do processo não conseguiram esconder que agiam com o propósito de declarar a intangibilidade de uma garantia cujo alcance constitucional não é absoluto: a propriedade privada. Numa elaboração teórica forçada por interesses econômicos, o direito à moradia ficou em plano secundário, o que revela a incapacidade do discurso dogmático de absorver a presença, no centro da vida política e jurídica, dos movimentos sociais e suas pautas coletivas.

 

Nada disso chegou a surpreender. A Justiça, ainda que dividida em compartimentos (esferas de competências estabelecidas em lei), tende a funcionar como uma unidade orgânica. No caso do Pinheirinho, o equilíbrio do sistema foi ameaçado quando da imposição do entendimento técnico-jurídico (e político) do chefe do Judiciário paulista. Mesmo assim, a instituição se preservou: o choque entre a Justiça Federal e a Justiça Estadual, que era possível e esperado, simplesmente não ocorreu. Ao contrário disso, o que se viu nos momentos seguintes à desocupação foi o restabelecimento da “normalidade”. O despejo passou para a categoria dos fatos consumados, e a questão central que ele suscitou – a crise de moradia – perdeu significado jurídico, retornando ao campo dos problemas a serem enfrentados pelos Poderes Executivo e Legislativo.

 

Ainda que se considerem os limites do “direito burguês”, a desocupação não poderia ter acontecido. Ela foi ilegal. Acontece que a ilegalidade também faz parte do “modus operandi” dos agentes do Estado. Verificado o conflito, o Poder Judiciário abandonou a análise sistemática dos fatos e das normas, que lhe seria exigível, para se restringir ao papel de órgão autorizador do emprego da violência. E a violência atingiu setores da população desprotegidos economicamente. Já a propriedade privada, direito que deveria estar condicionado a uma função social negada pelos “donos” do Pinheirinho, recebeu a tutela plena Estado.

 

Foi assim, como de costume, como sempre foi.

 

Mário Montanha Teixeira Filho é consultor jurídico aposentado.