Em artigo publicado em 27 de dezembro de 2018 no portal Consultor Jurídico (Conjur), o jurista Lenio Luiz Streck, pós-doutor em direito e professor de direito constitucional, faz uma análise crítica sobre as distorções das técnicas de interpretação das leis. Segundo ele, dispositivos que são claros em seu conteúdo estão sendo “reinterpretados” por uma corrente “ativista” de traços conservadores: “Negar a clareza do dispositivo que garante a presunção da inocência é ativismo. Às avessas, mas é. Insisto: ativismo é ignorar a constitucionalidade de um dispositivo que se adequa aos princípios subjacentes ao texto constitucional segundo o qual ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’. Falo desse dispositivo para exemplificar melhor o que estou dizendo”.

Confira, abaixo, a íntegra do artigo.

 

People in togas – Elvira Basic (Croácia), 2010


O motim hermenêutico e os mitos do ‘bom’ e do ‘mau’ ativismo

Lenio Luiz Streck

 

Hoje, enfrentarei dois mitos que povoam o imaginário jurídico! Peço paciência, então, para uma leitura mais longa. Venho alertando de há muito acerca dos males do ativismo judicial. Nos últimos anos, por sinal, engendrou-se um novo tipo de ativismo: o ativismo às avessas, de índole conservadora (no sentido de reacionário), espécie de motim hermenêutico (hermeneutic riot).

“Ativismo conservador, professor?” Conservador não é aquele que conserva? Ativismo não é justamente o contrário?”. A pergunta é válida. Mas decorre de uma compreensão equivocada sobre o significado de ativismo – algo para o qual venho igualmente alertando. Observo que, em parcela da comunidade jurídica, o conceito de ativismo ainda é raso – já vi pesquisa em que até declaração de inconstitucionalidade, feita corretamente, foi cravada como “ativismo”. (Obs.: a GloboNews gosta muito desse tipo de análise.)

Nesse nicho epistêmico, acho inusitada e/ou peculiar (para ser generoso) também a interpretação da obra de Dworkin feita por esse segmento. Interessante como insistem em ligar Dworkin a Barroso ou vice-versa. Moralizar o Direito, como faz Barroso, tem a ver com o que de Dworkin, mesmo? Trata-se de (mais) uma subleitura de Dworkin, para quem o Direito, entendido como um ramo da moralidade política, tem uma autonomia própria que pressupõe níveis de institucionalidade, de padrões compartilhados, aspectos que afastam peremptoriamente qualquer tipo de moralização subjetivista. Por que é tão difícil entender isso?

By the way, falando em ativismos, o nosso “champion” nesse terreno é, certamente, o professor e ministro Barroso — cujos textos defendem um ativismo “soft”, e cujas decisões são, sim, muitas vezes, ativistas “de verdade”. Ativismo raiz, como no caso do indulto de 2017 (ele reescreveu o Decreto Temer do início ao fim). Permitam-me uma digressão: o que o ativismo “autêntico” de Barroso tem a ver com Dworkin? Tenho notado uma certa forçação dessa barra nas análises tupiniquins sobre a trajetória da corte. Tenho a nítida impressão de que não descansarão enquanto não acharem um Earl Warren para chamarem de seu, se é que me entendem.

Mas vamos em frente.

Ativismo é uma coisa; judicialização é outra. O ovo da serpente de tão comum equívoco é a crença de que ativismo é sempre progressista, fofinho, sempre protetor de direitos e que é vanguarda. Ledo engano. Pela enésima vez digo isso.

Solapar direitos legítimos, que materializam garantias constitucionais, é, sim, ativismo. Na veia. Só que às avessas. Permitir que o Legislativo faça o que bem entende, reduzindo a democracia a uma questão formal, à maioria e nada mais que a maioria, é, também, ativismo. Dizer mais do que se deve dizer, inventando direito, é igualmente ativismo; assim como dizer menos do que se deve dizer… também é ativismo.

Daí se segue que o ativismo às avessas é exatamente não garantir aquilo que a Constituição prevê. Explico. Há um belíssimo texto de William P. Marshall, que recomendo: “Conservatives and the weven wins of judicial activism”. Posso traduzir como “Conservadores e os sete pecados do ativismo judicial. Bom, em tempos de anti-intelectualismo, boa parte dos leitores já abandonou a leitura e torceu o nariz. Aos que resistem, em frente. No Direito essa onda já chegou de há muito: um olavismo jurídico. Uma ode ao anti-científico.

Aos resistentes, sigamos juntos. Naturalmente, tenho algumas ressalvas ao texto de W.P. Marshall. Ele, ao fazer uma distinção entre uma série de tipos de ativismo, classifica alguns deles como eventualmente positivos. Todavia, para mim, ativismo é sempre ruim. Razão de minha prudência: não vejo como positivo algo que não tem nenhum critério.

Isso porque a caixa de pandora do “criacionismo jurídico” (que, fazendo uma paródia, é “antievolucionista”, acreditando na fé do intérprete, e não na estrutura do Direito), de onde se tira todo tipo de decisionismo, de subjetivismo, livre convencimento, enfim, todo tipo de decisão ad hocfundamentada em nada além da consciência daquele que escolhe. Direito vira “escolha a partir da opinião pessoal”.

Mas isso é uma questão hermenêutica: cada um escreve em seu tempo e em seu lugar. As ressalvas são justas, mas Marshall escreve em um contexto diferente do nosso, e não pode ter a validade de seu argumento geral desconsiderada em razão de ressalvas específicas.

O que me importa, fundamentalmente, é que Marshall demonstra que o ativismo judicial e a defesa de posturas ativistas são (também) muito frequentes entre juízes e scholars conservadores, que, paradoxalmente, tendem sempre a se colocar como arautos da Constituição, do originalismo, do respeito à autoridade do texto, desconsiderando tempos, contextos e tradições legítimas. Ora, em nome de coisas como o originalismo, a U.S. Supreme Court decidiu o caso Hardvick V. Bowers, para dizer pouco.

Retomo Dworkin, que fala magistralmente sobre isso em Justice in robes. Primeiro: se nos concentrarmos na fidelidade ao texto, atingimos conclusões radicalmente diferentes daquelas que os originalistas como Scalia esperam. A responsabilidade política que a prática jurídica impõe exige coerência: defender um suposto sentido “original”, articulado pelos pais fundadores, é, muitas vezes, ignorar expressamente a autoridade do texto-enquanto-texto. A partir de meu olhar hermenêutico, concordo com Dworkin e afirmo que o originalismo é, muitas vezes, um desrespeito à tradição em seu sentido mais autêntico.

E o problema não é só esse. Ainda que o originalismo fosse a ortodoxia autêntica – especialmente se fosse a ortodoxia autêntica –, não poderia ser de ocasião. Ortodoxia ad hoc não é ortodoxia. Há, por exemplo, uma série de tentativas históricas (e espúrias) de juristas conservadores de atingir o overruling de precedentes – precedentes genuínos, vinculantes, o stare decisis autêntico –, desrespeitando uma questão básica do rule of law anglo-saxão.

Enfim. O artigo de Marshall, portanto, destroça dois mitos: (i) o mito do conservador legalista, fiel ao Direito, que, sob pretexto de cumprir o Direito, não o cumpre (um self restraint na veia) e (ii) o mito do mantra “ativismo = progresso = bom”, que alguns progressistas tendem a adotar às vezes. Ou seja, um motim no Direito pode se dar pelos dois mitos.

É por não entendermos coisas como essa que estamos onde estamos. E o pior é que tudo isso devia ser óbvio. Mas não o é. E não o é porque nossas faculdades optaram pelo caminho do ensino facilitado, pragmático, refém da concursocracia e à oabcracia. Eles venceram e o sinal ficou fechado ao próprio Direito, substituído por uma teoria política ruim. Pior: agora já atacam na pós-graduação (mestrado e doutorado). Em vez de filosofia no Direito, má metafísica. Como ninguém é filho de chocadeira, o resultado está aí.

Por exemplo, negar a clareza do dispositivo que garante a presunção da inocência é ativismo. Às avessas, mas é. Insisto: ativismo é ignorar a constitucionalidade de um dispositivo que se adequa aos princípios subjacentes ao texto constitucional segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Falo desse dispositivo para exemplificar melhor o que estou dizendo.

Para mim, ou se tem um direito ou não se tem. Não há ativismo bom. Além do mais, bom para quem? Sempre que me falam em ativismos positivos ou em algo do gênero, vem a pergunta: “positivo” para quem? Notem: a questão não é escolher entre passivismos e ativismos, mas, isso sim, fazer a coisa certa. Ou morrer tentando! A responsabilidade política do juiz é essa.

Mas isso não tem sido assim, e agora se fortalece um movimento cuja tarefa é “desler” a Constituição (deconstitucionalizar ou desconstitucionalizar, como bem dizem Marcelo Cattoni, Diogo Bacha e Alexandre Bahia) a Constituição. Aquilo que chamo de motim hermenêutico. Como se a Constituição fosse um palimpsesto. Basta ver as declarações violentas – e assustadoras – de membros do MP e da magistratura contra o ministro Marco Aurélio. Ou contra outros ministros, especialmente quando concedem habeas corpus. O problema, evidentemente, não são as críticas, mas, sim, o modo como elas são e foram feitas. Um explícito motim hermenêutico que raia a motim institucional.

Qual é a matriz dessa “desleitura” da Constituição? Trata-se de uma coisa chamada “emotivismo”, braço “armado” do subjetivismo e voluntarismo, pelo qual o direito sempre perde para a política e a moral.

O Direito deveria servir justamente para resolver os nossos disagreements (desacordos morais), como tenho escrito e falado há tempo. Emotivismo é o que vemos por aí, agravado pela onda anti-intelectualista que toma conta do Direito. O know nothing (saber nenhum) denunciado na distopia de MacIntyre (no livro “After virtue”) parece que está vencendo. Tudo virou “uma questão de opinião, de atitude, de sentimento”. Direito parece um programa de rádio falando de futebol. “Cada um tem a sua opinião”. O know nothing espalha a boa nova: “Não há verdade(s), não há um critério que determine a objetividade de nada”. Ah, bom. Nas palestras de jovens juristas, o gozo é pleno! Viva o relativismo! E Dworkin vira jusnaturalista.

Prender é bom! Prender é ruim! Para o emotivismo, dá tudo na mesma. São meras opiniões divergentes [sic] e nenhuma delas expressa qualquer juízo factual [sic]. Arthur Ferreira Neto chama a isso de não-cognitivismo ético. Na mosca.

É difícil rebater o emotivismo, não é? Tão difícil quanto rebater uma “opinião” sobre futebol. Nossos desacordos realmente parecem intermináveis, e, mesmo entre aqueles que, como eu, acreditam na existência de verdades (portanto, há objetividade), a epistemologia a sustentar essa objetividade face aos céticos é sempre de difícil acesso.

Esse é o tamanho do buraco em que nos metemos. Deixamos de lado o Direito e apostamos em opiniões. O emotivismo triunfou. A distopia de MacIntyre virou realidade. Por isso, estamos na era em que dizer que é preciso ler x onde está escrito x virou uma atitude revolucionária, frase que cunhei em um discurso que fiz na OAB do Rio em 2016. Pior: dizer que onde está x deve-se ler x recebe a pecha de “positivismo”, o que é a prova maior de que o opinionismo venceu. Tempos duros em que aquele que diz que é preciso ler x onde está escrito x é tido como ativista (ou positivista), e aquele quem diz que é preciso ler y porque y é politicamente melhor, moralmente justo, economicamente lucrativo é o que está certo e é incensado. Tempos difíceis.

Olhem ao redor e me respondam essas 12 perguntas: (I) Alguém consegue receber uma resposta adequada em algum embargo de declaração? (II) Alguma alma consegue, sem matar cinco jacarés e escapar de snipers epistêmicos, “passar” um recurso aos tribunais superiores? (III) Alguém consegue entender por que, (a) mesmo vencendo em primeiro grau e em segundo grau e, (b) mesmo tendo a parte contrária não conseguido juízo de admissibilidade do recurso, (c) esta vence a ação com base em decisão monocrática no STJ, em que, (d) provendo o agravo, (e) já se dá provimento ao próprio REsp e o seu direito vira pó? O direito é isso? (IV) Alguém consegue entender que raios de “sistema de precedentes” é esse de que falam alguns doutrinadores? (V) Por que os tribunais editam teses como se súmulas fossem? (VI) Alguém consegue fazer valer o novo CPC? (VII) Por que o Código Civil vale menos do que o que os pamprincípios? (VIII) Alguém consegue enfrentar decisões que dizem que, já convencido, o juiz ou tribunal não necessita enfrentar todos os argumentos da parte? (IX) Alguma pobre alma jurídica consegue entender porque os juizados especiais se transformaram em ilhas autoritário-despóticas das quais não se pode fugir? (X) E por que a doutrina permitiu que o nosso Direito fosse transformado em um jurisprudencialismo? (XI) Por que sucumbimos à tese amotinadora de que os fins justificam os meios? (XII) Por que admitimos heterodoxia no Direito? Por que… Complete você.

O problema disso tudo é que, quando aceitamos o emotivismo jurídico como verdadeiro, quando a discussão jurídica não é mais jurídica, mas consequencialista-pragmática-moralista-econômica, torna-se aceitável – e não surpreendente – que um procurador da República diga que “jipe, cabo e soldado” fecham o Supremo. Que feio, não? Você leu bem. Procurador da República. Não um cidadão comum, não é nem um deputado – o que, por si só, já é gravíssimo. É um procurador da República.

Esse é o ponto. Uma decisão de ministro do Supremo é rebatida com argumentos da “voz das ruas”, com coletivas de imprensa evocando abstrações como o “sentimento da sociedade” e gritando contra a “impunidade”.

Só mesmo o emotivismo jurídico explica esse tipo de coisa. MacIntyre tem razão. Basta ler o seu “Depois da virtude” (“After virtue”), um de meus livros de cabeceira. Ninguém melhor do que ele explica o conceito de emotivismo. O know nothing venceu. Eis o silencioso motim hermenêutico que se tornou vencedor.

Numa palavra: Minha obrigação para com a comunidade jurídica é de meio, e não de fim. Já não quero convencer ninguém. A batalha está perdida. E eu fecho por perder com a cabeça erguida.

 

Tempos difíceis. Coluna longa. Todavia, necessária. Foram os textos de dez linhas e tal que acabaram com o Direito. E foram os resumos e resumões que acabaram com o ensino e a aplicação do Direito. Se o leitor chegou até aqui, feliz 2019. Se não chegou, bom, trata-se de uma questão de lógica. Desistiu antes. Portanto, se não leu, nem sabe que estou dizendo isso. No Brasil, os que não gostam de textos longos são regra geral, anti-intelectualistas. E os haters (todo hater é anti-intelectualista) vaiam até mensagem de boas festas.