Sobre um conselho que Guimarães Rosa, autor de Grande sertão: veredas, de 1956, teria dado ao mineiro Fernando Sabino quando este lhe comunicou, numa manhã de 1967, que tentava concluir uma peça de teatro, André Bernardo [*] observa: “Rosa morreu pouco tempo depois, no dia 19 de novembro daquele mesmo ano, e a tal peça, adaptada de um conto, nunca saiu do papel”. O conselho era de aparência simples: “Não faça biscoitos… faça pirâmides”. Inspirado nele, Sabino escreveu, tempo depois, a crônica “Biscoitos e pirâmides”, publicada no livro Depois dá certo, de 1998. A conclusão era: “Um biscoito é pequeno, portanto desprezível – uma pirâmide é monumental, portanto grandiosa; um biscoito é consumível, portanto efêmero – uma pirâmide é permanente, logo eterna”.

André Bernardo, então, faz a síntese: “Ao longo da carreira, Fernando Tavares Sabino (1923-2004) construiu três ‘pirâmides’: O encontro marcado (1956), O grande mentecapto (1979) e O menino no espelho (1982). E produziu incontáveis ‘biscoitos’, como a crônica ‘O homem nu’ (1960), a novela A faca de dois gumes (1985) e a autobiografia O tabuleiro de damas (1988)”.

 

 

[*] BERNARDO, André. Fernando Sabino, 100 anos: o escritor que nasceu homem e morreu menino. In: Revista Itaú Cultural [online]. Publicação: 12/10/2013. Disponível em: <https://www.itaucultural.org.br/secoes/noticias/fernando-sabino-a-historia-do-escritor-que-nasceu-homem-e-morreu-menino>.

 

Fernando Sabino teria completado cem anos no dia 12 de outubro de 2023. Em homenagem à data, a Revista da Aconjur nº 5 vai publicar a crônica “A última flor do Lácio”, escrita por ele.
Confira abaixo.

Fernando Sabino: escritor mineiro, que está entre os maiores nomes da literatura brasileira, teria completado cem anos no dia 12 de outubro de 2023 (foto: acervo familiar)

 

 


A última flor do Lácio

Fernando Sabino

 

Estou numa sala de aula do Ginásio Mineiro, em Belo Horizonte. Acabamos de entrar na classe em fila, como soldados. O modelo de nosso uniforme, aliás (de cor cáqui, calça comprida e dólmã), é de nítida inspiração militar.

Eis que chega o professor. Todos nos erguemos num movimento único e só tornamos a nos sentar quando ele assim o ordena com um gesto de mão, já aboletado à sua mesa, sobre um estrado. É um velho magro, crânio pelado, olhos suaves por detrás dos óculos grossos, terno escuro meio surrado, voz indiferente e monótona. Ele agora está fazendo a chamada e cada um se levanta dizendo presente. Todos têm um número, o meu é o onze.

Mas ele se dirige a nós pelo sobrenome e nos chama de senhor: Senhor Sabino, sente-se; Senhor Pellegrino, tenha modos. Este, sempre irrequieto na cadeira à minha frente, volta-se para me dizer um gracejo, e corremos ambos o mesmo risco de ser convidados a sair da sala, como frequentemente acontece, antes que comece a aula.

É uma aula de Português. Sujeito, predicado e complemento. Concordância, regência. Figuras de retórica. Idiotismos linguísticos. Já aprendemos o que é anacoluto – não é um palavrão. Aprendemos outras coisas também – algumas que cheiram a dentista, como próclise, mesóclise. Só que dentro em pouco esqueceremos tudo.

As funções do quê, por exemplo, que é a matéria da aula de hoje. De que me adiantará na vida saber que o quê pode ser tudo na oração, menos verbo? “Pode até ser substantivo: como nesta frase que acabei de dizer” – acrescenta o professor. O quê? Ouço uma mosca zumbindo no ar. Vejo o Senhor Pellegrino à minha frente a olhar distraído pela janela um pardal pousado na grade que circunda o ginásio. E o professor falando com voz arrastada, de vez em quando se arrastando ele próprio até o quadro-negro para escrever qualquer coisa. E o ruído do giz na lousa me arrepiando a pele. Os olhos me pesam de sono, deixo pender a cabeça. O aluno número onze está dormindo.

Acordo de súbito com uma tremenda gritaria. Olho ao redor e me vejo cercado de alunos também de doze a treze anos, mas com uniformes esportivos, camisas leves, calças curtas – e saias, porque há meninos e meninas misturados. Alegres e veementes, estão todos respondendo ao mesmo tempo a uma pergunta do professor. A sala de aula é outra, outros são os alunos e – verifico estupefato – o professor na verdade é uma professora: uma jovem de calças compridas e blusa fina, de pé, apoiada na mesa, um livro aberto na mão. Tem cabelos louros, olhos claros, é de despertar a admiração, para dizer o menos, do aluno número onze do Ginásio Mineiro.

Mas já não estou no Ginásio Mineiro e sim num colégio do Leblon, em 1974.

É também uma aula de Português. O plá, como dizem os alunos, vem a ser comunicação: Comunicação em Língua Portuguesa para a 7ª Série do Primeiro Grau. Equivale ao nosso 2º ano do ginásio, é o que me informam. A autora se chama Magda Soares: atualmente uma das maiorais do livro didático, é o que também me informam. Outra das melhores, segundo ouvi dizer, é Maria Helena Silveira. Esse negócio de livro didático eu não entendo – só sei que o assunto é controverso e explosivo. A apresentação gráfica é admirável – disso eu entendo alguma coisa, afinal já fui editor.

E aqui termina meu entendimento: que diabo vem a ser isso? História em quadrinhos? Revista infantil? Passo os olhos pelos livros ricamente ilustrados em cores. (Num deles dou até com um texto de minha autoria.) Não é preciso muito esforço para perceber que se trata nada mais nada menos que de uma revolução. Parece que enfim estão tentando tirar a camisa de força que tolhia o ensino de Português no Brasil.

A última flor do Lácio inculta e bela estava simplesmente murchando. O que se ensinava nos colégios em matéria de Português era apenas para nos fazer desprezar para sempre a nossa língua. Ninguém aguentava ler Garrett, Herculano, Camilo – para não falar em Vieira, Frei Luís de Sousa ou mesmo Gil Vicente – depois das implacáveis análises lógicas a que eram submetidos. Dos portugueses, só o Eça escapou, e assim mesmo porque escritor realista não tinha vez. E quanto aos brasileiros, ficamos sabendo por Euclides da Cunha que o sertanejo era antes de tudo um forte.; Os Sertões era antes de tudo um chato, principalmente a primeira parte. De Machado de Assis, foi-nos dado ler “Soneto à Carolina”, o poema “A mosca azul” e “A pêndula” – só que sem a primeira frase do célebre capítulo: “Saí dali a saborear o beijo”. Quando poderiam muito bem nos ter iniciado nos segredos da prosa do grande lascivo e sua voluptuosidade do nada, com o capítulo anterior do mesmo Brás Cubas, sobre o próprio beijo. Ou o de Dom Casmurro: Capitu abrochando os lábios…

Isso, quanto à prosa. E que dizer da poesia? Nunca conseguimos passar das armas e dos barões assinalados: Os Lusíadas se tornou para nós um pesadelo, porque ninguém sabia onde diabo se escondia o sujeito da oração naqueles versos retorcidos. É verdade que nos impingiam, de mistura com versinhos piegas de poetas medíocres, alguma coisa melhor de Bilac, Castro Alves, Raimundo Correia, Cruz e Souza. Mas não sabíamos distinguir o que era bom do que era ruim. O bisturi da análise sintática ia arrebentando versos, violentando palavras, assassinando a poesia dentro de nós.

E o velho professor sentado à minha frente, com ar de desgosto, a dizer que poesia modernista é um negócio de pedra no meio do caminho e outras bobagens. Pois vejam se isso lá é poesia: café-com-pão, café-com-pão, café-com-pão… Seu sorriso irônico se funde ante meus olhos ao da jovem professora do Leblon, lendo para os alunos encantados o mesmíssimo poema de Manuel Bandeira, que o livro de Magda Soares apresenta sob sugestiva rubrica: “Vamos sentir a poesia das palavras”.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades – como dizia o dos barões assinalados: com uma professora como esta, no nosso tempo todos nós seríamos poetas.

Agora estou com dezoito anos e sou professor. No Instituto Padre Machado, 3º ano ginasial: mais-que-perfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo, verbos defectivos. E eu tentando meter tudo isso na cabeça dos meninos. Tenho de ficar sentado, não posso fumar – a disciplina é rígida, inclusive para os professores – mas como fazer com que aprendam uma coisa chamada preposição subordinada conjuncional ou o que venha a ser verbo incoativo?

Meu amigo Otto Lara Resende, filho do diretor, leciona neste mesmo colégio. É excelente professor, tem experiência de ensino, embora ainda não haja feito vinte anos. Um dia, a propósito do sentido de certas palavras, começou a falar aos alunos sobre Carlos Drummond de Andrade, foi deste a outros conhecidos seus, contou vários casos pessoais. Na lição seguinte os alunos pediram que continuasse, e assim suas aulas passaram a ser um curso sobre a própria vida, tendo sempre em vista o uso das palavras e a eficiência da linguagem.

Era um precursor do que estou vendo hoje, fascinado, nesta aula a que vim assistir por curiosidade: uma professora cercada de alunos também fascinados, porque ela lhes ensina que as palavras têm vida e os inicia na arte da convivência através da comunicação. Ou, como diz Magda Soares no seu atraente livro: “Aprendemos a língua usando-a, não falando a respeito dela. Saber teoria gramatical – sintaxe, morfologia – não significa saber comunicar-se bem. Usar a língua e não teorizar sobre ela”.

Pois o velho professor do Ginásio Mineiro parece desconsolado, porque o aluno número onze acaba de dizer que o se de uma oração é um pronome, quando está na cara que se trata de uma partícula apassivadora.

De minha parte, também sinto desconsolo, pois estou diante do quadro-negro escrevendo para meus alunos uma lista de verbos irregulares, e, quando me volto, dou com um deles dormindo. Em vez de acordá-lo como faziam comigo, prefiro sair de mansinho, dizendo adeus para sempre aos demais alunos e ao ensino de Português.

E continuo na sala de aula: agora os meninos me envolvem de perguntas, sob a risonha e franca aprovação da professora, a quem chamam familiarmente de “tia” e “você”. Sinto uma ponta de melancolia, finda a aula, ao vê-los partir em alegre algazarra: gostaria de ser um deles.

É com este sentimento que me despeço de sua linda mestra, e somos três: eu, o professor de dezoito anos e o aluno número onze.

 

 


Crônica publicada em: MASSI, Augusto (Org.). Os sabiás da crônica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 153-156.