Os problemas que atingem os servidores aposentados são abordados no artigo “Aposentadoria e velhice: o ‘auxílio social’ como mecanismo para a preservação da saúde do trabalhador”. Publicado na Revista da Aconjur nº 5, cuja versão eletrônica foi lançada no final de 2023, o texto, de autoria do consultor jurídico aposentado Mário Montanha Teixeira Filho, aborda a questão sob a perspectiva da proteção à velhice e à saúde do trabalhador, aspectos tutelados pela Constituição Federal de 1988. O ponto de partida para a análise é um pedido administrativo, que tramita no Tribunal de Justiça, de instituição do chamado “auxílio social”, uma alternativa de compensar as perdas financeiras impostas aos profissionais afastados das suas funções por tempo de serviço, idade ou condições de saúde.

 

Acesse, aqui, a Revista da Aconjur nº 5 na versão online.

Piet Mondrian

 

 


Aposentadoria e velhice: o ‘auxílio social’ como mecanismo para a preservação da saúde do trabalhador

Mário Montanha Teixeira Filho

 

 

RESUMO

Este artigo aborda a situação de aposentados e pensionistas do Poder Judiciário do Paraná sob a perspectiva das regras constitucionais de proteção à velhice e à saúde do trabalhador. Como ponto de partida, considera-se a existência de pedidos administrativos, apresentados por entidades de classe, que pretendem instituir no Tribunal de Justiça o chamado “auxílio social”. Esse benefício, desde que aprovado por lei específica, poderá recompor parcialmente os valores de proventos de aposentadoria e pensões, que foram atingidos por uma política de restrição de direitos intensificada após a entrada em vigor da Constituição de 1988.

Palavras-chave: Auxílio social. Constituição. Saúde do trabalhador. Aposentadoria. Proteção à velhice.

 

ABSTRACT

This article analyses the situation of retirees and pensioners of the Judiciary of Paraná from the perspective of constitutional rules for the protection of old age and worker health. As a starting point, we consider the existence of administrative requests, presented by class entities, which intend to institute the “social aid” in the Court of Justice. This benefit, as long as it is approved by specific law, may partially restore the values ​​of retirement and pension benefits, which were affected by a policy of restriction of rights intensified after the entry into force of the 1988 Constitution.

Keywords: Social assistance. Constitution. Worker’s health. Retirement. Old age protection.

 

Piet Mondrian

 

 

1. INTRODUÇÃO

 

Este artigo tem por objetivo central abordar a situação de aposentados e pensionistas do Poder Judiciário do Paraná sob a perspectiva das regras constitucionais de proteção à velhice e à saúde, entre outras garantias. Como ponto de partida, toma-se uma provocação administrativa feita pelo Sindijus-PR, sindicato de representação do funcionalismo remunerado pelo Tribunal de Justiça, no protocolo SEI nº 0068739-46.2023.8.16.6000, instaurado em 11 de maio de 2023. O pedido da entidade de classe pretende, imediatamente, diminuir os prejuízos financeiros impostos aos servidores quando do encerramento das suas atividades profissionais, e alcança também os pensionistas do setor.

No serviço público, onde as contribuições previdenciárias são calculadas sobre a integralidade das remunerações dos quadros de pessoal, a questão que surge desde logo está ligada à natureza da seguridade social, que não poderia admitir, sob o ponto de vista técnico, nenhum desconto previdenciário nos proventos de inatividade. Mas o que se verifica na prática é o oposto disso: a redução de aposentadorias e pensões com base em emendas à Constituição e leis ordinárias. Reverter essa tendência exige grande mobilização política e fundamentos jurídicos bastante apurados, conforme se verá na continuidade.

Em sua iniciativa em favor de aposentados e pensionistas, o Sindicato propôs a criação do que chamou de “auxílio social”, um acréscimo pecuniário equivalente ao auxílio-alimentação pago aos funcionários da ativa. Considera-se, no pedido, que os destinatários do benefício a ser criado são, em sua maioria, pessoas suscetíveis a adoecimentos provocados pela idade avançada, o que faz com que tenham que arcar com gastos cada vez maiores com remédios e assistência médica. A ideia, então, seria “amenizar os impactos da redução de renda”[1]. Essa mesma linha foi adotada pela Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar), que, ao peticionar em apoio à tese defendida pelo Sindijus-PR[2], destacou a necessidade de conceder aos aposentados e pensionistas “estrutura financeira adequada para fazer frente às notórias despesas elevadas que o passar do tempo […] traz, especialmente com medicamentos e tratamentos médicos […]”.

Essa argumentação, por si mesma, justifica a medida compensatória, que, se for deferida, resultará na elaboração de anteprojeto de lei a ser encaminhado ao Poder Legislativo estadual. Ainda assim, as controvérsias que envolvem aposentados e pensionistas superam, em tamanho e importância, os limites dos diagnósticos de possíveis doenças e da viabilização dos tratamentos médicos recomendados para combatê-las. Não basta atribuir uma espécie de ressarcimento aos servidores afastados das suas funções pela aposentadoria. É preciso enfrentar o tema em profundidade, extrair das normas constitucionais a abrangência da tutela dispensada à velhice e à saúde do trabalhador, para definir uma política permanente em torno desse assunto. Mecanismos para isso existem, estão incorporados ao ordenamento jurídico e demandam empenho das entidades de representação de classe para que se preservem as condições de vida adquiridas por pessoas que prestaram serviços à administração pública durante muitos anos.

O desafio é enorme. Nos capítulos seguintes, será feito, concomitantemente com a análise jurídica do benefício pleiteado pelo Sindijus-PR, um breve apanhado histórico sobre as disputas políticas que antecederam a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 e sobre as articulações que vieram depois – trata-se de polêmicas que ainda se fazem presentes no debate nacional. Havia, no período de renovação da ordem jurídica, expectativas favoráveis entre os trabalhadores, geradas pelo fim da ditadura militar (1964-1985) e pela possibilidade de ampliação de direitos individuais e coletivos. Em contrapartida, o conservadorismo do Congresso constituinte, encabeçado por um grupo de parlamentares que ficou conhecido pelo apelido de “Centrão”[3], barrou muitas das iniciativas que não interessavam aos seus patrocinadores.

Mesmo com dificuldades e restrições, porém, o texto promulgado assimilou princípios de conteúdo social importantes e retardou o avanço do neoliberalismo (propulsor da redução do aparelho estatal, que se espalhava por várias regiões do mundo) no País. Não é por acaso que a Constituição foi alvo de ataques logo após a sua aprovação, com emendas destinadas a suprimir garantias sociais e estabelecer, no campo trabalhista, o que Ricardo Antunes (2018, p. 27) definiu como uma “nova morfologia do trabalho”, fruto de um processo de transformações econômicas verificadas a partir dos anos 1970 nos países centrais. Fortaleceu-se, consequentemente, a difusão de conceitos “modernos” sobre as relações de produção, com o incentivo à precarização estrutural do trabalho, às terceirizações generalizadas e à supressão de direitos. No serviço público, que tem natureza diferente da que caracteriza as organizações mantidas pela iniciativa privada, muitas dessas ideias estão sendo trazidas aos regulamentos aplicáveis aos sistemas de carreiras, com a intenção de aproximar as tarefas funcionais de metas como eficiência, enxugamento da máquina e celeridade.

Nesse ambiente de mudanças, a afirmação – ou a recuperação – de direitos de servidores aposentados e pensionistas parece contraditória com a “nova” concepção de serviço público, redutora de benefícios e suscetível à assimilação de métodos típicos das empresas capitalistas, que têm no lucro a sua razão principal de ser. Não é bem assim, no entanto. A tutela de valores fundamentais à existência humana, como a velhice e a seguridade social, por exemplo, está mantida no texto constitucional, apesar das alterações a que ele foi submetido no curso de 35 anos. São esses valores que asseguram a legitimidade de alternativas de complementação de proventos e pensões, como o “auxílio social”. Mas não custa repetir que a possível transformação em lei desse benefício significa apenas uma etapa de uma luta muito mais abrangente: a efetivação de políticas de proteção ligadas à saúde do trabalhador.

 

 

2. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS DIREITOS SOCIAIS

 

Os debates travados durante o processo legislativo que antecedeu a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 não foram fáceis. Num ensaio sobre as turbulências daquele período, Andrei Koerner sintetiza: “O processo constituinte foi marcado por incertezas, impasses e compromissos, impostos pela convivência entre, por um lado, lideranças políticas e elites burocráticas, militares e civis, apoiadoras do regime militar, e, por outro, as lideranças políticas e os movimentos sociais da frente democrática” (Koerner, 2018, p. 308). Havia, de fato, muitos projetos em disputa, diferentes em sua essência e em seus objetivos. A esse respeito, Florestan Fernandes, deputado constituinte por São Paulo, afirma:

 

O nexo conservador [da forma como a Constituição estava sendo elaborada] é evidente, e ele não se explica somente pelo maior partido da ordem, como sustentáculo do governo – o PMDB. Ele se explica por uma vontade de neutralizar a Constituição, de retirar dela uma ameaça frontal à transição lenta, gradual e segura. Divididas e subdivididas, as vontades radicais, divergentes e revolucionárias podem pender para o mudancismo, porém estarão sempre nas garras da “modernização conservadora” e do “conservadorismo ilustrado”, à la Oliveira Viana[4]. (Fernandes, 1989, p. 81-82)

Nesse esquema, os “de cima” ocupariam uma posição relativamente estabilizada, uma vez que os constituintes estariam sempre ocupados com tarefas discretas, dispersas e diluídas, por maior que fosse o seu potencial político divergente. “Nas divisões e subdivisões”, completa Fernandes (1989, p. 82), “haverá sempre a esmagá-los uma concentração conservadora […]”.

Eram dias de efervescência política, impactados pela ideia de “justiça social”, que fizeram surgir, no contrafluxo do avanço progressista, o Centrão, um movimento conservador articulado em parceria com o governo[5] para anular os efeitos de qualquer dispositivo constitucional que contrariasse os interesses das elites econômicas. Esse propósito foi atingido parcialmente. Nos anos seguintes a 1988, intensificaram-se manobras para aprovar emendas constitucionais revogatórias de direitos individuais e coletivos[6]. Daí a importância da resistência da sociedade civil, já quando a nova Carta estava em vigor, ao que Fernandes (1989, p. 371) chamou de “sabotagem constitucional”:

 

Se o parlamento, posto em questão, se omite na defesa enérgica da Constituição [no período seguinte à promulgação da Carta], a resistência contra a sabotagem constitucional do governo e das classes dominantes tem de vir da sociedade civil. Por mais que esta desame a presente Constituição, as entidades orgânicas que se notabilizaram no combate à ditadura precisam desencadear uma ação pedagógica coletiva para que a Constituição seja obedecida, principalmente pelo governo, pelo Judiciário e pelas elites no poder.

Plínio de Arruda Sampaio, que também foi deputado constituinte, situou a Constituição de 1988 num contexto político em que “o povo, que estava sem direitos, iria ganhar algumas concessões, mas nada capaz de frear o que já estava estabelecido” (Sampaio, 2018, p. 64). Era necessário, para os grupos conservadores com representação no parlamento, “incorporar um pouco da massa”. Foi a partir dessa constatação que se criou uma novidade: “A Constituição não começou como um texto pronto – como foi feito pelo professor e deputado da UDN Mário Masagão[7] em 1946 – e depois sujeito a emendas do plenário, [mas] ela começou com 24 comissões temáticas” (Sampaio, 2018, p. 63). E mais:

 

Nós fizemos uma Constituição parlamentarista, programática, para criar um Estado de bem-estar social, mas esse projeto não passou no primeiro tempo porque, no segundo tempo, os homens da burguesia chamaram os deputados e disseram que “isso não pode, não”. Então, se formou um negócio chamado Centrão, e ele derrotou a todos. Mas o peso do povo era tão grande que não foi possível tirar tudo. (Sampaio, 2018, p. 64)

Em outras palavras: apesar das investidas do Centrão e do conservadorismo majoritário no Congresso, a Constituição assegurou, entre outros avanços institucionais, direitos trabalhistas e garantias vinculadas ao processo penal, além da universalização do sistema de saúde, assistência e previdência. Não foi pouca coisa.

 

2.1. As garantias democráticas

 

Embora desigual em seu formato, com “disposições avançadas e modernas ao lado de outras disposições que consagram os privilégios preexistentes e a ordem estabelecida” (Fernandes, 1989, p. 291), a Constituição de 1988 consolidou muitas garantias democráticas.  Em seu artigo 1º, o texto aprovado define a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, baseado em fundamentos como a soberania (inciso I), a cidadania (inciso II), a dignidade da pessoa (inciso III), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV) e o pluralismo político (inciso V).

No artigo 3º, é afirmado o objetivo da República de não apenas erradicar a pobreza e a marginalização, mas também de reduzir as desigualdades sociais e regionais (inciso III) e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Nesse campo de proteção, a previdência e a assistência se colocam entre os direitos sociais relacionados no artigo 6º. Já o artigo 7º reúne um vasto elenco de direitos de que são titulares trabalhadores urbanos e rurais, destinados à melhoria das suas condições de vida. Destacam-se, entre eles, a irredutibilidade e a proteção dos salários, estabelecidas nos incisos VI e X, e a aposentadoria, no inciso XXIV.

Quanto à fixação dos valores dos proventos pagos pela administração pública, as regras e os critérios para a aquisição e o cálculo do benefício estão no artigo 40 e seus parágrafos, que foram atualizados pela Emenda Constitucional nº 88/2015 e pela Emenda Constitucional nº 103/2019. No Título VIII (Da ordem social), o artigo 194 define a seguridade social como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Isso envolve, conforme o parágrafo único do dispositivo, a universalidade da cobertura e do atendimento (inciso I), a irredutibilidade do valor dos benefícios (inciso IV) e o caráter democrático e descentralizado da administração (inciso VII), entre outros itens.

Mais adiante, vêm as especificações a respeito da saúde, a partir do artigo 196, da previdência social, a partir do artigo 201, e da assistência social, a partir do artigo 203. Finalmente, o amparo às pessoas idosas está nos artigos 229 (“os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”) e 230 (“a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”).

Neste ponto, vale antecipar uma das observações feitas por Silvia Federici no artigo “Sobre os cuidados dos idosos e os limites do marxismo”, escrito em 2009 e incluído no livro “O ponto zero: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista”. Ao pregar uma “revolução cultural no conceito de ‘velhice’, contra sua representação desvalorizada como um fardo fiscal para o Estado […]”, ela complementa:

 

O que está em jogo na politização do cuidado dos idosos não são só o destino das pessoas mais velhas e a falta de sustentabilidade dos movimentos radicais […], mas a possibilidade de uma solidariedade entre gerações e classes, que tem sido por muitos anos o alvo de uma incansável campanha promovida por parte dos economistas políticos e dos governos que retratam as reservas que os trabalhadores ganharam para sua velhice (aposentadoria e outras formas de seguridade social) como uma bomba-relógio econômica e uma hipoteca pesada para o futuro dos jovens. (Federici, 2019, p. 254-255)

No caso brasileiro, a concepção da tutela à velhice como uma “bomba-relógio”, termo marcado por Federici, serviu de apoio às várias emendas constitucionais que atingiram, reduzindo o seu alcance, dispositivos de proteção de direitos sociais. Desde sempre, o conservadorismo majoritário no Congresso impulsionou a “desconstitucionalização”, pauta defendida pelas lideranças do Centrão, em sua forma original e nas composições que se estabeleceram após o processo constituinte. A redação definitiva da Constituição não deixou de expressar conquistas da ala “progressista” dos deputados e senadores, mas, em grande parte, elas foram relativizadas pela exigência de regulamentação de direitos novos ou por decisões dos tribunais superiores – estes, como é sabido, costumam agir em sintonia com os interesses do grande capital.

Numa avaliação final sobre o texto promulgado em 5 de outubro de 1988, Fernandes (1989, p. 291-292) concluiu: “[…] Bem ou mal, ela [a Constituição] permite romper com o impasse deixado pela ditadura militar e reforçado pela ‘Nova República’, traçando uma nova legalidade burguesa e os pontos de partida de uma sociedade civil democrática e civilizada”. Para o antigo constituinte, a nova ordem jurídica respondeu a muitas exigências da situação histórica, ainda que tenha ficado aquém “do que seria necessário a transformações estruturais pelas quais sempre combateram os trabalhadores do campo e da cidade” (Fernandes, 1989, p. 292).

O contexto de forte pressão ideológica que marcou o final da década de 1980 está presente, também, nos debates atuais sobre o serviço público brasileiro, atingido por uma sucessão de reformas que buscam a transferência de atividades estatais para a iniciativa privada, a flexibilização das relações de emprego e o corte de direitos conquistados pela classe trabalhadora. Tratar da questão dos aposentados, hoje, significa enfrentar um ambiente político hostil, em que a destruição do Estado de bem-estar é plataforma assumida sem disfarces por grupos dominantes na política e na economia.

 

2.2. Aposentadoria, velhice e saúde do trabalhador

 

O amparo à pessoa idosa é bastante amplo no sistema jurídico brasileiro. Suas raízes se encontram na Constituição da República, espalham-se pela legislação infraconstitucional e alcançam a essência do status adquirido pelos trabalhadores aposentados. Numa detalhada revisão bibliográfica sobre o assunto, Antunes e Moré (2016, p. 249) observam:

 

O aumento da expectativa de vida é um fenômeno mundial. Nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, esse processo tem ocorrido de forma ainda mais acelerada em decorrência do acesso aos serviços de saúde, dos avanços da ciência, e, consequentemente, do aumento da qualidade de vida. Dados do IBGE (2011) acerca do último censo demográfico nacional evidenciam que, em um período de 10 anos, houve uma mudança significativa da população do país, com a diminuição da taxa de natalidade e o acréscimo do nível de longevidade. Diante dessa realidade, torna-se cada vez mais comum a presença de aposentados, idosos e longevos nos espaços sociais, sendo que esses públicos demandam especial atenção na contemporaneidade – especialmente, sob a perspectiva da saúde.

Aposentadoria e velhice não são termos que se confundem, necessariamente, mas é inegável que os dois envolvem “dois processos que costumam estar relacionados, pois os sujeitos se aposentam ao envelhecer” (Pereira et al, 2016, p. 53). Cada vez mais, devido às restrições impostas ao sistema previdenciário, os aposentados estão cumprindo etapas de atividade maiores. E “é possível que, para muitos, aposentar-se signifique ter envelhecido, pois a chegada da aposentadoria concretiza o momento em que se percebe que o tempo passou e é necessário finalizar o ciclo de trabalho” (Pereira et al, 2016, p. 53-54). A propósito disso:

 

No que diz respeito à aposentadoria, para além de um direito previdenciário, ela se configura como um dos principais eventos críticos da vida adulta, abrangendo diversos processos psicológicos e sociais (Antunes, Soares e Silva, 2015)[8]. Como menciona Santos (1990)[9], um dos conflitos que acontecem nesse período pode ser caracterizado pela dualidade crise versus liberdade. Assim, por um lado, a aposentadoria é vivenciada com tensão e dificuldade de adaptação ao novo momento, e, por outro lado, pode ser sinônimo de liberdade e potencialização das fontes de satisfação devido ao maior tempo livre após o desligamento do trabalho. (Antunes e Moré, 2016, p. 249)

Há que se considerar, também, como assentado por Pereira et al (2016, p. 55), o sentido de perda da vida social que a aposentadoria acarreta, ao lado de outras perdas, como a de status ocupacional e renda:

 

O afastamento do trabalho provocado pela aposentadoria talvez seja, segundo França (1999)[10], a perda mais importante da vida social das pessoas, pois pode resultar em outras perdas futuras, que tendem a afetar a sua estrutura psicológica. As consequências negativas percebidas com a ocorrência da aposentadoria são a diminuição da renda familiar, a ansiedade ante o vazio deixado pelo trabalho e o aumento na frequência a consultas médicas (França,1999). Os sujeitos, ao envelhecer, nem sempre encontram papéis que os gratifiquem e possibilitem pertencimento social (Wolff, 2009)[11] como havia no período em que trabalhavam.

Ao lado dessas consequências previsíveis, tem-se a necessidade de superação da imagem estereotipada que descreve o aposentado como um velho trajado permanentemente de pijama, sem se dedicar a nenhuma atividade, conforme observado por Rodrigues (2001)[12]. Nessa mesma linha, Birman (1995, p. 39)[13] destacou o que a literatura especializada identifica como um processo de “desnarcisação”, desânimo, associado à ideia de que não há “qualquer possibilidade de horizonte de futuro” para o trabalhador inativado. A partir disso, ele propôs “uma releitura da psicopatologia da terceira idade que permita estudar os ‘efeitos simbólicos que podem ser produzidos na velhice quando impõe para o sujeito a inexistência de um projeto futuro’” (Pereira et al, 2016, p. 47).

Segundo Neri (2002)[14], “apesar de a probabilidade de desenvolver certas doenças aumentar com a idade, envelhecer não é sinônimo de adoecer”. De qualquer modo, não existe uma conceituação exata sobre o que vem a ser envelhecimento bem-sucedido. “[…] Há uma parcela de pessoas que experimentam o envelhecimento associado a perdas físicas e cognitivas em um período relativamente curto” (Neri, 2002). Envelhecer bem é, acima de tudo, uma questão de valores particulares, mas, nessa caracterização, alguns elementos objetivos podem ser considerados, tais como: i) alta capacidade funcional cognitiva e motora; ii) baixa probabilidade para doenças e incapacidades relacionadas ao envelhecimento; e iii) engajamento ativo com a vida (Rowe e Kahn, 1997)[15].

No plano das políticas de Estado, tem-se:

 

[…] Dentro da Política Nacional do Idoso (Lei nº 8.842/1994) e da Política de Atenção à Saúde e Segurança do Trabalho do Servidor Público Federal (PASS), são abordados aspectos em relação ao afastamento das atividades laborais, chamando a atenção para as práticas de gestão nas organizações, sobretudo em relação à prevenção de riscos e doenças, ao envelhecimento ativo e à preparação para a aposentadoria. Assim, percebe-se que a discussão acerca da aposentadoria pode se localizar entre os campos de saúde do idoso e saúde do trabalhador, tendo em vista que a vivência desse período não ocorre de forma isolada, mas se interliga, entre outros fatores, à sua trajetória profissional e às diferentes etapas que compõem o ciclo de vida. (Antunes e Moré, 2016, p. 250)

Numa abordagem que considera as desigualdades sociais brasileiras, Antunes e Moré (2016, p. 250), citando F. F. Cockell, advertem:

 

Ao abordar a temática da aposentadoria, Cockell (2014)[16] aponta que essa questão é um dos grandes desafios para a área da saúde no Brasil, pois as desigualdades sociais tornam os idosos ainda mais vulneráveis diante do modelo atual de trabalho, ocasionando repercussões em sua saúde, nas relações estabelecidas no mundo laboral e na família, assim como na manutenção do sistema previdenciário vigente. Há, portanto, a inter-relação de diferentes aspectos que estão envolvidos no debate, de modo que as ações não devem ser pensadas de forma pontual, mas buscando viabilizar o diálogo acerca dos diferentes temas.

Como se vê, as questões que envolvem aposentados e pensionistas – não apenas no setor público, mas em todas as áreas profissionais – reúnem um vasto conjunto de fatores que precisam ser levados em conta. Um dos mais evidentes está vinculado à saúde do trabalhador. Nessa linha, de acordo com Souza et al (2017, p. 255), é necessária “uma vigilância para não reduzir a categoria saúde unicamente aos processos de adoecimento, riscos e acidente, tal como a saúde ocupacional o faz”. Sobre o assunto, ainda, Mendes e Dias (1991, p. 347) explicam:

 

O objeto da saúde do trabalhador pode ser definido como o processo saúde e doença dos grupos humanos, em sua relação com o trabalho. Representa um esforço de compreensão desse processo – como e por que ocorre – e do desenvolvimento de alternativas de intervenção que levem à transformação em direção à apropriação, pelos trabalhadores, da dimensão humana do trabalho, numa perspectiva teleológica.

Para Lacaz (2007, p. 757-758), a saúde do trabalhador se explica como o campo de “práticas e conhecimentos cujo enfoque teórico-metodológico, no Brasil, emerge da saúde coletiva, buscando conhecer (e intervir) (n)as relações trabalho e saúde-doença […]”. Essa concepção tenta superar os conhecimentos e as práticas da saúde ocupacional, e se identifica “a partir de conceitos originários de um feixe de discursos dispersos formulados pela medicina social latino-americana, relativos à determinação social do processo saúde-doença; pela saúde pública em sua vertente programática e pela saúde coletiva ao abordar o sofrer, adoecer e morrer das classes e grupos sociais inseridos em processos produtivos” (Lacaz, 2007, p. 758).

Essas descrições, apresentadas de passagem neste estudo, enfrentam vários aspectos que cercam a velhice e a aposentadoria. Um deles, que está diretamente ligado à proposta feita pelo Sindijus-PR citada no início, diz respeito à garantia de permanência das condições financeiras adquiridas pelos trabalhadores afastados de suas funções. Essa preocupação é pertinente e oportuna. Não será com a retirada de parcelas importantes dos meios de subsistência de profissionais especializados, como tem acontecido com frequência na administração pública brasileira, que se dará efetividade ao sistema de proteção aos direitos do aposentado. Pelo contrário. Para que o preceito constitucional de amparo à pessoa idosa se torne realidade, é fundamental que se mantenham, a partir da aposentadoria, padrões econômicos compatíveis com os que foram conquistados nos períodos de atividade.

 

 

3. A PROPOSTA DE CRIAÇÃO DO ‘AUXÍLIO SOCIAL’

 

As muitas dificuldades colocadas aos servidores públicos – e aos trabalhadores de modo geral – na fase de vida iniciada com a aposentadoria explicam o surgimento de alternativas compensatórias, parciais, para eliminar ou reduzir os seus efeitos. É o que se dá com o chamado “auxílio social”, que encontra precedentes nos Tribunais de Justiça de Santa Catarina e Mato Grosso do Sul e em alguns municípios do interior de São Paulo, como Marília e Votorantim. O benefício, desde que aprovado – o que depende da edição de lei estadual específica, como dito anteriormente –, teria o mesmo valor do auxílio-alimentação pago aos trabalhadores em atividade.

Entre as razões expostas no requerimento subscrito pelo Sindijus-PR, sobressaem-se as de natureza econômico-financeira, amparadas na constatação de que, “desde 31 de dezembro de 2003, não são todos os aposentados que têm direito à paridade com servidores ativos, inclusive os magistrados e magistradas, e, em consequência, seus ou suas pensionistas”. E prosseguem: “[…] Os aposentados e pensionistas têm cessada a sua carreira a partir da jubilação, […] e […] não recebem auxílio-alimentação, adicional de titulação e outras vantagens recebidas pelos servidores ativos”.

Para piorar, ainda segundo esse relato, pela Lei Estadual (PR) nº 20.122, de 20 de dezembro de 2019, que “dispõe sobre a adequação ao texto da Emenda Constitucional Federal nº 103, de 12 de novembro de 2019, e altera dispositivos da Lei nº 17.435, de 21 de dezembro de 2012”, em conjunto com a Lei Complementar Estadual (PR) nº 233, de 10 de março de 2021, que “regulamenta, no âmbito do Regime Próprio de Previdência Social do Estado do Paraná, as regras permanentes do artigo 35 da Constituição Estadual, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 4 de dezembro de 2019”, os “aposentados e pensionistas tiveram seu teto de isenção de desconto previdenciário reduzido a três salários-mínimos nacionais, e aumentada a alíquota para 14%, o que reduziu expressivamente os proventos”.

O Sindicato acentuou, também, a existência, no Brasil, de um considerável aparato legislativo destinado a proteger os cidadãos afastados de suas funções profissionais – no caso, pelo advento da idade, de condições de saúde ou do tempo de serviço – e lhes assegurar os efeitos da tutela dispensada à saúde do trabalhador de modo geral[17]. Cite-se, como exemplo disso, o chamado “Estatuto da Pessoa Idosa”, materializado na Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, cujo artigo 2º, com a redação que lhe deu a Lei nº 14.423, de 22 de julho de 2022, dispõe que “a pessoa idosa goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades para a preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”.

No final do documento, o pedido é para que “seja criado o ‘auxílio-social’ para aposentadas, aposentados e pensionistas do Tribunal de Justiça do Paraná, do foro judicial e extrajudicial, inclusive magistrados e magistradas, em valor não inferior a 100% do auxílio-alimentação recebido pelos servidores ainda não aposentados”. A sugestão procede, faltando-lhe, apenas, o acréscimo de dispositivo que assegure expressamente o reajuste do benefício sempre que o auxílio-alimentação tiver o seu valor atualizado, mantendo-se, assim, a paridade que inspira a sua criação.

 

3.1. A Amapar também requer

 

Num requerimento datado de 29 de julho de 2023, a Amapar reforçou as justificativas apresentadas pelo Sindijus-PR para a criação do “auxílio social”. O órgão de classe da magistratura do Paraná lembrou que o benefício pleiteado, além de significar uma necessidade advinda da condição especial adquirida pelos inativos, é o “reconhecimento pelo esforço do trabalho desempenhado por décadas por aqueles que, agora, têm reconhecido o merecido descanso”. Na continuidade, fez referência ao princípio da solidariedade entre gerações, “inspirador de toda a estrutura previdenciária e assistencial de nosso Estado Democrático de Direito”.

Ao avaliar a situação atual enfrentada por aposentados e pensionistas, a Amapar chegou a um diagnóstico preocupante:

 

A preocupação com o que espera aqueles que findam sua caminhada na carreira do Judiciário é algo comum a todos os que integramos o sistema de Justiça. E há uma evidente percepção de que o estado de coisas atual não é o mais adequado, na medida em que são crescentes as disparidades entre o tratamento conferido a quem está na ativa e àqueles que já se aposentaram.

Esse quadro de incertezas, que afeta também os funcionários da ativa, submetidos a um processo de achatamento salarial, levou à adoção, pelo poder público, de medidas paliativas destinadas a aliviar os efeitos do processo inflacionário sobre as remunerações pagas pelo Judiciário estadual. Entre essas alternativas, estão alguns benefícios criados com finalidade nitidamente social, como o auxílio-alimentação, o auxílio-saúde e o auxílio-creche. Acontece, todavia, que, em certa medida, “os aposentados remanesceram alijados desse plexo de soluções paliativas, e, com isso, [foram] expostos de forma mais severa aos efeitos da corrosão do poder de compra de seus proventos”.

O resultado das políticas de reestruturação do serviço público impostas nas décadas seguintes à promulgação da Carta de 1988, baseadas no enxugamento da máquina estatal e na supressão de direitos do funcionalismo, é desanimador. Como afirma a Amapar em seu pedido, “atualmente, de direito decorrente de anos de trabalho, a aposentadoria acabou se convertendo em uma penalidade imposta ao servidor”.

 

3.2. Outras medidas compensatórias

 

Note-se, preliminarmente, que o enxugamento da estrutura pública de prestação de serviços não é um projeto circunscrito a unidades isoladas da administração, como os tribunais, por exemplo. Ao contrário disso, o fenômeno decorre de uma política muito mais ampla, imposta pelos governos que se revezaram após a entrada em vigor da Carta de 1988 e pelo Congresso Nacional, que resultou em emendas constitucionais e vários ensaios de reforma administrativa. Só que esse impulso “modernizador” não eliminou completamente os espaços para o aparecimento de legislações contrárias à tendência dominante.

Na fundamentação do pedido que fez ao Tribunal de Justiça, o Sindijus-PR tomou como modelo a Resolução nº 51, de 31 de outubro de 2016, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que “concede subsídio de assistência médico-social a servidores e magistrados inativos […]”, com suporte na Lei Complementar estadual (SC) nº 680, de 5 de outubro de 2016, criadora do benefício. Um exame superficial da norma editada pelo Judiciário catarinense poderia sugerir que o mecanismo protetivo que ela contém está ligado apenas à cobertura de despesas com tratamentos médicos, o que o confundiria com o auxílio-saúde. Mas a confusão não se justifica, pois o que está em jogo nesse debate é uma ação direcionada exclusivamente a servidores aposentados – os da ativa têm direito a outros benefícios que não atingem as aposentadorias e pensões. Essa especificidade denota o alcance social da iniciativa, que se encaixa no vasto horizonte de tutela à velhice e à saúde do trabalhador, de acordo com preceitos da Constituição assimilados por leis ordinárias e vários programas institucionais de melhoria da qualidade de vida da população.

Seguindo a mesma linha adotada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul autoriza o pagamento a servidores aposentados do que chama de “assistência médico-social”, prevista na Lei Estadual (MS) nº 3.310, de 14 de dezembro de 2006 (Estatuto dos Servidores Públicos do Poder Judiciário). Aqui, a semelhança com o benefício pleiteado no Paraná é bem visível. Sobre o tema, o sítio eletrônico do Sindijus-MS publicou uma matéria que ressalta as características da medida compensatória[18], cujos valores foram atualizados por uma portaria recente do chefe do Judiciário local[19]. O texto afirma que, daqui por diante, o esforço do Sindicato estará voltado, principalmente, para a “equiparação [da assistência médico-social] em valores com o auxílio-alimentação dos ativos, buscando mais reajustes ainda neste ano [2023] […]”. Estabelecer equivalência entre a vantagem concebida para dar amparo a aposentados e pensionistas e o auxílio-alimentação repassado a servidores da ativa é, afinal, a essência do pedido feito por entidades de classe da Justiça paranaense.

Por sua vez, a Câmara Municipal de Votorantim, no interior de São Paulo, instituiu, numa sessão realizada no dia 27 de abril de 2023, o Programa de Auxílio Financeiro Social, destinado a pensionistas e servidores inativos[20]. Pelas regras inscritas no projeto de lei aprovado, essas categorias poderão ter acesso a vantagens pecuniárias destinadas “à melhoria das [suas] condições sociais”, desde que preencham requisitos de aquisição básicos. Por último, em Marília, também no interior paulista, a Lei Municipal nº 8.330, de 30 de novembro de 2018, criou a chamada “assistência médico-social”, regulamentada por decreto da Prefeitura e paga a aposentados e pensionistas[21].

Essas alternativas de cuidado com a velhice e a aposentadoria, espalhadas de modo incipiente por algumas estruturas de prestação de serviços públicos no Brasil (tribunais e municípios, de acordo com informações reunidas para esta análise), carecem de melhor sistematização. Falta-lhes uniformidade conceitual, embora todas elas, caracterizadas como vantagens pecuniárias, tenham origem em leis específicas e sejam regulamentadas internamente pelos órgãos a que se vinculam os trabalhadores beneficiados. Ao contrário do que as aparências possam sugerir, não se trata de “meios para majorar a remuneração dos servidores, nem de meras liberalidades da administração pública” (Gasparini, 1995, p. 169), mas de instrumentos de efetivação de preceitos garantidores de aposentadorias e pensões, da saúde do trabalhador e do envelhecimento “como direito personalíssimo” (artigo 8º do Estatuto da Pessoa Idosa). O termo “auxílio social”, utilizado pelo Sindijus-PR e pela Amapar, dá conta dessa abrangência. Por isso, tem maior precisão quando comparado com outras denominações, como “subsídio”, “assistência médico-social” ou “programa financeiro”. Estas permanecem limitadas pela ideia de monetização de valores fundamentais para a melhoria de vida da população, como se fosse possível eliminar desigualdades históricas e complexas sem considerar a sua raiz: o modelo social, político e econômico que as sustenta.

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A criação do “auxílio social” para aposentados e pensionistas é uma tentativa válida de reduzir os prejuízos sofridos pelo trabalhador quando da cessação do vínculo original entre as suas funções profissionais e as exigências da administração pública[22]. Diante de uma conjuntura de esvaziamento da máquina estatal, é necessário concentrar esforços coletivos, por intermédio de entidades sindicais e associações de classe, contra a lógica de composição dos proventos e pensões, em que a retirada de benefícios não integrantes dos vencimentos básicos, independentemente da sua natureza e das suas finalidades, é a regra prevalente. Na proposta que se analisa agora, substitui-se um auxílio – verba destinada à alimentação do funcionário – por outro, que atinge apenas os servidores que já não fazem parte do quadro dos ativos. A instituição por lei desse tipo de mecanismo, se acontecer, não afetará a estrutura do ordenamento jurídico nacional, pois já estão em vigor normas semelhantes que beneficiam servidores de tribunais estaduais e de alguns municípios.

Há, além do mais, um aspecto no “auxílio social” que ultrapassa a sua finalidade imediata, de caráter eminentemente financeiro, e o coloca no centro de um debate muito extenso, que demanda dos trabalhadores – do serviço público ou não – uma luta permanente em defesa da efetividade de direitos individuais e coletivos. Que não se esperem facilidades nesse caminho, como adverte Federici (2019, p. 274) num comentário sobre os muitos problemas que pesam sobre a classe trabalhadora nos EUA: “Em nome da crise econômica, os criadores de políticas públicas […] lutam para cortar o gasto social e passar a faca na previdência estatal e nos sistemas de seguridade social”. Segundo essa autora, há muito tempo se cultiva uma ideia que, transportada para a realidade brasileira, poderá fazer com que as conquistas de aposentados e pensionistas, de natureza trabalhista, previdenciária ou administrativa, permaneçam ignoradas pelos donos do poder: “O refrão dominante é a reclamação obsessiva de que uma população idosa mais cheia de vida e energia e que insiste teimosamente em continuar vivendo torna a previdência pública insustentável” (Federici, 2019, p. 274).

Não é exagero afirmar que o “auxílio social” integra um conjunto de mudanças que vêm sendo objeto de disputas desde o processo constituinte, na segunda metade da década de 1980. Diante das reiteradas tentativas de desconstitucionalização de avanços sociais feitas por governos e representantes do capital nas últimas décadas, a tarefa de classe que se impõe, urgente, é resistir à ameaça que paira sobre direitos de aposentados e pensionistas – e dos trabalhadores de modo geral – e defender o serviço público, a saúde do trabalhador e o envelhecimento com dignidade. A Constituição assegura tudo isso. Que seus dispositivos sejam observados é o mínimo que se pode pretender.

 

 

 

Mário Montanha Teixeira Filho é consultor jurídico aposentado do Poder Judiciário do Paraná, pós-graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

 

 

 

 


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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NOTAS

[1] A petição do Sindijus-PR sobre o auxílio social está disponível em: <http://www.aconjurpr.com.br/wp-content/uploads/2023/10/PETICAO-SINDIJUS-AUXILIO-SOCIAL.pdf>. Acesso em: 30/7/2023.

[2] A petição da Amapar sobre o auxílio social está disponível em: <http://www.aconjurpr.com.br/wp-content/uploads/2023/08/AMAPAR-AUXILIO-SOCIAL.pdf>. Acesso em: 30/7/2023.

[3] Sobre o Centrão, Koerner (2018, p. 308) observa: “Durante a Constituinte, forma-se o Centrão, agrupamento de representantes de centro-direita que redirecionou o processo para bloquear o acesso ao passado, limitar mudanças no regime e na administração e promover, parcialmente, uma agenda liberalizante da economia”.

[4] Florestan Fernandes se refere, aqui, a Francisco José de Oliveira Viana, sociólogo adepto do elitismo e do corporativismo, influenciador do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), período em que o País foi submetido a um regime de exceção.

[5] A Assembleia Nacional Constituinte foi convocada em 1985 pelo então presidente da República, José Sarney, que havia assumido o cargo num processo de transição que envolveu forças conservadoras e setores políticos de centro ou à esquerda – as primeiras em maioria –, numa saída negociada para o encerramento da ditadura militar.

[6] Note-se que, como resultado dos vários acordos políticos que cercaram a Constituinte, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu, no seu artigo 3º: “A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral”.

[7] Mário Masagão (1899-1979) foi professor de Direito Administrativo, membro do Tribunal de Justiça e secretário de Justiça do Estado de São Paulo. Em 1945, elegeu-se deputado federal e fez parte da comissão da Assembleia Constituinte de 1946, onde teve atuação destacada, liderando, conforme observado por Sampaio (2018, p. 63), a elaboração do texto que serviu de base para as disposições aprovadas pelos parlamentares. Encerrados os trabalhos constituintes, em setembro de 1946, Masagão renunciou ao cargo para o qual havia sido eleito.

[8] ANTUNES, Marcos Henrique, SOARES, D. H. P., e SILVA, N. Orientação para aposentadoria nas organizações: histórico, gestão de pessoas e indicadores para uma possível associação com a gestão do conhecimento. In: Perspectivas em Gestão & Conhecimento, 5(1), 2015, p. 43-63 [referência em Antunes e Moré, 2016, p. 249].

[9] SANTOS, M. de F. de S. Identidade e aposentadoria. São Paulo: EPU, 1990 [referência em Antunes e Moré, 2016, p. 249].

[10] FRANÇA, L. Preparação para a aposentadoria: desafios a enfrentar. In: VERAS, R. (Org.). Terceira idade: alternativas para uma sociedade em transição. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Unati, 1999 [referência em Pereira et al, 2016, p. 55].

[11] WOLFF, S. H. Vivendo e envelhecendo: recortes de práticas sociais dos núcleos de vida saudável. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009 [referência em Pereira et al, 2016, p. 55].

[12] RODRIGUES, C. L. (2001). Homem de pijama: o imaginário masculino em relação à aposentadoria. In: Revista Kairós, 2001, 4(2), p. 69-82 [referência em Antunes e Moré, 2016, p. 249].

[13] BIRMAN, J. Futuro de todos nós: temporalidade, memória e terceira idade na psicanálise. In: VERAS, R. (Org.). Terceira idade: um envelhecimento digno para o cidadão do futuro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. p. 29-48 [referência em Pereira et al, 2016, p. 47].

[14] NERI, A. L. Envelhecer bem no trabalho: possibilidades individuais, organizacionais e sociais. A Terceira Idade, São Paulo, 13(24), abr 2002, p.7- 27 [referência em Pereira et al, 2016, p. 46].

[15] ROWE, J., e KAHN, R. Successful aging. The Gerontologist, 37(4), 1997, p. 433-40 [referência em Pereira et al, 2016, p. 46].

[16] COCKELL, F. F. Idosos aposentados no mercado de trabalho informal: trajetórias ocupacionais na construção civil. Psicologia & Sociedade, 26(2), 2014, p. 461-471 [referência em Antunes e Moré, 2016, p. 250].

[17] Além do Estatuto da Pessoa Idosa, mencionado pelo Sindijus-PR, são vários os programas, atos normativos e documentos oficiais sobre a proteção institucional aos idosos e à saúde do trabalhador no Brasil. Alguns deles: i) Política Nacional do Idoso (Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994, que criou o Conselho Nacional do Idoso); ii) Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (Portaria nº 2.528, de 19 de outubro de 2006, do Ministério da Saúde); iii) Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento (ONU, 2002); iv) Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990); v) Política de Atenção à Saúde e Segurança do Trabalho do Servidor Público Federal – PASS (Portaria nº 2.293, de 23 de outubro de 2014, do Ministério da Saúde); e vi) Política Nacional de Redução da Mobimortalidade por Acidentes e Violências, do Ministério da Saúde (2002), que estabelece, entre outras disposições, medidas de assistência à velhice, tanto sob o aspecto da prevenção quanto do tratamento de problemas causados por acidentes ou maus tratos.

[18] Sobre o assunto, verificar matéria “Avanço: TJMS atende pedido do Sindijus e reajusta assistência médico-social dos aposentados”. Disponível em: <http://www.sindijusms.org.br/noticias/geral/1/avanco-tjms-atende-pedido-do-sindijus-e-reajusta-assistencia-medico-social-dos-aposentados/2295/>. Acesso em: 16/8/2023.

[19] Trata-se da Portaria nº 2.663, de 10 de abril de 2023.

[20] Sobre o assunto, verificar matéria “Câmara de Votorantim aprova reajuste dos servidores a auxílio para aposentados e pensionistas”. Disponível em: < http://www.gazetadevotorantim.com.br/noticia/48930/camara-de-votorantim-aprova-o-reajuste-dos-servidores-e-auxilio-para-aposentados-e-pensionistas.html>. Acesso em: 16/8/2023.

[21] Sobre o assunto, verificar matéria “Prefeitura assina decreto que regulamenta subsídio de assistência médico-social para inativos e pensionistas”. Disponível em: <https://www.marilia.sp.gov.br/portal/noticias/0/3/1132/prefeitura-assina-decreto-que-regulamenta-subsidio-de-assistencia-medico-social-para-inativos-e-pensionistas>. Acesso em: 16/8/2023.

[22] Conforme destacado em capítulo anterior, o “auxílio social” é inteiramente dotado de juridicidade, e pode ser objeto de lei da iniciativa do Poder Judiciário do Paraná. Trata-se de instituto derivado de uma série de garantias constitucionais cuja preservação cabe ao intérprete assegurar. Na proposta sobre o assunto formulada por entidades de representação do funcionalismo e da magistratura, falta, apenas, o detalhamento de mecanismos que assegurem o reajuste do benefício sempre que houver alteração no valor do auxílio-alimentação pago aos servidores da ativa.