Na Paris de 1832, Victor Hugo publicou sua obra “O último dia de um condenado à morte”, na qual relata a angustiante espera de um homem privado da vida. Essa poética literatura encerra um discurso apaixonado pela abolição da pena de morte e em última análise pela abolição da tirania.
No Brasil de 2019, há quem diga que, antes de perguntarem sobre as mortes nas prisões, que perguntem às vítimas de quem está preso. Como juiz que trabalha com execução penal, que tem nas leis e especialmente na Constituição Federal a base de sua jurisdição, e que tem enfrentado ao longo dos anos o colapso cada vez mais grave do sistema prisional, em cujo recrudescimento das penas e a incompreensão das razões históricas da violência encontra terra fértil, pensei em trazer à luz alguns postulados jurídicos e científicos, no intuito de colocar alguma racionalidade em toda essa irracionalidade.
Porém, refletindo melhor, resolvi relatar que nas minhas andanças pelos quatro cantos do país para falar sobre direitos humanos já fiz muito disso. Face a face, e com o respeito necessário, já perguntei a vítimas sobre o que elas gostariam que acontecesse com quem está preso, se achavam que os prisioneiros deviam ser assassinados. Ouvi inúmeras respostas, algumas ressentidas, muitas marcadas pela dor e por um profundo sentimento de injustiça, mas nenhuma, nenhuma mesmo que apontasse para a morte do preso. Independentemente de classe social e econômica ou do nível educacional, as manifestações sempre foram respeitosas e em sua grande maioria lúcidas.
Em linguagem formal e não coloquial, pois não saberia lembrar de detalhes ou reproduzir fielmente os diálogos – quiçá o de uma mãe que disse ter tido o filho esfaqueado e morto na frente de sua casa, e que o assassino nunca tinha sido julgado, para quem eu, com o afeto que me cabia, tentei explicar que mesmo não tendo como sentir a dor que ela sentia o que eu queria era um mundo onde nenhuma outra mãe sofresse o que ela sofria, que nunca mais filhos fossem mortos criminosamente –, eis as respostas que ouvi: “Doutor, não quero que quem furtou minha loja, roubou meu celular, arrombou meu carro seja assassinado na prisão, quero que ele aprenda a ter uma profissão e pare de assaltar; seu juiz, não quero que o traficante que vendeu droga para meu filho morra, quero que ele pare de vender drogas; excelência, não quero que o dependente de drogas tenha a vida ceifada, quero que deixe de se drogar e supere o vício; não quero que aquele que atentou contra a dignidade sexual de minha filha, que desgraçadamente matou meu filho, que atentou contra a vida de meus pais seja eliminado, quero que ele se arrependa pelo mal que fez, nunca mais o repita e que trabalhe para reduzir os danos que causou.”
As pessoas estão cansadas da violência. Quando perguntadas, respondem que não querem mais sentir a dor do ódio, mas sonhar com uma vida mais fraterna. Lamentavelmente, porém, parece que essas respostas jamais chegam aos ouvidos daqueles que, tendo o poder de mudar o rumo da história, não querem ouvir e, pelo contrário, defendem a pena de morte, a vingança, o extermínio, como se a pena capital já não existisse no Brasil, em disfarçada tirania. Em nome de uma política repressiva e fracassada de “guerra” contra o crime e de combate às drogas, milhares de pessoas são mortas todos os anos. São jovens policiais, jovens viciados, jovens traficantes, jovens da margem, que encontram sua existência trágica e precocemente encerrada.
Talvez Victor Hugo soubesse que o homem ainda demoraria muito tempo para compreender a amplitude e correção de seu pensamento. Por aqui, neste país continental, o povo até tenta superar a violência. Uma hora ou outra, as pessoas percebem que todos estão propensos a cometer atos violentos e que devemos olhar mais para os outros, para as vítimas, para os presos, para nós mesmos, humanos que somos. Mas então, como trovões, aqueles em posição de poder e destaque lançam palavras contrárias nos céus do país, disseminando o medo e por consequência a vingança, a lei do talião, do olho por olho dente por dente. E tudo se perde!
Estamos à beira do abismo. Não lutamos mais pela democracia, lutamos pela civilização. Nossos próximos passos podem ser os últimos, os últimos passos da humanidade.
João Marcos Buch é juiz de direito e membro da AJD