Garantias reduzidas: com terceirização, carteiras de trabalho registrarão empregos precarizados e com baixos salários

 

A Constituição Federal protege o emprego expressamente no inciso I do artigo 7º, como direito do trabalhador, e no inciso VIII do artigo 170, enquanto busca do pleno emprego, como princípio da ordem econômica. O elenco do artigo 7º contém direitos não do trabalhador em sentido amplo, mas, sim, do empregado. E o que é a relação de emprego? É a que existe entre um trabalhador e seu empregador, por força do senso comum e do artigo 3º da CLT.

O Supremo Tribunal Federal, contudo, quando julgou a ADPF 324, entendeu por maioria ser “lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada”[1].

Terceirizar é um neologismo que significa interpor entre o empregador e o empregado uma terceira pessoa. Ela é a contratada do empregador e a contratante do empregado.

Essa figura não consta da Constituição, e é estranha à ideia de emprego contida em todos os documentos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e nos artigos 23 e 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O único objetivo dessa figura é a redução dos custos do empreendimento. Excetuando-se a situação dos médicos, que sob qualquer modalidade de trabalho mantêm seu padrão remuneratório, todos os demais trabalhadores reduzem seus ganhos quando são terceirizados.

Reconhecendo-se que o universo de trabalhadores é muito superior ao de empregadores, muito mais pessoas serão prejudicadas com a terceirização irrestrita – passarão a ganhar menos e terão menos estabilidade em seus empregos – do que beneficiadas pela redução de custos. Trata-se da legitimação de um ônus que é desproporcional em gravidade e amplitude.

Os ministros do STF que votaram pela constitucionalidade da alteração justificaram suas posições no direito do empresário de se valer de qualquer forma de contratação e, também, no benefício que essa modalidade traria ao país pelo aumento da oferta de vagas. Ambos os argumentos, contudo, são contestáveis.

Inicialmente, o direito do empresário deve ser balizado pelos direitos fundamentais, pela função social dos contratos e pelas formas previstas em lei. O empresário pode pactuar qualquer contrato que quiser, menos aqueles que violem direitos constitucionalmente protegidos, como os ambientais, os da criança e adolescente e os do trabalhador. A terceirização extrapola a relação entre dois contratantes civis, pois afeta a relação de trabalho e os direitos dos trabalhadores.

Quanto ao aumento da oferta de vagas, o argumento é uma mera crença de quem defende esse modelo. Não há nenhum exemplo histórico ou contemporâneo que o comprove. Não há nenhum estudo que balize essa afirmação.

Votar pela terceirização significou ignorar a vontade e a aflição de milhões de trabalhadores que sabem que a adoção desse modelo lhes é prejudicial, pois causa a redução da remuneração e a incerteza quanto à duração de seus contratos de trabalho.

Sabem, também, da concorrência de subordinação que a terceirização gera, pois passa a existir mais de uma coordenação do mesmo trabalho, pelo tomador e pela contratada terceirizada. E sabem, por fim, que a terceirização causa o aumento significativo de acidentes e doenças do trabalho. A redução de custos desejada leva a terceirizada a apresentar um orçamento enxuto, economizando, em franco prejuízo aos trabalhadores e ao meio ambiente, nos programas de proteção ao trabalhador, na sua capacitação e treinamento e nas medidas de proteção individual e coletiva.

A terceirização ainda frustra as cotas de pessoas com deficiência, pois pulveriza empregados em terceirizadas distintas que nunca atingem os percentuais que a tornam obrigatória. E impacta, também, na sindicalização e nos direitos coletivos dos trabalhadores, pois permite a criação de sindicatos nos quais atividades distintas são agrupadas na misteriosa categoria da prestação de serviços. Há sindicatos que congregam faxineiras, copeiras, motoristas e vigilantes como sendo uma categoria só. Assim são minados os esforços de uma estratégia sindical e de uma normatização coletiva que atenda às necessidades reais e específicas dos trabalhadores de cada atividade e de cada local de trabalho.

Enquanto novas legislaturas não alterarem o texto da lei, e enquanto os organismos internacionais provocados não se manifestarem, o que se pode esperar é que na modulação dos efeitos da decisão da ADPF 324 o STF mude o foco de sua preocupação. Que considere a vontade do constituinte de 1988 e dos cidadãos de 2018. Que previna os prejuízos catastróficos que serão causados aos trabalhadores, ao consumo e à arrecadação, todos tutelados pela figura do emprego constitucionalmente protegido e definido como sendo a relação entre dois contratantes, apenas, que são o empregador e o empregado.

 

Ruy Fernando G. L. Cavalheiro é procurador do Trabalho, mestre em Direito, especialista em Filosofia do Direito e em História e Filosofia da Ciência e integrante do MP Democrático.

 

 


[1] Consoante a proposta do ministro Barroso informada em notícia do STF de 22 de agosto. Disponível em <www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=387588>, acesso em 14/9/2018.