Pontes de Miranda: jurista alagoano escreveu obra majestosa sobre o Direito (foto: reprodução)
Entre as dezenas de livros escritos por Pontes de Miranda, obras que alcançaram todas as áreas possíveis do Direito (e também a Sociologia e a ficção), um se destaca de maneira majestosa. A bem da verdade, chamar o “Tratado de Direito Privado” de livro é muito pouco para o trabalho mais marcante da vida do genial jurista alagoano. Dividido em 60 tomos, com um total de páginas que supera 30 mil, o tratado é a mais extensa e profunda publicação jurídica de todos os tempos, no Brasil ou em qualquer outra parte do planeta.
Até para um intelectual prolífico como Pontes de Miranda, produzir um colosso como esse leva tempo. Muito tempo. Os primeiros tomos do “Tratado de Direito Privado” vieram ao mundo em 1954 e o último, em 1970, quando o mestre já estava perto de completar a oitava década de vida. Tudo o que envolve esse trabalho é monumental, como por exemplo o número de obras consultadas durante a sua produção: quase 12 mil, muitas delas de grandes nomes do Direito alemão, que exerceram significativa influência na carreira do alagoano — e foram por ele influenciados.
Seguindo o padrão da obra de Pontes de Miranda, o tratado cuida de modo muito detalhado de todas as ramificações do Direito Privado. Estão lá, em grande profundidade, o Direito Civil (Direito de Família, Direito das Coisas, Direito das Obrigações, Contratos, Responsabilidade Civil e Sucessões), o Direito Comercial (Direito Falimentar, Cambiário, Bancário e Societário) e o Direito do Trabalho. Para qualquer operador do Direito ou acadêmico, é praticamente impossível não encontrar em suas páginas a resposta para uma dúvida sobre Direito Privado.
É nos seis primeiros tomos, no entanto, que o “Tratado de Direito Privado” causa o maior impacto em quem se dispõe a enfrentá-lo. Neles, o autor estabeleceu uma teoria geral do Direito que causou, e ainda causa, um impacto gigantesco nos estudiosos de seu trabalho, especialmente quando ele trata da teoria do três planos do fato jurídico (existência, validade e eficácia). “Os problemas mais intricados do Direito Civil estão resolvidos no tratado. Por isso, uma citação do tratado em favor de uma tese jurídica em uma ação era meio caminho andado para ganhar a causa. Para contrariar a opinião de Pontes precisava de muito ‘tutano’. Considere-se ainda que a obra de Pontes em geral (de Direito Constitucional, Processual e Internacional, principalmente) sempre foi a mais citada pelos tribunais brasileiros”, comentou o advogado e professor alagoano Marcos Bernardes de Mello, grande autoridade na obra do conterrâneo.
“A teoria geral do Direito vinha sendo construída em trabalhos anteriores, mas ele conseguiu concatená-la no tratado”, lembrou o juiz Alan da Silva Esteves, titular da 7ª Vara do Trabalho de Maceió. “A teoria é simples e profunda ao mesmo tempo. Para Pontes, o Direito acontece no mundo dos pensamentos, porque você não toca o Direito, não o cheira, não ouve o Direito etc. Você somente o percebe quando ele é aplicado e isso acontece quando o Direito, para ele, escolhe um fato relevante entre aqueles do mundo dos fatos e o juridiciza, ou seja, como que o ‘carimba’, e aí ocorre a incidência. Diz ele, então, que o fato da vida se torna o fato jurídico e, nessa exteriorização, você consegue perceber a ação, a pretensão, o direito subjetivo etc.”, completou ele.
Abrangente e lacônico – Junto com o professor Marcos de Mello e outros 29 juristas, o professor e advogado paranaense Rodrigo Xavier Leonardo dedicou-se há alguns anos, com sucesso, à árdua tarefa de atualizar o “Tratado de Direito Privado”. O que mais chamou sua atenção ao executar esse trabalho foi reparar como Pontes de Miranda não deixou nenhuma vertente do Direito Privado sem ser meticulosamente analisada, o que faz da obra uma base insuperável para qualquer pessoa que tenha interesse no assunto. “O ‘Tratado de Direito Privado’ é uma obra desassossegadora. São 60 volumes, cada um com mais de 600 páginas (na edição de 2012), versando sobre os assuntos mais diversos do Direito Privado. É interessante notar que, nesses 60 volumes, Pontes de Miranda foi abrangente e, ao mesmo tempo, lacônico. O ‘Tratado de Direito Privado’ é, assim, celebrado pelos estudiosos em razão da sua profundidade, abrangência e do elevado rigor científico, um invulgar repositório para a interpretação do Direito e as resoluções de questões cotidianas”.
Como costuma dizer o professor e advogado alagoano Nabor Bulhões, outro dedicado discípulo de seu conterrâneo ilustre, Pontes de Miranda gostava de produzir tratados porque neles podia esgotar os temas de que se ocupava. Evidentemente, foi o que ocorreu no “Tratado de Direito Privado”, como atesta o professor Sérgio Coutinho dos Santos. “Não há jurista que tenha produzido uma obra tão vasta. Não se trata de um compêndio com anexos com leis para ser tão grande. São milhares de páginas com contribuições sobre o Direito Privado em diferentes épocas e países. Quando lembramos que Pontes de Miranda foi ao mesmo tempo genial com essa obra e ainda tem livros em diversas outras áreas do Direito, e fora do conhecimento jurídico, não há como não celebrar. Recomendo a quem for estudante de graduação em Direito hoje que confira os primeiros capítulos do primeiro volume do tratado. É uma escrita fascinante”, comentou o professor.
Estrela-guia – Engana-se, porém, quem pensa que a influência do “Tratado de Direito Privado” não ultrapassa os muros das universidades. Embora seu último volume tenha sido escrito há mais de 50 anos, a obra mais importante de Pontes de Miranda ainda é bastante utilizada para orientar decisões das mais altas cortes brasileiras, e é muito por causa do tratado que o alagoano continua sendo o doutrinador mais citado por magistrados do país. “É comum que, ao unificar a interpretação do Direito Privado nacional, o Superior Tribunal de Justiça fundamente as suas decisões no ‘Tratado de Direito Privado'”, relatou Rodrigo Xavier Leonardo. “Muito recentemente, em meados deste ano, no Recurso Especial 1.345.170-RS, o ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, proferiu um erudito voto que se fundamenta na diferenciação entre procuração e mandato, a partir do invulgar tratamento dessa matéria verificado no tomo 43 do ‘Tratado de Direito Privado’. A partir desse alicerce é que foi decidido um litígio envolvendo a transmissão da propriedade imobiliária. Na minha atividade profissional, como advogado e árbitro, não raras vezes mostra-se necessário recorrer ao tratado como única fonte para a solução de questões mais complexas”.
“A influência da obra ainda se faz sentir no mundo dos juristas, especialmente nos tribunais brasileiros. Como disse, trata-se de uma obra de grande densidade doutrinária e muitos juristas me falaram que leem todos os dias umas cinco páginas e, assim, treinam a mente para a compreensão profunda do trabalho. Outros, como eu, preferem reescrever os textos para ler em alguns momentos da semana fazendo reflexões a parte para construção de alguma ideia”, contou o juiz Alan Esteves.
Mateus Silva Alves é repórter da revista Consultor Jurídico.