Luiz Gama: luta pela liberdade foi a marca de um das maiores personalidades históricas do Brasil (foto: reprodução)
No dia 24 de agosto de 2022, fez 140 anos que morreu, em São Paulo, Luiz Gonzaga Pinto da Gama. Um dos maiores Heróis nacionais, com “H” maiúsculo mesmo, é considerado, pela Lei nº 13.629/2018, “Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil”. Conhecido como “Advogado dos Escravos”, nasceu livre, mas, aos 10 anos de idade foi vendido pelo próprio pai como cativo; conseguiu reconquistar a liberdade e lutou pela de tantos outros. Libertou centenas de escravizados. Autodidata, poeta, jornalista, maçom e advogado, sua trajetória inexcedível joga luzes sobre chagas da realidade coeva e perdura sendo fonte imorredoura de percuciente inspiração para a promoção de justiça, de busca por uma democracia plena e de consolidação de direitos fundamentais.
Gama foi, com efeito, habilíssimo jurista, conquanto não tenha frequentado formalmente qualquer faculdade, em razão do racismo, e sofreu muitos “dichotes lorpas”, conforme assinalou o escritor e amigo dele Raul Pompeia. Conseguiu autorização para ser solicitador provisionado (“rábula”, “advogado em primeira instância”), isto é, atuava com autorização, sem ter diploma acadêmico. Somente em 2015, 133 anos depois da sua morte, foi reconhecido como advogado, pela OAB. Aos poucos, o seu trabalho e as suas reminiscências vêm sendo resgatados, máxime pelas pesquisas empreendidas pela professora Lígia Fonseca Ferreira, talvez a maior estudiosa da vida de Gama.
Nascido em Salvador, em 21 de junho de 1830 — daí 9 anos, na mesma data, viria ao mundo Machado de Assis –, sua mãe era Luíza Mahin, uma africana livre, da Costa da Mina, da nação Nagô; comerciante, quitandeira, tinha o espírito revolucionário e indômito. Ela teria se envolvido em insurreições (Revolta dos Malês/1835 e na Sabinada/1837) e, por força disso, fugiu para o Rio de Janeiro. Deixou o filho Luiz Gama aos cuidados do pai dele. O genitor da então criança era fidalgo, de origem portuguesa. Foi rico e, no início, era amoroso com o filho, vivia com Luiz Gama em seus braços. Recebeu uma boa herança. Entrementes, como apreciava divertimentos, sendo amante das cartas, foi reduzido à pobreza extrema. Nessa esteira, a 10/11/1840, quando Gama tinha 10 anos, foi vendido pelo próprio pai como escravo. Nesse fanal, nosso herói foi levado de navio ao Rio de Janeiro. Foi para Santos, subiu a pé a Serra do Mar, indo para Jundiaí e Campinas, tendo sido até recusado por um fazendeiro, porque era da Bahia e os cativos de lá eram considerados perigosos. Como escravizado doméstico, aprendeu a costurar, a ser copeiro e sapateiro. Esses detalhes foram narrados por ele próprio em carta ao amigo Lúcio de Mendonça, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.
Quando Luiz Gama tinha 17 anos, um estudante de Direito ensinou-o a ler e a escrever. Aos 18, tendo “obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de sua liberdade”, fugiu da casa do alferes Antônio Pereira Cardoso. “Uma vez livre, sempre livre”. Alistou-se e serviu na Força Pública da Província de S. Paulo, chegando a cabo. Um oficial o insultou e Gama respondeu-lhe energicamente. Foi excluído por insubordinação. Também laborou como amanuense da Secretaria de Polícia e, transcorridos alguns anos, foi demitido “a bem do serviço público”, por retaliação política, especialmente pelos ideais que preconizava. Diante dos contratempos, não desistiu. Chegou a escrever em artigos que, se a insurreição é crime, a resistência é uma virtude cívica!
Dedicou-se com afinco ao estudo jurídico. Todavia, sem frequentar academias. Aquele estado injustificável, deplorável, absolutamente repugnante e inadmissível de escravidão, de autoritarismo, de falta de democracia e de falência moral do estamento oligárquico precisava ser ardentemente enfrentado e denunciado na imprensa e no foro. Para alcançar seu intento, Luiz Gama utilizou estratégias inteligentes. Deveras, ele percebera desde cedo que a atuação unicamente nos autos não teria o condão de gerar um debate público com dimensão e êxito almejados, até porque carradas dos juízes eram coniventes com o status quo e tornavam letra morta os textos legais que amparavam a causa da liberdade. Gama tencionava edificar novos horizontes, abrir perspectivas para alterar aquele quadro todo que se afigurava dantesco.
Para ser eficiente, necessitava criar um ambiente hostil e um constrangimento moral eloquente àqueles que pactuavam com a escravidão. Portanto, ele precisava ter a opinião pública engajada e favorável à sua incansável luta e interpretar a ordem jurídica para modificar a realidade. Destarte, valeu-se de sofisticadas técnicas de hermenêutica do direito posto e foi ativo jornalista. Convém não olvidar que os jornais eram o principal meio de comunicação daquela época, e, por existirem muitos iletrados, chegavam a ser lidos em voz alta nas praças e nas ruas.
Ele escrevia artigos em periódicos abolicionistas e republicanos, apontando as inúmeras mazelas e os horrores existentes naquele sistema escravocrata sorumbático, corrupto e desumano (muitos escravizados eram punidos com mutilação, com açoites diários, alguns tinham os dentes quebrados e as mulheres cativas, os seios queimados ou furados). Ajudou ainda a divulgar — e defendeu com verdor e com argumentos sólidos — os lemas do iluminismo: igualdade, liberdade e fraternidade. Grassavam a conivência e a omissão governamental, política e judiciária, com os interesses criminosos dos grandes escravocratas. A monarquia e seu nefasto legado precisavam ruir.
E foram verdadeiras batalhas jurídicas que Luiz Gama enfrentou, com teses sofisticadas esgrimidas nos processos. Gize-se que o abolicionismo teve muitos reveses, tanto neste solo quanto em outras plagas. Veja-se, à guisa ilustrativa, o caso Dred Scott, o caso que envergonha até hoje a Suprema Corte dos Estados Unidos. Para ter-se uma dimensão do problema, nas Américas, o Brasil foi o país que mais recebeu escravos. No total, foram cerca de 4,8 milhões deles, mais de 1/3 do contingente. Foram trazidos para trabalhar em engenhos de açúcar, nas lavouras de café, de algodão, nas minas etc.
Note-se que, por ocasião da independência brasileira, quase todos os brancos tinham escravos, prática que vigorava até mesmo com muitos negros livres que, da mesma forma, tinham cativos. E mais: não se pode esquecer de que os últimos países do mundo a erradicar legalmente a escravidão foram a Etiópia (1942), o Marrocos (1956), a Arábia Saudita (1962) e a Mauritânia (1981), que, a sua vez, só criminalizou a conduta em 2007, tornando efetiva a proibição. Por conseguinte, até pouquíssimo tempo atrás, a escravidão de seres humanos persistia até mesmo de modo oficial.
Ao arrostar essa engenharia secular e perversa no Brasil, Luiz Gama foi alvo de muitas perseguições, foi processado criminalmente (e absolvido) e sofreu ameaças de morte! Gama foi um grande hermeneuta. Apegava-se mormente à Lei de 7 de novembro de 1831. Ela vedava a importação de escravos para o Brasil, e já no artigo 1º declarava livres todos os cativos que desembarcassem no país, a contar daquela data. Portugal tinha um tratado anterior com a Inglaterra que reprimia o tráfico negreiro. E, ainda assim, tal atividade delituosa era incessante nos nossos portos, perpetrada à vista das autoridades, e uma realidade por muitos aceita.
Impende rememorar que o artigo 2ª da mencionada Lei aplicava aos importadores de escravos as penas do artigo 179 do Código Criminal (pena de 3 a 9 anos de prisão), e o artigo 5º oferecia recompensa da Fazenda Pública a quem denunciasse o traficante. Entretanto, cuidava-se de um diploma legal que não era observado e aplicado, ou seja, era uma “lei para inglês ver” — mera retórica legislativa. Porém, Luiz Gama extraiu a norma do papel e exigiu, nos tribunais e na imprensa, com viço e firmemente, o seu cumprimento! Expôs a letargia processual deliberada e a ilegitimidade de regras burocráticas que discrepavam do direito natural à liberdade e à isonomia. E denunciou juízes corruptos e desidiosos.
Na sua coluna inaugurada em julho de 1869, no Radical Paulistano, veículo do Partido Liberal Radical, intitulada de “Foro de…”, relatava teratológicas decisões judiciais que discrepavam absurda e patentemente da lei e das regras de exegese e vertia contumélias aos sapientíssimos doutores. E foi assim que expendeu “proveitosa lição de direito” ao juiz Rego Freitas, um dos seus maiores antípodas. Entretanto, também enunciou severas críticas aos juízes Santos Camargo e Pereira Tomás, assim como ao antigo amigo Furtado de Mendonça (chefe da Polícia de São Paulo), Rafael Tobias Aguiar, filho do brigadeiro Tobias Aguiar e da marquesa de Santos e ao conselheiro Nabuco de Araújo, ex-presidente da Província de São Paulo e pai do abolicionista e maçom Joaquim Nabuco. Aliás, é bem provável que o silêncio mútuo entre esses dois ícones — Luiz Gama e Joaquim Nabuco — deva-se às censuras que o primeiro dedicou ao genitor do segundo.
Luiz Gama defendia os “desgraçados”, os “desvalidos”, os “míseros cativos” gratuitamente, e publicava nos jornais que pegaria as causas em nome da liberdade, sem ônus para os representados — advocacia pro bono. E, nesse diapasão, logrou êxito em libertar centenas deles! Com certeza, foram mais de 500; fala-se em até 800. Há casos de escravos libertados. Incansável, Luiz Gama se envolveu em campanhas para arrecadar fundos para manumissão de escravizados, realizava conferências concorridas e fundou, por meio da Loja Maçônica América, escolas e bibliotecas para difundir o saber e gerar cidadania. Sua Loja constituiu cursos de alfabetização para crianças e adultos em vários turnos e lhes ensinava “educação política” e democrática/republicana. É interessante explicitar que Luiz Gama foi o único intelectual negro do nosso país que chegou a ser escravizado! Sua trajetória tem sido, de certa forma, comparada à do estadunidense Frederick Douglass.
Gama também foi poeta e escreveu Primeiras Trovas Burlescas do Getulino. Seu poema mais famoso é “Quem sou eu?”, também conhecido como “Bodarrada”. Contém forte inspiração maçônica. Como algures pontuado, Gama foi muito ativo na Maçonaria. Exerceu diversos cargos maçônicos e foi diretor/presidente (“Venerável Mestre”) da Loja América entre 1874 e 1881. Em sua Loja iniciaram-se, por exemplo, Rui Barbosa e diversos jornalistas e juristas consagrados, os quais lhe abriram as portas de grandes periódicos. Ele nunca se vergou à tirania, ao racismo e à opressão. Pôs-se a serviço da dignidade humana, de sua altivez e promoção. No seu cortejo, há 140 anos, a cidade de São Paulo fechou o comércio, milhares de pessoas disputaram segurar a alça de seu caixão. E seus acólitos e amigos juraram lealdade ao sonho de um país mais justo, plural e igualitário, sem preconceitos de qualquer natureza e verdadeiramente democrático. Aliás, ele se autointitulava um “extremo democrata”.
Suas preleções e sua vida dizem por si, afinal, “arvorou à porta da sua cabana humilde o estandarte da emancipação, e declarou guerra de morte aos salteadores da liberdade”. Deveras, “surgiu-lhe na mente inapagável um sonho sublime, que o preocupa: o Brasil americano e as terras do Cruzeiro, sem reis e sem escravos!”. Luiz Gama era um hermeneuta. Usava a lei contra a lei. E a lei a favor da lei. Para buscar a liberdade de escravos, invocava a interpretação pela qual, estando proibido o tráfico, já não poderia haver vendas de escravos. Não cursou Direito porque era negro. Mas aprendeu Direito na luta. D’onde se poderia perguntar que, estando em 2022, no 140º. ano de sua morte, não conseguimos fazer cumprir ainda garantias constitucionais explícitas na legislação e na Constituição. Um interessante problema jurídico poderia ser colocado para Gama resolver: um regimento interno pode conceder poder ilimitado aos presidentes dos Poderes da República? Pois é. Nos tempos de Luiz Gama, nem havia controle de constitucionalidade. Constituição outorgada. País com escravos. Fosse no segundo Império, até entenderíamos esse poder absoluto constante nos regimentos internos. Mas, hoje…
E o que Luiz Gama diria sobre a necessidade de publicarmos Cartas aos Brasileiros e Brasileiras pela Democracia, se temos uma Constituição tão rica em direitos, ele que lutou pela liberdade de tantos debaixo de um sistema autoritário, Constituição outorgada e um sistema escravagista? O que ele diria sobre os novos inimigos da democracia?
Um viva a Luiz Gama, um Viva ao Brasil, um Viva à democracia!!! Que esta jamais pereça nas mãos de salteadores da liberdade de nosso povo.
Lenio Luiz Streck é integrante da Academia Brasileira de Direito, sendo que o patrono de sua cadeira (nº 39) é Luiz Gama.
João Linhares é ocupante da cadeira nº 19 da Academia Maçônica de Letras de Mato Grosso do Sul, cujo patrono é Luiz Gama.
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Fontes de pesquisa
Ferreira, Ligia Fonseca de. Lições de Resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020 (esclarece-se que grande parte deste despretensioso artigo teve como fulcro esse magnífico livro).
Menucci, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil: Luiz Gama. Ed. Nacional, 1938.
Ferreira, Lígia Fonseca. Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça. Revista de Literatura Brasileira (8/9). São Paulo, p. 300-321, 2008.
Comparato, Fábio Konder. Luiz Gama, Advogado Emérito. Revista do Instituto dos Advogados do Brasil, n. 97. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010.
Gomes, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM.-11-08-1827.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13629.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-7-11-1831.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm
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http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revista_do_arquivo/07/especial_01.php
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https://m.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1732696-a-vitoria-amarga-de-luiz-gama.shtml
https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/sabinada.htm
Americanos celebram escravo que buscou sua liberdade na Justiça
TJ-SP concede Habeas Corpus para que cavalo não seja sacrificado
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=6c14da109e294d1e
http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=820:luiz-gama&catid=47:letra-l
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/apos-133-anos-de-sua-morte-luiz-gama-recebe-titulo-de-advogado
http://www.casaruibarbosa.gov.br/escritos/numero04/Tiago.pdf