Abertura polêmica: reativação de cerimônias religiosas em Manaus é medida que ameaça combate ao coronavírus

 

A Constituição de 1891 fez do Brasil uma República Federativa laica, marcando a divisão entre Estado e Igreja, além de estabelecer a alternância no poder por eleições e a organização do Estado na forma federativa. É bem verdade que novas regras muitas vezes levam tempo para se tornarem realidade concreta, valendo lembrar que os dois primeiros presidentes não foram eleitos — os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto —, e quando começamos a ter eleições apenas votavam os homens ricos (voto censitário).

A ligação secular entre Estado e Igreja não seria desfeita de um momento para o outro, e, 129 anos após, em pleno 2020, em muitos prédios públicos, também os da Justiça, há ainda muitos crucifixos, inclusive no STF e STJ — símbolos específicos de uma opção religiosa, que fazem parte do conjunto de escolhas da vida privada de cada indivíduo.

Quanto à Federação, somos 27 unidades e 5570 municípios, mas, mesmo assim, é sabido que sofremos da doença crônica do centralismo. O poder é ainda muito centralizado na figura da União, por maior que seja a autonomia jurídica e política de Estados e municípios.

A pandemia do novo coronavírus, maior drama vivido pela humanidade desde a segunda grande guerra, veio testar essa autonomia da federação brasileira à medida que o chefe do Poder Executivo Federal publicamente vem defendendo desde sempre posição contrária ao isolamento social, mesmo diante das evidências científicas que o recomendam e das orientações da Organização Mundial da Saúde.

Diante dessa postura, governadores e prefeitos de todo o país, discordando compreensivelmente do posicionamento do Presidente, estabeleceram o conflito, e a questão foi submetida ao Supremo Tribunal Federal, que, em 15 de abril, reafirmou a concorrência das competências nessa matéria. Ou seja, declarou que a União pode legislar sobre o tema, mas entendeu que o exercício dessa competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes.

Tem-se tomado conhecimento de que os números da pandemia são diferentes nos distintos Estados brasileiros (como era previsível), assim como dentro de suas regiões. Isso pode determinar distintas políticas de saúde pública de acordo com tais diferentes realidades, à luz da decisão da Suprema Corte.

Lamentavelmente, em oito capitais do país — Manaus, Recife, Rio de Janeiro, Fortaleza, Boa Vista, São Luís, Belém e São Paulo —, os sistemas de saúde estão beirando o colapso, tendo em vista a demanda de doentes e os números insuficientes de leitos com respiradores oferecidos, o que levou o Ministério Público do Rio a recomendar estudos sobre a decretação de lockdown, já estabelecido em várias cidades do país. Em Pernambuco e no Amazonas, houve pedidos do MP nesse sentido, indeferidos pela Justiça.

Em Manaus, onde seria plenamente cogitável o lockdown (é de 90% o índice de ocupação de leitos de UTI em Manaus e 80% no Estado), a Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, no momento mais agudo da pandemia (10.099 casos de infectados com 806 óbitos, com 7,98% de letalidade — dados de 7/5), em pleno caos, com o isolamento como a única medida segura minimizadora da disseminação do vírus, aprovou a reabertura de todas as igrejas em todo o Estado.

A autonomia das unidades da federação e o princípio da separação entre os poderes não desobrigam o Poder Legislativo do Estado do Amazonas da observância da razoabilidade, já que o exercício do poder não é absoluto e se afigura desarrazoado autorizar por lei a abertura de todo e qualquer templo religioso no Estado do Amazonas em virtude da suposta essencialidade, vez que tal situação dará certamente ensejo a aglomerações, por mais restritivas que sejam as regras de uso das igrejas.

A fé é importante, e todos têm o direito de escolher tê-la ou de não a ter, mas o Brasil não tem religião oficial, pouco importando quantos têm e qual é e quantos não a têm em virtude de nosso caráter laico. De um lado, vemos o direito à fé e o exercício da autonomia federativa, mas, de outro, o dever do Estado de cuidar da saúde pública e de salvar vidas.

O bom senso elementar evidencia que igrejas, por mais que a fé possa servir como “alimento para a alma” dos fiéis, não podem ser incluídas no rol restrito de atividades essenciais, como os hospitais e supermercados, cujo funcionamento é imprescindível para garantir saúde e abastecimento, em virtude do que se espera a prevalência do bem comum e da preservação da saúde pública, com o veto ao projeto, pelo governador do Estado, para a supremacia do interesse público.

 


Roberto Livianu é procurador de Justiça em São Paulo e doutor em Direito pela USP