Ministros do STF: interpretação majoritária torna ineficaz direito do funcionalismo a reajustes anuais de salário

 

Logo após a promulgação da Constituição Federal, havia dúvidas quanto à aplicabilidade do seu art. 37, inciso X, devido à não existência de uma obrigação específica de revisão. Entendia-se que o dispositivo não era dotado de aplicabilidade, cabendo aos Poderes, discricionariamente, encaminhar ou não a proposta legislativa de revisão.

Com o advento da EC nº 19/98, a situação foi alterada, pois a nova redação do artigo tornou-o autoaplicável. Desse modo, por força de norma constitucional expressa, os servidores públicos federais, estaduais e municipais têm direito a uma revisão geral remuneratória, anual, isonômica, e em data-base fixada. A própria Lei de Responsabilidade Fiscal é clara ao excluir expressamente de seus limites o reajuste geral anual (artigo 22 da LC nº 101/2000, em seu parágrafo único, inciso I).

O direito se materializa por lei de iniciativa privativa do Chefe dos respectivos Poderes. Obrigação esta muitas vezes descumprida, sem que seja possível ao Judiciário o controle direto de tal omissão, pois prevalece o Princípio da Separação dos Poderes. É o que decidiu o STF, por exemplo, na ADI 2.017/DF.

Todavia, face à omissão estatal quanto ao cumprimento do ato de início do processo de revisão remuneratória, surgem danos. Por decorrência lógica, deveria o Estado responder pelo ato danoso promovendo a indenização. No máximo, a discussão deveria referir-se ao seu caráter objetivo ou subjetivo, face à histórica divergência na matéria. Tudo muito simples. Mas, na prática, o STF vem decidindo de forma oposta. É o que se observa na deliberação do RE 424.584/MG, de 2009, ou no recente julgamento da Repercussão Geral 565.089-8/SP, em 25 de setembro deste ano. Há outras decisões, mas estas sem dúvida são as mais impactantes.

O relator deste último caso, min. Marco Aurélio, votou favoravelmente ao pleito para reconhecer o direito de indenização pela ausência de revisão geral. Ele iniciou reiterando a necessidade de contínua preocupação com a efetividade constitucional. A CF não faz diferença entre atos administrativos, judiciais ou legislativos quando se reporta ao dever estatal de indenizar. Qualquer ação ou omissão que cause dano pode implicar indenização. O que está por detrás da argumentação judicial refratária ao pleito é o medo inerente ao impacto econômico nas contas públicas. E o medo é justificável, pois o quantum certamente seria elevadíssimo.

Contudo, como bem destacado no seu voto: “não incumbe ao Poder Judiciário analisar a conveniência dessa ou daquela norma, mas apenas assentar se determinada pretensão é ou não é compatível com o ordenamento jurídico.”

Ademais, devem ser diferenciadas as duas formas possíveis de reajuste: o aumento real e a revisão geral repositória. O aumento real não possui garantias jurídicas objetivas e autoaplicáveis. Já a revisão geral foi assegurada pela Constituição (a professora Cynara Monteiro já explicou isso com lucidez). Então, obviamente, se fosse aumento, não poderia ser dado pelo Judiciário, que não detém função legislativa.

Todavia, a revisão geral é reajuste objetivo e com parâmetros possíveis de serem estabelecidos. Tanto é assim que, ao não serem efetivados, acarretam, indiretamente, a redução real dos estipêndios – o que é vedado constitucionalmente. A ministra Cármen Lúcia acompanhou o relator, assim como, posteriormente, ocorreu com Fux e Lewandowski, após anos de espera pelos intermináveis pedidos de vista.

A surpresa veio de Luís Roberto Barroso, que julgou improvido o recurso, sob o argumento de que a expressão “revisão geral” contida no art. 37, inciso X, da CF, trata apenas de uma “verificação”. Instaurou-se assim, uma discussão original e contrária a tudo o que se entendia do assunto até então. Assim explicou: “o chefe do Executivo tem o dever de se pronunciar anualmente e, de forma fundamentada, dispor sobre a conveniência e possibilidade, ou não, de concessão de reajuste geral anual para o funcionalismo”.

Por óbvio, a ideia de Barroso é contrária à argumentação recorrente, mesmo nas decisões negativas do direito. Em suma, a ideia é a seguinte: não haveria um direito subjetivo ao reajuste; haveria sim um direito a que o Poder Público apenas “dê uma olhada”, e depois diga se os servidores devem ou não receber o reajuste segundo a conveniência do Poder Público em dá-lo a partir das condições concretas vividas. Seria este o sentido e função da norma constitucional: o dever de as autoridades pensarem a respeito e tornarem pública a reflexão. A ideia é absurda. Mas convenceu.

Toffoli ainda reforçou os fundamentos da divergência. Segundo o Presidente do STF, não há densidade na expressão “revisão”, e há limites para a interpretação criativa do Judiciário. Quais limites, não disse, pois, afinal, a praxe é estabelecê-los quando convém aos julgadores. Reafirmou que o dispositivo constitucional está vinculado a circunstâncias que não são típicas da função judicial. E que a revisão depende de um “debate democrático”. E concluiu de forma apoteótica: o Judiciário deve adotar uma “postura de deferência” – um argumento interessante se não fosse utilizado ad hoc. Mas o pior foi ter argumentado com a Súmula Vinculante 37, que trata da proibição de aumento judicial de remuneração dos servidores por isonomia – um assunto que não tem nada a ver com o debate.

Fachin seguiu na trilha de seus colegas divergentes, mas de uma forma sui generis. Reafirmou que “há direito subjetivo plúrimo” dos servidores. Sustentou que o debate não é sobre a natureza jurídica do direito, mas sobre as consequências do descumprimento do dever estatal. Numa reviravolta retórica, passou a concordar com Barroso para afirmar que o dever pode ser cumprido pela autoridade apenas enviando-se uma justificativa de que não é possível cumprir o dever. A ideia é nonsense, e qualquer um pode perceber. Se fosse só para estabelecer um direito a um “debate democrático” ou a uma “prestação de contas”, o texto constitucional não afirmaria a mesma data e a não distinção de índices. A diferença entre a literalidade do dispositivo (bem como sua intenção) e a decisão do STF é assombrosa, porém proposital.

A tese firmada foi a seguinte: “O não encaminhamento de projeto de lei de revisão anual dos vencimentos dos servidores públicos, previsto no inciso X do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, não gera direito subjetivo à indenização. Deve o Poder Executivo, no entanto, se pronunciar, de forma fundamentada, acerca das razões pelas quais não propôs a revisão.” Salvo engano, este é um novo instituto jurídico: o “dever de pronunciamento”. Seria de se perguntar se este “pronunciamento” realmente tem que vir por projeto de lei, decreto, mensagem… ou poderia ser feito diretamente pelo Twitter.

A saída adotada pelo STF, “dizer que há o direito, mas que o direito não é um direito”, é o ápice da retórica ilusionista. Preencher o conteúdo do termo “revisão”, que historicamente é entendido como um “reajuste”, para compreender a palavra como um mero “reolhar” é algo surpreendente. Levado este argumento para outras searas, haveria um novíssimo sistema jurídico a ser reconhecido no Brasil: o que afirma direitos pela sua negação.

Do ponto de vista do Direito Administrativo, essa fundamentação dos votos divergentes carece de qualquer respaldo lógico. Em sendo o Estado, a teor do artigo 37, § 6º da CF, responsável pelos danos que venha a causar, deve a pessoa jurídica de direito público responder diretamente. É inconteste o reconhecimento atual da possibilidade de responsabilidade civil por omissão. E, ainda que exista controvérsia sobre a responsabilização por atos legislativos, é predominante a doutrina que a admite. Na mesma esteira converge a jurisprudência contemporânea, notadamente do STF, que tem firmado o entendimento de que cabe responsabilidade civil pelo desempenho inconstitucional da função de legislar. Levado o caso ao Judiciário, este se mostrou, inicialmente, receptivo a esta argumentação. O Min. Carlos Veloso teve a oportunidade de se posicionar sobre o assunto, assim afirmando: a) não há mais no Brasil espaço para a aplicação da tese da irresponsabilidade civil do Estado na função de legislar; b) no caso, denota-se “inequívoco dever de indenizar do Estado”, por omissão do agente público no encaminhamento do projeto de lei que deve ser de sua iniciativa; c) tal responsabilidade deve ser objetiva, mediante o reconhecimento de uma omissão sui generis (de seu próprio ato e não evitação de ato de terceiro); d) o dano é certo, pois não interessa o quantum (o índice), mas sim a existência de um prejuízo determinável; e) há precedentes deste tipo de indenização no próprio STF, citando como exemplo o acórdão no MI 562/RS, julgado em 2003. Enfim, um voto perfeito, inteligente, coerente e objetivo, proferido no RE 424584/MG.

Em sentido oposto, Joaquim Barbosa foi um dos primeiros a negar o direito, mas em termos muito distintos da fundamentação mais recente do STF. Afirmou que a responsabilidade do Estado por ato legislativo seria excepcional e, no caso, ele não antevia um “dano especialíssimo”, razão pela qual não haveria motivo para indenizar. Isso não é verdade, mas não vale a pena discutir o assunto, considerando que os atuais ministros caminharam por vertentes mais exóticas.

Foram manejados, como bem se sabe, tanto Mandados de Injunção quanto Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão para admoestar o Poder Público no sentido de sair da inércia e cumprir o dispositivo constitucional. Ocorre que, especialmente no caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, nenhuma sanção decorre do processo, sendo o administrador inerte meramente comunicado de sua falha. Por isso o próprio STF sugeriu o cabimento da ação indenizatória quando reconheceu a omissão. Vale lembrar: reconheceu a omissão do “reajuste”, não da “pronunciação”. Defendem tal entendimento autores de escol, tais como Aparecida Vendramel, Maurício Zockun e Luciano Ferraz.

É preciso reconhecer que, por um lado, a ideia do mero “dever de pronunciação” foi esperta, já que o STF não poderia escancarar no dispositivo da decisão que o problema é econômico, e não jurídico. Ademais, o STF efetivamente constituiu em mora o Chefe do Poder Executivo em ações objetivas pretéritas tratando do reajuste em si – e dizendo que ele (o Judiciário) não poderia determiná-lo. Ora, se fosse uma mera “pronunciação”, seria possível determiná-la de pronto.

De fato, se há mora, há uma obrigação constitucional descumprida, ou, então, a decisão do STF seria incoerente. Note-se que a “exigibilidade” existe na medida em que o artigo 37 da Constituição afirma que a revisão deve ser anual. Portanto, há termo certo: após um ano, a obrigação já é exigível. A “inexecução” é certa, pois efetivamente não houve o reajuste, e isso não se contesta. O próprio Estado reconhece essa omissão, sustentando que ela não é ato ilícito; tratar-se-ia de mera faculdade discricionária. A “interpelação” seria desnecessária no caso, pois o termo está previsto na Constituição (período anual). De todo modo, ela foi realizada em vários casos mediante o ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. E o Supremo Tribunal Federal efetivamente reconheceu a omissão ao dever. E só há omissão quando há um ato ilícito. Seria impossível se admitir a existência de uma omissão, se a atuação fosse de acordo com a lei. Ninguém cogitara, até então, que seria tão fácil ao Poder Público manter-se na legalidade: bastava se comunicar.

Dizer que a omissão, então, seria só da “pronunciação” e não do “reajuste” foi uma jogada de mestre, pois evitou todos estes incômodos lógico-hermenêuticos. A estratégia, entretanto, não sobrevive a uma análise mais apurada.

As decisões anteriores do STF que não asseguraram o direito de exigir o cumprimento da obrigação pelo Estado configuram o próprio fundamento da reparação do dano. Se o STF garantisse, em suas decisões, o direito ao percebimento do reajuste, os servidores poderiam ingressar com uma ação condenatória (ou mesmo executória) de obrigação de fazer, e não uma ação indenizatória. O argumento repetido por Toffoli de que não cabe ao Judiciário determinar o reajuste é inócuo para sustentar suas conclusões – pois justamente este é o argumento do pedido de indenização por ato legislativo ilícito.

A prestação do fato tornou-se impossível por culpa do devedor, devendo este responder por perdas e danos. Ou seja, ao não cumprir com a sua obrigação constitucional de promover a iniciativa de lei específica para a revisão, a autoridade pública tornou impossível a concretização de um direito dos servidores, com a imediata consecução de prejuízos a eles. A impossibilidade jurídica de obrigar o agente político a praticar o ato não o exime da responsabilidade pela sua omissão, pelo que resta configurado o nexo causal exigível para o direito de reparação. Qualquer outra argumentação não tem nexo nem respaldo no texto constitucional, surgindo num contexto de ativismo judicial ilegítimo, pois contrário aos direitos fundamentais. É reflexo do pragmatismo consequencialista contemporâneo.

Gilmar Mendes compreendeu isso, propondo em seu voto no RE 424584 que é possível a indenização em caso de omissão legislativa e que realmente o dano é certo. Todavia, paradoxalmente, seu voto acompanhou a divergência para negar o pleito indenizatório. Asseverou o ministro que a mora foi declarada pela ADI 2061/DF, relatada pelo ministro Ilmar Galvão (em 2001), mas fixação de prazo só cabe se for providência de caráter administrativo, não legislativo. E sem prazo definido, a demora do envio de projeto de lei deve ser submetida ao crivo da razoabilidade. Mas se subsistir a mora, mesmo depois de declarada, Gilmar admitiu a indenização, pois “a mera alegação de discricionariedade no envio de projeto de lei ou de que inexistiu prazo para o Chefe do Executivo cumprir com o seu dever constitucional não chega ao ponto de afastar a tese da responsabilidade civil decorrente da omissão legislativa”.

Tal voto é passível de crítica, mas não vem ao caso, pois Gilmar Mendes mudou significativamente sua visão no julgamento do RE 565.089/SP. É até curioso vê-lo de braços dados com Barroso ao abordar a questão econômica como fundamento para a negativa do direito. Quem apenas ler a tese final apresentada e seus argumentos centrais talvez não tenha a exata compreensão do que foi a discussão, que passou pelos “limites do possível”, pelo “medo da indexação geral de preços”, e pelo reconhecimento evidente de que os ministros não estavam limitando-se à interpretação da Constituição. O objetivo era a compatibilidade da norma com a realidade econômica. Ou seja, a ideia dos legisladores “não provou bem”, conforme disse Barroso.

Então, na prática, o STF resolveu corrigir o erro político-democrático consagrado na Constituição por intermédio de seu poder iluminista-jurídico na forma, político no conteúdo e econômico na legitimação.

 


Emerson Gabardo é vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, professor de Direito Administrativo da PUC do Paraná e da UFPR e doutor em Direito do Estado.