Tanques nas ruas: imagem de intervenção militar não combina com democracia

 

Os fogos de artifício não são por acaso.

Leio, nas manchetes, que o Sr. presidente, Jair Messias Bolsonaro, comenta que militares são “os verdadeiros responsáveis pela democracia” no Brasil e que “jamais aceitariam um julgamento político para destituir um presidente democraticamente eleito”.

Como o histórico do presidente não parece indicar que ele goste muito de medidas como o habeas corpus — até que um Bolsonaro precise de um, HC é coisa de comunista (ou algo do gênero) —, parece que o Sr. presidente resolveu opor “embargos de declaração preventivos”. É uma nova categoria: ataca-se a decisão que ainda nem existe.

Parece que estou brincando, mas tudo isso é muito sério. E vejam: é o resultado de anos de relativismo semântico, de humpty-dumptyismo institucional. Jabuti não sobe em árvore. Agimos como se as palavras não importassem. Negacionismo epistêmico. Anos e anos. O resultado: o chefe do Poder Executivo ameaça dia sim dia também a Suprema Corte na imprensa reivindicando a democracia. É a democracia sendo utilizada para atacar a democracia. Contradição performático-jurídica.

Isso tudo deve servir como um chamado à comunidade jurídica. Os fogos de artifício não são por acaso. Os ataques constantes do Presidente ao STF não são por acaso. A avacalhação hermenêutica do artigo 142 não é por acaso. Por trás de tudo isso está aquilo que venho afirmando há anos, desde o início, quando fundei a Crítica Hermenêutica do Direito há mais de duas décadas:

Senhoras e senhores: é o Direito que segura a democracia. Não nos descuidemos disso
Esse é o grande ponto e é isso que tem sido ignorado já de há muito. É por isso que os fogos de artifício não são por acaso.

Recupero o que dizia Lord Bingham, da Suprema Corte do Reino Unido. Já falei dele aqui. Dizia ele: Você pode até discordar dos juízes. Você pode até achar que advogados são todos uns picaretas. Agora, imagine um país sem o Estado de Direito para segurar e dar conta da institucionalidade. É a barbárie. Não há democracia legítima sem Direito. Não há democracia plena sem um Judiciário forte, livre e independente.

Esse é o grande busílis, o grande meio que nunca foi reconhecido; ora tratamos o Direito como mero instrumento, ora como uma mera superestrutura, jogo de poder. Resultado: “tudo isso daí que tá aí, talquei?”

Sou um otimista metodológico. Que tudo isso sirva para que nos demos conta da importância do Direito. Que o Supremo perceba que tem um papel institucional — e falo aqui invocando S. Issacharoff — do qual nossa jovem e frágil democracia depende.

De minha parte, se o presidente opõe “embargos preventivos”, coloco-me eu aqui, preventiva e humildemente, como um amicus curiae. Sou um amigo da Corte. Inimigos, esses ela já tem demais. Precisamos de mais amici. É a hora de a comunidade jurídica, uníssona, dizer que as palavras importam, que a democracia não pode ser usada para atacar o Supremo, que o Direito é condição de possibilidade para a democracia. John Austin escreveu um livro chamado “Como fazer coisas com palavras”. Por aqui, o Presidente e seus apoiadores escreveram um volume dois — a antítese: “Como destruir coisas com palavras”.

Não é por nada que o Direito está sendo atacado. Os embargos preventivos não são coincidência.

Os fogos de artifício não são por acaso. Mas são só fogos de artifício. Não serão mais do que isso se a comunidade jurídica não deixar.

Amici curiae, uni-vos. Não temos nada a perder. A não ser a democracia.

 

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.