Bolsonaro: atos praticados no início de governo podem configurar crimes de responsabilidade
Já há inúmeros juristas e pessoas do mundo político e midiático aventando a possibilidade de mais um impedimento presidencial. “Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades” já dizia Cazuza.
Lamentavelmente, o impeachment parece voltar à pauta no Brasil em razão de nossa endêmica instabilidade política e institucional, agravada por frequentes atitudes e pronunciamentos bastante controversos por parte do presidente Jair Bolsonaro, que mal completou 7 meses de exercício de um mandato de 4 anos. Já há inúmeros juristas e pessoas do mundo político e midiático aventando a possibilidade de mais um impedimento presidencial, com destaque para Miguel Reale Jr., professor titular da Universidade de São Paulo, ex-ministro da Justiça e um dos autores da petição inicial que resultou no impedimento da ex-presidente Dilma Roussef. Afirma-se que o caso do atual presidente da República seria grave a ponto de gerar sua interdição, além do próprio impedimento.[1]
Em 2016, pouco antes da autorização fornecida pela Câmara dos Deputados para a deflagração do processo em relação a Dilma por crimes de responsabilidade, publiquei, pela Editora Juruá, um singelo estudo intitulado Impeachment à luz do constitucionalismo contemporâneo[2], no qual tive a preocupação de tentar sair um pouco do debate político apaixonado de então e analisar os aspectos estritamente jurídicos do referido processo. Posteriormente, tive oportunidade de divulgar vários outros pequenos ensaios sobre aspectos específicos da questão, sendo o mais abrangente deles uma espécie de posfácio ou complemento do livro com a análise dos desdobramentos do processo da ex-presidente, que publiquei em espanhol a pedido de colegas professores e estudantes de países falantes deste idioma, ansiosos por conhecerem melhor o que estava ocorrendo no Brasil. Este foi intitulado “Impeachment en Brasil pos-Dilma: ¿Ulises desatado por Hermes? El `Canto de las Sirenas`hermenéutico-constitucional[3], publicado pela Revista Videre no ano passado.
Nas duas ocasiões, mantive a pretensão de adentrar os aspectos jurídicos e constitucionais sem adentrar em análises da conjuntura política geral. Como jurista profissional que sou, minha opção pelos aspectos técnicos foi uma tentativa de dar uma contribuição que entendo relevante ao tema, não obstante ser impossível uma neutralidade absoluta ante acontecimentos que estamos vivenciando no momento em que escrevemos. Apesar de não ser algo simples de se fazer, o jurista que quer continuar jurista e não se transformar em um mero “torcedor político” precisa ao menos tentar analisar as questões de modo desapaixonado e sóbrio. É o que mais uma vez tentarei fazer, e o leitor que conseguir ler essas linhas até o fim dirá se o consegui ao menos em parte. Vamos então adentrar a questão, independentemente de nossas simpatias e antipatias político-ideológicas, e verificar se há fundamentos jurídicos para a deflagração de um eventual processo de impeachment do Presidente Jair Bolsonaro.
O Impeachment e suas características
Retomando brevemente algumas das linhas que expus nos estudos citados, o impeachment é um mecanismo de destituição de governantes e agentes políticos que nasceu na Inglaterra medieval e foi incorporado ao desenvolvimento do parlamentarismo naquele país, muito embora não seja utilizado por lá há mais de dois séculos face à criação do “voto de desconfiança” (motion of no confidence), instrumento bem mais simples de destituição desses agentes que se tornou típico no sistema parlamentarista mundo afora.
Foi incorporado ao presidencialismo inicialmente nos EUA e depois nas constituições presidencialistas em geral, latino-americanas e brasileiras em particular. Sua configuração constitucional aponta para um processo de natureza político-criminal, não obstante os recentes casos do ex-presidente paraguaio Fernando Lugo e da ex-presidente brasileira Dilma Roussef talvez reforcem o aspecto mais estritamente político do processo, deixando em segundo plano os seus reais fundamentos jurídicos.
Apesar disso, a experiência histórica comparada parece mostrar o impeachment como de natureza político-criminal, e é apropriado que assim seja. Como afirmei em meu livro, o impeachment deve ser pensado como um instrumento excepcional, somente utilizável em situações de grave crise institucional e política, aliado ao cometimento de um ou mais crimes por parte do chefe do poder executivo nacional. Não deve ser banalizado nem utilizado a qualquer momento, menos ainda pode servir à retirada de um presidente apenas por este estar, por exemplo, governando mal e sendo impopular. Como destacou William Rehnquist, célebre juiz presidente da Suprema Corte dos EUA, em relação às suas políticas públicas, o presidente da República somente pode ser responsável perante todo o país nas eleições periódicas quadrienais para a Presidência e não perante o Congresso através do processo de impeachment.[4]
Concordo com Rehnquist. Governo ruim no presidencialismo se retira nas eleições seguintes ou com algum mecanismo de destituição popular como o recall ou o referendo revogatório de mandato, presente em algumas constituições como a da Colômbia e a da Bolívia, mas inexistentes na atual Constituição brasileira. O impeachment não é instrumento de abreviação de mandato por mau governo. Não obstante, se o presidente comete crimes (aqui no Brasil bifurcados em dois tipos, comuns e de responsabilidade) durante o exercício do mandato, é possível que, ante esses fatos delituosos e tendo um razoável consenso político nas Casas do Congresso favorável a um processo dessa natureza, o impeachment possa ser utilizado. Daí vem minha posição de que o impeachment possui uma natureza político-criminal em seus requisitos: 1) criminal: fundamento jurídico sólido e consistente consubstanciado no cometimento de um ou mais crimes (comuns e/ou de responsabilidade), sendo atos de natureza dolosa que violem ao mesmo tempo a Constituição e a Lei 1079/1950; 2) política: necessidade de razoável consenso político no âmbito das Casas parlamentares nacionais da imprescindibilidade de que tal processo ocorra. Ausente um ou outro desses requisitos, o impeachment não estaria constitucionalmente autorizado.
Deixo por ora de lado a análise da conjuntura política, se e quando haveria esse razoável consenso político. Neste momento, como jurista, me interessa apenas o primeiro requisito, e é nele que está inserida a pergunta do título deste ensaio: há fundamentos jurídicos que possam justificar um eventual impeachment do Presidente Bolsonaro?
Embora uma resposta definitiva a isso dependa obviamente de um processo regular com a observância de todas as garantias constitucionais pertinentes (devido processo legal, ampla defesa, presunção de não culpabilidade, in dubio pro reo), entendo que alguns dos atos do atual presidente da República deste início de mandato podem configurar, em tese, crimes comuns e/ou de responsabilidade. Em meu entendimento, são os seguintes:
‘Paraíbas’: discriminação em razão da origem
“Daqueles governadores de ‘paraíba’, o pior é do Maranhão. Não tem que ter nada com esse cara”.[5]
A afirmação acima foi feita pelo presidente da República em recente evento envolvendo jornalistas, tendo sido captada por microfones da TV Brasil. Denota um tratamento pejorativo e inferiorizador dos nordestinos, comum dentre os cariocas que nutrem preconceito contra estes.[6] O Presidente é do Rio de Janeiro e, na sua fala, evidentemente não se refere ao Estado da Paraíba, mas aos nordestinos em geral (governadores de “paraíba”). Praticar discriminação ou preconceito em razão da procedência, em tese, é ato que pode ser tipificado como o crime do art. 20 da Lei 7716/1989, assim redigido: “Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. (Redação dada pela Lei 9459/1997)”
Trata-se de crime comum por essa lei, sendo o caso de ajuizamento de ação penal por parte do Procurador Geral da República a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal, após autorizada a instauração do processo por 2/3 dos membros da Câmara dos Deputados. Também se afigura possível classificar o ato como crime de responsabilidade no art. 9º, 7, como crime contra a probidade na administração, no caso, “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”, não obstante a subjetividade que comporta a análise de um ato presidencial como indigno e desonroso ao cargo. Nesse caso, como em todos os de crimes de responsabilidade, o julgamento é realizado pelo Senado Federal, cuja condenação só pode ocorrer se anuírem a ela 2/3 dos senadores. Assim como no caso dos crimes comuns, o processo só pode ser instaurado após a autorização pela Câmara dos Deputados pelo mesmo quórum.
Interferência na potencial deposição de governo de outro país
A simpatia ideológica com os EUA, e notadamente com o atual presidente daquele país, Donald Trump, por parte do presidente Bolsonaro são notórias. Para além, entretanto, dessa aproximação, sob Bolsonaro o Brasil alinha-se quase irrestritamente à visão do norte-americano sobre a questão da Venezuela, tendo o presidente falado abertamente em apoio à deposição do atual presidente deste último país, Nicolás Maduro, ainda no primeiro mês de seu mandato. Posteriormente, discutiu isso de modo aberto com o presidente Trump em sua primeira visita aos EUA na condição de chefe de Estado brasileiro, tendo chegado mesmo a fazer uma inusual visita à Central de Inteligência Americana (CIA), fora da agenda oficial. Em junho, prossegue discutindo com Trump formas de asfixiar economicamente o governo venezuelano com vistas à sua queda.[7]
Por pior que seja um governo de um país estrangeiro, não parece que esteja entre as atribuições constitucionais do chefe do poder executivo brasileiro participar de conspirações para a derrubada destes. Dentre os princípios que regem as relações exteriores do Estado brasileiro estão a não intervenção e a autodeterminação dos povos (CF, art. 4º, III e IV), de observância obrigatória pelo presidente da República na condução de sua política externa.
Além de descumprir esses princípios constitucionais, o Presidente pode em tese ter incorrido no crime de responsabilidade previsto no art. 5º, 3, da Lei 1079/1950 (“Art. 5º. São crimes de responsabilidade contra a existência política da União: […]; 3) cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade”), bem como é possível investigar o conteúdo de sua visita à Agência de Inteligência dos EUA ou das próprias tratativas junto ao presidente norte-americano para esclarecer se não teriam ocorrido os delitos previstos na mesma Lei 1079/1950, art. 5º, 4 (“Art. 5º São crimes de responsabilidade contra a existência política da União: […] 4) revelar negócios políticos ou militares, que devam ser mantidos secretos a bem da defesa da segurança externa ou dos interesses da Nação”) concomitantemente aos do art. 13 da Lei 7170/1983 (“art. 13. Comunicar, entregar ou permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado brasileiro, são classificados como sigilosos. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos”).
Seriam, aqui, crimes de responsabilidade, respondendo o presidente em processo correspondente nos moldes expostos acima.
Ordem para celebração de golpe de Estado contra a ordem democrática
A Constituição da República possui compromisso estreito com a democracia e o Estado de direito. São fundamentos constitucionais do Estado brasileiro. Sua relevância é tamanha que a Lei Maior nacional possui mandamento de criminalização de conduta que vise à sua derrubada, considerando isso de tal gravidade que o crime, nesse caso, é inafiançável e imprescritível (CF, art. 5º, XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”).
Sem adentrar no mérito de que o movimento político das Forças Armadas em 1964 possa ter sido feito para impedir golpes de Estado do espectro ideológico oposto ao dos militares que o perpetraram, é fato amplamente aceito na teoria política de que se tratou de um efetivo golpe de Estado. Ainda que se queira intitular de “revolução”, é fora de qualquer dúvida que tivemos uma ruptura institucional e constitucional com a ordem democrática então vigente.
Determinar a comemoração de uma ruptura com a ordem democrática e o Estado de direito, como fez o Presidente Bolsonaro este ano[8], é conduta presidencial passível de tipificação pela Lei 1079/1950, art. 8º, 4, combinada com a Lei 7170/1983, art. 22, I, como se pode ver de seus textos:
Lei 1079/1950 – Art. 8º São crimes contra a segurança interna do país:
[…] 4. praticar ou concorrer para que se perpetre qualquer dos crimes contra a segurança interna, definidos na legislação penal.
Lei 7170/1983 – Art. 22 – Fazer, em público, propaganda:
I -de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social […]
IV -de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: detenção, de 1 a 4 anos.
Nesse caso, é possível cogitar juridicamente tanto de crime comum como de responsabilidade, seguindo o processo descrito anteriormente para cada um dos casos.
Livre exercício de poder constitucional de um Estado da Federação
“Daqueles governadores de ‘paraíba’, o pior é do Maranhão. Não tem que ter nada com esse cara”.[9]
Ao contrário do que pode parecer, não estou replicando o parágrafo já escrito, mas é que nessa frase há potencialmente o cometimento de outro crime de responsabilidade. Não se sabe o que exatamente quer dizer a segunda parte da frase (“Não tem que ter nada com esse cara”), mas é legal e constitucionalmente vedado ao presidente da República deliberadamente praticar discriminação entre os Estados da Federação com base na ideologia política dos governantes destes ou pelo fato de eles lhe fazerem oposição ou serem aliados. Se o praticar, incorre em crime contra o livre exercício de poder constitucional, tipificado como crime de responsabilidade no art. 6º, 2 e 7, da Lei 1079/1950:
Art. 6º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados:
[…] 2. usar de violência ou ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagí-lo no modo de exercer o seu mandato bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção;
[…] 7. praticar contra os poderes estaduais ou municipais ato definido como crime neste artigo.
Tratar-se-ia, pois, da discriminação de uma unidade da Federação e uma violação ao princípio federativo, fundamento e cláusula pétrea da Constituição da República (CF, arts. 1º e 60, § 4º, I).
Ameaça à liberdade de manifestação de pensamento e de imprensa
“Até porque ele é casado com outro homem e tem meninos adotados no Brasil. Malandro, para evitar um problema desse, casa com outro malandro ou adota criança no Brasil. O Glenn não vai embora, pode ficar tranquilo. Talvez pegue uma cana aqui no Brasil, não vai pegar lá fora não.”[10]
A frase acima, dita em cerimônia pública recente, faz referência ao jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept, responsável pelo que ficou conhecido como “Vaza Jato”, vazamento de supostas conversas de bastidores atribuídas a membros da denominada “Operação Lava Jato”, com destaque para seu coordenador, procurador da República Deltan Dallagnol, e o ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, o ex-juiz Federal Sérgio Moro. Em função da gravidade das revelações, parece haver por parte do presidente uma postura intimidatória e ameaçadora em relação ao referido jornalista, tendo declarado que ele cometeu crime e pode vir a ser preso.
Evidentemente, determinar a prisão de quem quer que seja não é atribuição constitucional do presidente da República, sendo competência exclusiva do Poder Judiciário, no que somente usurpando suas funções pode o chefe do executivo nacional direta ou indiretamente agir nesse sentido.
Neste caso, a conduta pode configurar crime contra o exercício de direito individual, tipificado na Lei 1079/1950, art. 7º, 5 e 9:
Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:
[…] 5. servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua;
[…] 9. violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição.[11]
Demissão de servidor por razões pessoais
Em 2012, quando ainda era deputado federal, o presidente Bolsonaro foi multado em R$ 10 mil por pesca ilegal em ação de fiscalização realizada sob a chefia de José Olímpio Augusto Morelli, analista ambiental do Ibama. Em 27 de março de 2019, já sob o Governo atual, portanto, este órgão exonerou o servidor em questão do cargo de chefe do Centro de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambiental. Tudo isso foi precedido por discursos de campanha do presidente bastante agressivos contra o trabalho dos órgãos ambientais, tendo dito, inclusive, que a “festa” de multas ambientais iria acabar em seu governo. O referido fiscal, por sua vez, declarou em entrevista não ter dúvidas de que “Bolsonaro incorporou discurso anti-ambiente a fim de levar a cabo uma vingança pessoal, que se consumou agora com meu afastamento”.[12]
Sabe-se que cargos em comissão e funções de confiança são de livre nomeação e exoneração pelo poder executivo, mas, apesar da discricionariedade, o interesse público é a motivação determinante desses atos de poder. Não se pode nomear ou exonerar com base em razões estritamente pessoais e não republicanas, confundindo discricionariedade com arbitrariedade. A se comprovar que a motivação da exoneração foi de fato dissociada de qualquer critério técnico ou interesse público, o presidente da República pode ter incorrido nos crimes previstos no art. 9º, 4, 5 e 7:
Art. 9º. São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:
[…] 4. expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição;
5. infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais;
[…] 7. proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.
Indicação de pessoa a cargo público em razão de parentesco pessoal
O presidente Bolsonaro indicou seu filho, Eduardo Bolsonaro, atualmente deputado federal, para o cargo de embaixador do Brasil nos EUA, se tornando o chefe da embaixada brasileira provavelmente mais importante do mundo (o “filé mignon” da representação diplomática brasileira). Dentre outras justificativas, ele declarou publicamente que está nas razões dessa indicação o parentesco filial, externando que pretende “beneficiar o filho sim” e que “se puder dar um filé mignon para o meu filho, eu dou”.[13]
Apesar de haver posicionamento do STF acerca de não configurar o nepotismo descrito na Súmula Vinculante 13[14] a nomeação de parentes quando estes já exercem cargo eletivo, a nomeação para qualquer cargo público, mesmo para os que o concurso não é exigível e a indicação é atribuição discricionária do chefe do Poder Executivo, deve guardar consonância com o interesse público. Embora não seja ilícito nomear um parente nessas condições, é imprescindível que este tenha as necessárias qualificações éticas, políticas e técnicas para o exercício daquele cargo. Não se afigura constitucional uma nomeação para cargo público apenas e tão somente pelo fato de o nomeado ter parentesco com o nomeante, não observando o princípio republicano e a impessoalidade que deve orientar todos os atos de um chefe da administração pública.
Aí é possível vislumbrar ato de nepotismo, o que configuraria delito previsto no art. 9º, 4, 5 e 7, o mesmo dispositivo referente a crimes contra a probidade na administração, transcrito no item anterior.
Impeachment já?
Obviamente que tudo o que tratei no presente texto, ressalto, são crimes comuns e de responsabilidade cometidos pelo presidente da República em tese, não uma conclusão definitiva. Todavia, há, como visto, vários atos presidenciais que podem fundamentar juridicamente um pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro.
No aspecto processual, por seu turno, é evidentemente necessária a estrita observância do devido processo legal, no qual podem restar esclarecidas as circunstâncias de cada um dos atos e sua desconfiguração como crimes ou ainda a ocorrência de escusas legalmente aceitáveis para que o presidente Bolsonaro eventualmente não venha a sofrer as penas de um processo de impeachment. Podem, também, em suas análises da conjuntura política do país, a Câmara dos Deputados e/ou o Senado Federal entenderem que, não obstante o presidente tenha cometido um ou mais desses crimes, deva permanecer no cargo porque sua destituição seria politicamente mais inoportuna que sua permanência. As Casas do Congresso possuem legitimidade constitucional para fazer esse tipo de análise e deliberar nesse sentido, embora não possam fazer o inverso (condenar um presidente da República que não tenha cometido um crime passível de punição com o impedimento, p. ex.).
De todo modo, a conjunção da análise técnico-jurídica dos atos aqui destacados aliada a uma eventual vontade política do Congresso Nacional em levar adiante um processo de impeachment pode viabilizar um impedimento constitucional do atual presidente da República, embora pessoalmente eu não vislumbre esse cenário político no futuro próximo.
Bruno Galindo é professor associado da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco e doutor em Direito pela UFPE/Universidade de Coimbra-Portugal.
Notas
[1] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/07/31/bolsonaro-alucinacao-impeachment-dilma-temer-miguel-reale-junior-entrevista.htm, acesso: 31/07/2019.
[2] GALINDO, Bruno. Impeachment à luz do constitucionalismo contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2016.
[3] GALINDO, Bruno. Impeachment en Brasil pos-Dilma: ¿Ulises desatado por Hermes? El ‘canto de las sirenas’ hermenéutico-constitucional. In: Revista Videre, v. 10, nº 19. Dourados: UFGD, pp. 385-418, 2018.
[4] TRIBE, Laurence. American constitutional law. 3ª ed. New York: New York Foundation Press, 2000, pp. 176-178. ACKERMAN, Bruce. We the people 2: transformations. Cambrige/Massachusets: Belknap Press of Harvard University Press, 2001, pp. 178ss. GALINDO, Bruno. Impeachment à luz do constitucionalismo contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2016, p. 30.
[5]https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/07/19/interna_politica,772322/video-bolsonaro-chama-governadores-do-nordeste-de-paraiba.shtml, acesso: 01/08/2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/termo-paraiba-usado-por-bolsonaro-reflete-preconceito-ao-nordeste-e-cabe-punicao.shtml, acesso: 01/08/2019.
[7] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/07/brasil-atua-para-evitar-nova-venezuela-diz-bolsonaro-ao-lado-de-diplomata-dos-eua.shtml, acesso: 01/08/2019. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46980502, acesso: 01/08/2019.https://veja.abril.com.br/politica/nos-eua-bolsonaro-faz-visita-surpresa-a-cia/, acesso: 01/08/2019. https://jornalggn.com.br/america-latina/chanceler-de-bolsonaro-articula-derrubada-do-governo-da-venezuela/, acesso: 01/08/2019. https://www.youtube.com/watch?v=caYE7LVrWFc, acesso: 01/08/2019. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48801565, acesso: 01/08/2019.
[8] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/ordem-para-celebrar-golpe-e-inedita-nos-ultimos-20-anos-e-incomoda-tambem-militares.shtml, acesso: 01/08/2019. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-estimula-celebracao-do-golpe-militar-de-1964-generais-pedem-prudencia,70002766930, acesso: 01/08/2019.
[9] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/07/brasil-atua-para-evitar-nova-venezuela-diz-bolsonaro-ao-lado-de-diplomata-dos-eua.shtml, acesso: 01/08/2019. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46980502, acesso: 01/08/2019.https://veja.abril.com.br/politica/nos-eua-bolsonaro-faz-visita-surpresa-a-cia/, acesso: 01/08/2019. https://jornalggn.com.br/america-latina/chanceler-de-bolsonaro-articula-derrubada-do-governo-da-venezuela/, acesso: 01/08/2019. https://www.youtube.com/watch?v=caYE7LVrWFc, acesso: 01/08/2019. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48801565, acesso: 01/08/2019.
[10] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/ordem-para-celebrar-golpe-e-inedita-nos-ultimos-20-anos-e-incomoda-tambem-militares.shtml, acesso: 01/08/2019. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-estimula-celebracao-do-golpe-militar-de-1964-generais-pedem-prudencia,70002766930, acesso: 01/08/2019. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/07/19/interna_politica,772322/video-bolsonaro-chama-governadores-do-nordeste-de-paraiba.shtml, acesso: 01/08/2019. https://oglobo.globo.com/brasil/talvez-pegue-uma-cana-aqui-no-brasil-afirma-bolsonaro-sobre-glenn-greenwald-23837301, acesso: 02/08/2019.https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-diz-que-no-seu-entender-glenn-greenwald-cometeu-crime/, acesso: 02/08/2019.
[11] Recordando que a Lei é de 1950 e faz referência aos direitos previstos na Constituição de 1946, então vigente. Hoje esses direitos constam do art. 5º da Constituição de 1988.
[12] https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/03/29/ibama-exonera-servidor-que-multou-bolsonaro-por-pesca-irregular.ghtml, acesso: 02/08/2019. https://apublica.org/2019/03/foi-vinganca-pessoal-diz-ex-fiscal-do-ibama-demitido-por-governo-bolsonaro/, acesso: 02/08/2019. https://www.dw.com/pt-br/ibama-exonera-funcion%C3%A1rio-que-multou-bolsonaro-por-pesca-irregular/a-48107830, acesso: 02/08/2019.
[13] MATHEUS, André Luiz de Carvalho. Por que, juridicamente, Eduardo Bolsonaro como embaixador nos EUA é nepotismo. Disponível emhttp://www.justificando.com/2019/07/19/porque-juridicamente-eduardo-bolsonaro-como-embaixador-nos-eua-nepostismo/, acesso: 02/08/2019.https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/07/18/pretendo-beneficiar-um-filho-meu-sim-diz-bolsonaro-sobre-eduardo.htm, acesso: 02/08/2019.https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pretendo-beneficiar-sim-o-meu-filho-afirma-bolsonaro,70002927825, acesso: 02/08/2019.
[14] STF – Súmula Vinculante 13: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”