Caos penitenciário: ‘a história do Brasil é forjada em séculos de encarceramento de membros do andar de baixo’

 

Conheci o professor José Eduardo Faria no final dos anos 80 e me tornei seu admirador. Nos anos 90, fizemos palestras juntos. Ele era, então, um dos ícones da crítica do Direito. Sob outra perspectiva, trabalhei muito sua “crise de paradigmas” em vários livros. Lembro de um exemplo, não sei se dele ou meu, sobre invasão de terras: quando uma pessoa invade uma propriedade, é esbulho; mas se milhares de pessoas invadirem e o Judiciário tratar disso como esbulho, o caos estará instalado. Eis a crise. A obra do professor é vasta. Impossível elogiá-la e descrevê-la em pequeno espaço.

Passam tantos anos e vem a discordância. Forte. Explico. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o professor Faria explica e justifica o estado da arte do processo penal brasileiro. Na verdade, muito mais justifica “as novas práticas” do que as explica no plano daquilo que se pode chamar de Estado Democrático. Sim, porque, quer queira, quer não queira — e não precisamos discutir se isso é bom ou ruim (e seria, ainda, de perguntar “bom” ou “ruim” para quem) —, a sociologia ou o realismo jurídico (o professor faz uma ode ao realismo e ao common law) ainda não podem revogar as garantias constitucionais. O advérbio “ainda” é justificado. Se no Brasil até o passado é incerto, o que dizer das garantias constitucionais.

O realismo jurídico[1] pode até ser apresentado como uma tese que poderia representar um atalho nos processos de garantia. Na verdade, na entrevista o professor se refere a uma espécie de análise econômica do direito penal. Não sei se realismo e análise econômica do direito penal estão assim (bem) casadas. Nos lugares do common law, os réus têm, também, muitas garantias constitucionais. E que são respeitadas. Não são as mesmas daqui. Como não são as mesmas garantias que existem na Alemanha, França ou em Portugal. Mas o núcleo é equivalente.

Diz o professor que “não houve uma renovação do pensamento penal brasileiro nas universidades, que ficaram encasteladas e presas a doutrinas superadas, com um viés que nós podemos chamar de romano-germânico — bastante litúrgico, cheio de entraves burocráticos, cheio de sistemas de prazos e recursos que permitiam aos advogados discutir não grandes questões factuais mas sim teses, pleitear vícios, aguardar que tais pleitos fossem julgados lentamente e, assim, obter a prescrição dos crimes dos seus clientes”.

E acrescenta: “É essa a história do conflito geracional e das visões do Direito que nós estamos vendo hoje, e são poucas as faculdades de Direito com professores preocupados em mostrar aos alunos esse confronto entre duas arquiteturas jurídicas — uma romano-germânica, tradicional; outra de corte anglo-saxão, atrelada aos mecanismos de controle de uma economia globalizada”.

Veja-se que, a todo momento, no discurso do professor, está presente essa dicotomia do “romano-germânico” ruim e o common law” bom. Mas seria uma dicotomia que vale só para o Brasil? Valeria para a Espanha? Para a Alemanha? Visivelmente, na entrevista, percebe-se uma ode às análises econômicas do Direito e seus correlatos. Fica claro que o processo penal não passa de um obstáculo à consecução dos objetivos de um padrão/objetivo econômico a ser seguido por quem está no poder, desde que este conduza a economia de acordo com a globalização. Ou li mal?

O que mais me chamou a atenção, entretanto, foi este fragmento da entrevista: “Quando alguém diz que não há provas, quer isto dizer que não haveria provas do ponto de vista de uma leitura germano-românica do direito penal econômico”. E, com esta frase, o professor Faria justifica a atuação dos julgadores do TRF-4 e do juiz Sergio Moro (e dos procuradores). O que o professor Faria propõe — e justifica — é que existe “uma mudança no conceito de prova, uma mudança no conceito de processo e uma mudança no conceito do próprio delito”.

Deixa eu ver se entendi. Parece que que prova não é (mais) a prova provada/demonstrada. Prova é aquilo que a superação do “sistema romano-germânico”, via commonlismo e um processo penal 3.0 (ou 4.0 ou alguma velocidade desse quilate), diz que é. Assim, se alguém diz “não há provas”, a resposta do direito 3.0 será “não há provas vírgula, porque, do ponto de vista do direito penal econômico anglo-saxonizado, elas existem. Basta querer vê-las”. Resumindo: prova é teleologia. É a volta do inquisitivismo, algo do tipo “sei o resultado e depois busco a prova”. E se tiver um atalho ainda mais curto, como a delação premiada, facilitam-se as coisas. Para quem? Os fins justificam os meios. Prova não é mais algo que tem de ser demonstrado. Prova é algo “útil” (eficiente) ao establishment jurídico para satisfazer seu plano de poder. Simples assim.

Não é por nada que o professor investe duramente contra o garantismo processual penal. Traduzindo: quem é garantista defende um modelo indevido e retrógrado de garantias. Em tempos de direito 3.0, os garantistas continuam com um direito 1.0. Não quero ser injusto, mas senti no discurso também algo que indica que as garantias do direito “garantístico” não são boas para a economia, circunstância que se pode aferir a partir de uma espécie de análise econômica do direito penal. Portanto, a Constituição do Brasil é atrasada.

Por fim, outra crítica dura — dentre tantas feita pelo professor titular da USP — dirige-se contra o STF. Arrasadora. Mas sempre com foco na formação dos juízes. Como se uma pós-graduação resolvesse. Ou se isso ocorrer por efeito de mudarmos os juízes. Ou se encurtarmos os prazos e diminuirmos recursos. Ou se incorporarmos a velocidade do common law. Um parêntesis: Nesse sentido, há algo em comum entre os professores Faria e Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra, que também caiu nessa armadilha, em 2009, ao dizer que, em Portugal, o processo Casa Pia poderia ser resolvido mais rapidamente se juízes tivessem mais poder, isto é, se não tivessem tantos prazos e garantias a favor dos réus. Veja-se como a esquerda também cai nessa, por vezes (observe-se a ironia: o professor Boaventura foi e é crítico dos procedimentos da “lava jato”). Como se cumprir o protocolo processual fosse coisa ruim. Até compreendo que sociólogos digam isso, mas juristas não deve(ria)m fazê-lo. Na minha modesta opinião.

Fecho o parêntesis e sigo. A questão que não foi enfrentada — e não tem sido enfrentada pelos críticos do Direito — é a da tradição da dogmática jurídica que, no fundo, sempre fez o que o professor José Eduardo Faria prega nessa entrevista. Peço calma, porque explicarei: Na prática, o Judiciário sempre fez análise econômica do Direito ou algo sem nome, mas que se aproxima disso, teleologicamente. É por isso que se tem 750 mil presos, dos quais 350 mil são provisórios. E veja-se que esse número vem aumentando. Isso é o quê? O sistema atual de provas e recursos, criticado pelo professor, não tem evitado tantas condenações e prisões. Por que será? Ou seja: se o professor critica o garantismo e o atual sistema de prazos e recursos, por que isso não funciona a favor dos pobres? Desde os anos 90 falo da crise do Direito Penal, citando uma frase que repeti muito por este país afora: “La ley es como la serpiente; sólo pica a los descalzos” (frase de um camponês de El Salvador, referida por de La Torre Rangel). Mas, então, o que mudou? A resposta parece ser: o “excesso de garantias” criticado não é tão garantidor assim, pelo menos se se trata da patuleia. O que há de novo, então? Simples: Agora bateu às portas da sociedade brasileira a falta (e não o excesso) de garantias — ou seja, a analise teleológico-econômica — para o andar de cima. Eis a questão. Eis uma isonomia processual às avessas.

Vou exemplificar o modo como, para o andar de baixo, o Direito sempre foi sem garantias, sem direção hidráulica e sem bancos de couro. Bom, só o número de condenados e presos já demonstra isso. Mas vamos lá: o que é mais “rápido e eficiente” tipo “análise econômica do direito penal” do que condenar procedendo à inversão do ônus da prova? Sabe o Professor que todos os Tribunais estaduais e, de certo modo, o STJ (HC 348.374/SC) ainda aplicam essa inversão aos delitos de furto e de tráfico de entorpecentes? O Professor sabe que também se faz prova de ofício contra o réu (STJ RHC 58.186/RJ)? E o que dizer das nulidades, que, sob o crivo da livre apreciação das provas (sim, isso ainda existe), ainda podem ser descartadas sob o argumento de que “são relativas” (por todos, o HC 103.525, do STF, sobre o qual já escrevi algumas vezes), sendo que somente em 2017 — 10 anos depois da alteração do CPP — o STF dá sinais de que a literalidade do artigo 212 deve ser cumprida? O processualista Eduardo Fonseca Costa denuncia magnificamente bem esses “standards” “novos” e a neoflexibilização dos procedimentos.

Mais algumas indagações: será que esse “standard anglo-saxónico” de prova, elogiado pelo professor Faria, poderia ser aplicado também aos processos em tramitação no Carf, onde bilhões da viúva “se arrastam” e por vezes, “morrem na burocracia”, ou esse novo “standard” só se aplica ao “novo processo penal”? Esse “standard anglo saxônico” poderia ser aplicado pelo Fisco para executar os débitos nascidos de sonegações dos bancos e outras instituições financeiras (habituais frequentadores do Carf, segundo diversas matérias da grande imprensa), que como se sabe, usam todos os instrumentos garantistas para tentar se desenvencilhar dos débitos? Ou para os crimes fiscais (no Brasil, furtar é mais penoso do que sonegar tributos, porque o establishment trata melhor ao sonegador do que ao furtador)? Veja-se: não, não estou dizendo que os bancos não devam usar os instrumentos garantidores. Como garantista, seria contraditório de minha parte. Minhas perguntas são apenas consequência do novo standard de prova que começa a ser defendido publicamente e praticado no processo penal brasileiro para o andar de cima.

Despiciendo registrar que a História do Brasil forjou-se com séculos de encarceramento de membros do andar de baixo. Eventualmente um pródigo, o lúmpen da burguesia, era pego no alçapão judiciário. Nos golpes militares, havia sempre a exceção: membros das classes altas também eram aprisionados. Neste último caso, as garantias terminavam por ser preservadas por alguns ministros corajosos do STF ou do STM. Mais recentemente, e essas não são palavras minhas, o encarceramento de poderosos só ocorre quando há guerras entre VIP’s das classes dirigentes (créditos devidos por essas ideias a Eugenio Raúl Zaffaroni). Defender as garantias, independentemente da classe social do réu, deveria ser uma função da dogmática, de esquerda ou de direita. Defendê-las é afirmar a constituição. Infelizmente, muitos do povo preferem idealizar uma justiça que prende VIP’s como uma Justiça igualitária e eficiente. Na verdade, ela apenas revela que ninguém está a salvo. Nem a própria lei.

No fundo, arrisco a dizer — com todo o respeito ao professor que tanto li e citei em textos e livros (do qual continuo admirador confesso, porque teve muita importância na minha formação) — que, assim dito como está na entrevista (sim, sei que entrevistas não pegam tudo), parece existir um discurso que chancela academicamente o arbítrio judicial, só que agora chamando pomposamente de “nova concepção do direito penal econômico” — o que não passa de uma violação da Constituição. Não acredito, olhando a história do professor, que ele creia, sinceramente, que as práticas do juiz Moro sejam condizentes com o devido processo legal vigente na maioria dos países democráticos.

Aliás, nesse sentido, permito-me acrescentar, sempre lhanamente: o professor Faria, idealiza, para caber no seu argumento, um processo penal que desconsidera a própria história institucional do common law norte-americano, que não prescinde jamais de uma Constituição escrita e de uma forte legislação federal em matéria processual. Aliás, é de lá, da tradição do common law, que vem a expressão due process of law, compreendida como um sistema de garantias! É de lá, do direito norte-americano, que vem o paradigmático precedente dos direitos reconhecidos pela Suprema Corte no caso Miranda v. Arizona. Minha pergunta: O que as garantias de Miranda têm a ver com o quadro pintado pelo eminente professor? Respondo: As garantias de Miranda, fielmente aplicadas no Brasil, fariam uma diferença enorme, principalmente para os condenados do andar de baixo. Não sobraria a metade dos presos. E nem vou falar de como Miranda e outros precedentes que conformam o due process of law relacionar-se-iam com o juiz Moro. Nem vou falar das conduções coercitivas que Moro institucionalizou.

Insisto: common law não é assim. Trago uma frase de lá, que me dá razão, para exemplificar. Imaginemos que “um assassino é flagrado com sangue em suas mãos, curvado sobre o corpo de sua vítima; um vizinho, com uma câmera, gravou o crime e o assassino confessou, por escrito e em vídeo”. Lá, nos EUA, “para que o Estado possa punir o malfeitor, deve conduzir um processo criminal formal, completo, detalhado, a partir do qual resulte um veredito de culpa. É isso que faz que um Estado seja governado por leis e não por homens”.[2] (grifos meus)

Sabem de quem é a frase? Antonin Scalia. Ex-Justice da Suprema Corte Norte-Americana, ícone do pensamento conservador e do movimento textualista, em relação a quem tenho uma série de ressalvas, ferrenho adversário teórico de Ronald Dworkin.

Para encerrar, não quero crer que o professor e jurista José Eduardo Faria concordaria com uma assertiva desse quilate: “Essa ‘prova acima de uma dúvida razoável’ importa no reconhecimento da inexistência de verdades ou provas absolutas, devendo o intérprete/julgador valer-se dos diversos elementos existentes nos autos, sejam eles diretos ou indiretos, para formar sua convicção.” Essa passagem é do voto do desembargador Gebran Neto, do TRF-4. Os grifos, é claro, são meus. O entendimento de que inexistem verdades ou provas absolutas, é claro, é dele. A tese sobre “dúvida razoável” contra o réu também é dele (e de Moro).[3] Não subscrevo essas teses autofágicas e, como disse, creio (quero crer) que o professor José Eduardo Faria tampouco.

Ainda, numa palavra: se o professor leu o acórdão do TRF-4 do caso Lula — que é o mote desse novo standard anglo saxónico de prova — terá visto que, no item 9 da ementa, consta que, nesse novo padrão, não é razoável exigir-se isenção do Ministério Público. Será esse o “novo” de que tanto falam? Quem aceita ser acusado e processado por uma instituição que não possui isenção? Vejam: Foi o TRF-4 que disse. Com essa novidade, nem o Ministério Público pode concordar. [4] Afinal, se tem as mesmas garantias da magistratura, não é garantia do réu ter um MP que trabalha de forma isenta e imparcial? Penso que o MPF fará duros, candentes e vigorosos embargos de declaração ao acórdão, para que isso fique claro. Ou deixará assim?

 

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em direito.

 


[1] Em resumo, é uma tese empirista segundo a qual o Direito é simplesmente aquilo que os Tribunais dizem que ele é. Dessa premissa, segue-se que o que importa é prever como os juízes vão decidir, e eis tudo.

[2] SCALIA, Antonin. A Matter of Interpretation. Princeton: Princeton University Press, 1997, p. 22.

[3] Essa história da utilização do art. 66, 3, do Estatuto de Roma para justificar um novo standard (sic) é uma leitura “sergiomorona”. “Prova acima de uma dúvida razoável” é absolutamente retórico. Isso tem nome: transferência da prova objetiva para a “consciência do juiz”, o que nada mais faz do que retroceder ao inquisitivismo. Enfim, filosofia da consciência na veia. Se, para punir, precisamos abrir mão da prova, é porque fracassamos. Simples assim.

[4] Aqui vai um recado ao Ministério Público. Como assim, “não é razoável exigir-se isenção do Ministério Público”? Leio, aqui e ali, manifestações públicas do MP ou de seus membros com referências “às magistraturas”. Quais magistraturas? “A magistratura judicial” e a do Ministério Público. Eu acho bom. Acho ótimo. Aplaudo. De fato, defendo de há muito que o Ministério Público é uma magistratura. O membro do MP é um magistrado sobre o “parquet”, pois não? Não por acaso, o §4º do art. 129 da CF diz que se aplica ao Ministério Público, “no que couber”, o disposto no art. 93, que cuida do Poder Judiciário. “No que couber” – não há muita gente se dando conta desta ressalva. Estou sendo muito sutil? Então vamos lá: Está na hora de o MP (que ora me quer perto, ora me quer longe – mas que não deixa de ser a minha casa) decidir se quer ser composto por “promotores públicos 2.0” ou por membros de uma magistratura. Independente, equidistante, imparcial e… isenta! Se não posso exigir “isenção” de um membro do MP, que tal contratarmos advogados para produzir acusação? Olha que boa “anglo-ideia”, pois não? Aliás, à margem: fui um dos primeiros a apontar a inconstitucionalidade da figura do assistente de acusação…! Portanto, o MP deve escolher entre fazer agir estratégico e comportar-se como advogado acusador ou de uma magistratura em pé, que trabalha com isenção e com fairness.