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Como tem sido usual no Brasil nos últimos tempos, a comunidade jurídica foi, de novo, sacudida por uma notícia constrangedora. Refiro-me à atuação de um integrante do Ministério Público no município de Uruguaiana (RS) que recorreu de uma sentença absolutória proferida pelo juiz da comarca, num caso em que dois homens foram autuados e denunciados por haverem “furtado” alimentos do local de descarte de alimentos vencidos num pátio de supermercado. O episódio me deixou muito reflexiva… E não, exatamente, surpresa em constatar como alguns membros do MP agem perseguindo gente pobre. Esse tipo de postura, aliás, não é nova na história do MP brasileiro.

Pensemos no que foi o MP como conselheiro do rei, na época imperial; pensemos no que foi o MP nos primeiros anos da República e durante os períodos ditatoriais: uma instituição para a qual o concurso não era bem um concurso mas uma influência, uma indicação de alguém. E não acho que o concurso somente seja um meio eficaz de ter nos quadros ministeriais pessoas preparadas para lidar da melhor forma com os complexos problemas sociais que o país acumulou ao longo do tempo. É preciso pensar em algo mais. Adiante retomarei este ponto.

Por ora, ressalto que o episódio noticiado e comentado entre profissionais progressistas da comunidade jurídica provocou muito constrangimento e revolta. Isso porque o recurso do promotor de Justiça contra a absolvição dos acusados da prática de furto é chocante para aqueles que têm uma consciência social e se veem atordoados com a miséria e a fome que se alastra pelo país e, ainda, se mostra, juridicamente, alheia ao conceito de “furto famélico”, exemplo clássico comumente trazido nas aulas de Direito Penal, em qualquer faculdade de Direito, justificando-se a absolvição pela excludente de juridicidade.

É justamente esse aspecto mais técnico acerca do conceito de “furto famélico” que se presta a rememorar a história do Ministério Público, porque traz aquele do passado, e não exatamente aquele comprometido com os ideias da Constituição Federal de 1988, que foi um divisor de águas para a vida política e jurídica do Brasil, como não poderia deixar de ser. Hoje, porém, vivemos sob o efeito colateral inesperado trazido por esse texto. Na época da constituinte, não se poderia imaginar que a Carta de 1988 pudesse gerar, de um lado, o resgate de um Ministério Público retrógrado em contraste com os desejos da sociedade e, de outro, a onipotência ministerial que hoje se testemunha e que está calcada no discurso de ser o MP a instituição que defende essa sociedade.

No que se que refere ao primeiro aspecto, o do Ministério Público retrógrado, eu destaco que o episódio do “furto famélico”, em Uruguaiana, é uma volta ao passado não apenas do ponto de vista social como também institucional. Socialmente é doloroso, institucionalmente é vergonhoso porque até ocorrer a absolvição dos acusados, para a qual rios de tinta escorreram nos tratados de Direito Penal, fundada na possibilidade de excludentes de ilicitude, a decisão judicial foi antecedida, na prática, de uma atuação policial e do oferecimento de uma denúncia pelo membro do Ministério Público. Só que, em Uruguaiana, a vergonha foi potencializada pelo fato do representante do Ministério Público haver recorrido da decisão judicial, instando assim a Defensoria Pública a cumprir seu papel e a fazê-lo com esmero que fez. O incrível é que tudo isso ocorreu sob a égide da Constituição de 1988, marco da vida verdadeiramente democrática do país, tanto sob a ótica formal quanto material. E, ainda, se deu em pleno século 21, nos trazendo o sabor do Brasil que se projeta da República Velha até o Brasil imediatamente anterior ao programa Fome Zero.

No que se refere ao segundo aspecto, o da onipotência do Ministério Público, a questão que emerge é mais complexa do que a vergonha decorrente da falta de consciência social e que redunda na insensibilidade ao problema da fome. A Constituição de 1988 no seu artigo 127, atribuiu ao Ministério Público “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses socais e individuais indisponíveis”, o que facilitou a sua atuação na esfera da vida pública e a decadência dela, numa perspectiva, talvez, Habbermasiana [1]. Não quero com isso afirmar que o Ministério Público não deva defender “a ordem democrática e os interesses sociais e individuais indisponíveis” mas essa atribuição — tal como conferida no texto — vem sendo ao longo do tempo superdimensionada e chegou a ser deformada.

No fundo, a partir desse segundo aspecto relativo à onipotência do Ministério Público, a reflexão que me toma o espírito é no sentido de que esse discurso sobre o MP defensor da sociedade, repetido com tanta ênfase, o empodera para o bem e para o mal, porque o coloca como um tutor dessa sociedade, escasseando as possibilidades de uma auto-organização de setores sociais para concretizar os direitos fundamentais listados na Constituição de 1988. E disso decorre algo muito preocupante para a democracia, que é o fato de transferir a atividade política como fator de construção da vida pública exclusivamente para o seio da vida institucional. No contexto brasileiro, reforça-se um padrão histórico da formação do país, e que pode ser entendido como um processo segundo o qual o Estado precede a sociedade, embora, na prática, esta interfira frequentemente na configuração estatal.

A título de ilustração acerca da onipotência do Ministério Público trago aqui o caso da operação Lava Jato (doravante identificada neste texto pela sigla LJ), que me vem à mente porque estou, ainda, perplexa com a entrevista feita nesta semana, no UOL, com o ex-procurador da LJ Carlos Fernando [2]. Uma fala que se mostrou inteligente para o grande público, em especial, aquele estranho à área jurídica porque foi aparentemente asséptica em termos ideológicos. Uma manifestação de alguém que parecia um porta- voz da “nobreza ministerial” se declarando frustrado com o sistema de Justiça ao afirmar que “a LJ foi ingênua ao querer punir poderosos”, afirmação que foi seguida do comentário de que o MP não pode servir apenas para punir negros e pobres.

Quando se reflete um pouco mais sobre tudo o que ele disse se conclui quão perigoso é ouvir isso da boca de alguém que revelou na sua atuação total desprezo pela democracia representativa através de partidos políticos, os quais são e devem ser sempre, em tempos pacíficos e voltados à estabilidade, os atores das grandes transformações sociais, inclusive, daquelas que reduzem ou eliminem a miséria. Aliás, o ex-procurador deixou fluir a sua fala, atravessada por esse desprezo aos partidos políticos, ao generalizar a corrupção como algo próprio e exclusivo dos partidos e de governos (sem incluir todos) e sem atentar para o fato de que não existe corruptor sem corrompidos. Sem atentar tampouco para o fato de que o sistema capitalista, por exemplo, não é imune à corrupção em menor ou maior grau. Ao contrário, se alimenta dela criando mecanismos para mantê-la em níveis de conveniência e conivência.

Em outras palavras, fiquei com a impressão de que ouvi um discurso estrategicamente construído para apontar um fato: o MP persegue negros e pobres e corrige essa atuação persecutória investigando e punindo poderosos. O argumento seria até verdadeiro se, na prática, a LJ, por exemplo, não tivesse se valido do mesmo espírito de onipotência que se detecta no caso de Uruguaiana, comentado no início deste artigo. Uma atuação tecnicamente precária e publicamente intimidatória sem qualquer ponderação quanto aos seus efeitos sobre a vida e os corpos das pessoas tomadas como alvo da performance institucional. Felizmente, não é todo o MP que age sob o pálio da falta de consciência social e se desconecta do seu papel constitucional ao agir sem a ponderação necessária quanto ao uso dos meios legais para cumprir esse papel de forma satisfatória.

Sem dúvida, é também papel do Ministério Público punir poderosos. Porém, o que me impressionou na fala do ex-procurador foi a serenidade com que se referiu aos métodos ousados, designados “avançados” e abusivos da LJ, os quais tratoraram os princípios liberais consagrados no Estado brasileiro a partir de 1988 sob o encargo dos seus agentes na manutenção deles. Embora eu tenha muitas restrições à ordem liberal, que se revela, na prática, hipócrita, ela é o contorno, a moldura do nosso Estado, e não pode ser arrancada a golpes de machado. Precisa ser aperfeiçoada, ser mais realidade e menos retórica. Uma das características que tem e é alternativa de um futuro mais estável é justamente valorizar a democracia representativa através de partidos políticos e suas ideologias desde que voltadas à preservação do debate de ideias, sem programas ou propostas que redundem na tortura e/ou eliminação física de pessoas ou na destruição das fontes naturais de vida.

Ao ouvir esse procurador enojado com a moldura político-partidária, percebi que subjacente à fala dele está um “não dito” (no sentido psicanalítico) e que aos meus ouvidos soou como um desejo de que o MP talvez devesse tomar o poder e arrasar os partidos políticos. Algo, aliás, que parece se inserir na “cartilha” nazista de Carl Schmitt [3] supervalorizando e idealizando as instituições baseadas num espécie de decisionismo e que tem como fonte o voluntarismo de quem as integra e em favor dos interesses apenas dos seus integrantes.

Prosseguindo em manifestar calmamente as suas opiniões, o ex-procurador Carlos Fernando chegou a declarar que costuma votar não por preferências pessoais, mas naqueles que podem realizar um projeto. Nesse sentido, disse que se Moro se candidatar poderia, sim, votar nele. E num “ato falho” deixou escapar a frase: “Eu até brincava que não votaria nele porque ele não tem experiência política”. Usou o verbo “brincar” no passado e no contexto da fala parecia que dizer isso era algo corriqueiro. Aí, na minha cabeça, veio a pergunta: quando esse tipo de brincadeira se fazia? Na época da LJ? Se assim ocorria, cogitava-se desde então da atuação político-partidária do MP por seu braço pseudotécnico e verdadeiramente ideológico da LJ, né?

Pena que o “ato falho” passou batido pelos entrevistadores e eu fiquei com as perguntas sem resposta, circulando na minha cabeça. De igual modo, passou batido pelos entrevistadores o fato de que as críticas quanto à dificuldade em punir poderosos não incluiu, por exemplo, Alberto Youssef, que, embora condenado no âmbito da LJ, goza da liberdade vigiada e não perdeu a fortuna que ilicitamente construiu. Afora isso, aliás, ele esqueceu de mencionar que Alberto Youssef já era uma figura dele conhecida desde o “caso Banestado”, em que o ex-procurador atuou juntamente com Moro.

Não sei vocês, mas eu vejo, além da subversão de ordem constitucional, de viés liberal, uma perversão institucional cujo anseio é criar uma ordem totalitária, na qual a política partidária tradicional deve ser sufocada. Para tanto, essa política começa a ser negada como se fosse algo satisfatório para a sociedade, explorando as decepções de alguns com os nomes que sufragaram nas urnas. No lugar dessa política partidária, o que se apresenta e ficou implícita na fala do ex-procurador são figuras egoicas de Moro e Deltan Dallagnol… Os senhores de uma ação messiânica. Não por acaso, sabe-se, os meios de comunicação de massa foram acionados para a captura das consciências e esse movimento espetacular dos lavajatistas é algo completamente estranho à formação dos promotores e procuradores da República. Foi uma inovação que contou com a simpatia do procurador-geral da República da época, Rodrigo Janot, porque isso também o levava aos holofotes disponibilizados pela mídia corporativa.

Por fim, não poderia deixar de relacionar tudo isso aos ruídos em torno da PEC 05/2021, que não obteve na Câmara o número de votos necessários para prosseguir. Antes que alguém se apresse em designá-la como uma PEC contrária ao Ministério Público, é bom lembrar que a sua rejeição não só trouxe, de novo, uma visibilidade à instituição, como manteve intacta a onipotência institucional, aqui criticada, o que afasta a ponderação tão necessária ao processo de interpretação e aplicação do texto constitucional no exercício das funções ministeriais. Além do que deixa sem qualquer limite o poder do procurador-geral de Justiça para agir, se omitir ou perseguir uma vaga no STF, como se fosse natural deixar nas mãos de uma só pessoa os destinos das mais altas autoridades do país, sendo, ele, o PGR, uma dessas autoridades.

O essencial no debate sobre o MP não chegou aos vídeos que circularam em defesa da independência funcional dos seus membros. Nenhum questionamento sobre as formas de ingresso na instituição e os limites internos existentes. Nenhuma palavra sobre qual o trabalho que tem sido feito e aquele que deveria ser feito pelo CNMP. Punir apenas? Orientar? Firmar diretrizes? Fomentar escolas de formação?

Há, portanto, muito mais coisa para além dos vídeos e das notícias vergonhosas.

Voltando ao caso de Uruguaiana, em que pese a independência do representante do Ministério Público para denunciar quem quer seja pela prática de crime, resta saber se a hipótese de “furto famélico”, na sua concepção, pressupõe ser a comida apenas um direito ou ser necessidade de sobrevivência? Se a resposta for que é apenas direito, então, o que pode o Ministério Público com a sua onipotência fazer para concretizar esse direito e resolver o problema da fome de milhões de brasileiros? Se a resposta for necessidade de sobrevivência, qual a contribuição do Ministério Público na produção de alimentos do país?

Penso que muito pouco possa ser feito pelo MP nas duas hipóteses, mas estou certa de que isso não seria um problema num país em que a desigualdade não fosse construída como estratégia de manutenção de privilégios e de concentração de renda e, por conseguinte, de poder político, coisas que não podem estar no horizonte de cobiça de quem faz parte do Ministério Público.

 


Maria Betânia Silva é procuradora de Justiça aposentada (MPPE).

[1] https://www.scielo.br/j/trans/a/xX3qzLRtTwwTvfJwmYwq5Kj/?lang=pt.
[2] https://www.uol.com.br/play/videos/noticias/2021/10/28/ex-procurador-da-lava-jato-fala-sobre-moro-em-2022-governo-bolsonaro-cpi-e-mais–uol-entrevista.htm.
[3] Carl Schmitt. Les trois pensées juridique, PUF, 1995.