Imagem: reprodução (Pragmatismo Político – 13/7/17)
A organização administrativa, embora ocupe um lugar central no Direito Administrativo [1], raramente desperta a atenção dos estudiosos. No Brasil e alhures é vista, na maioria das vezes, como um tema menor, árido e de natureza meramente descritiva. Trata-se, evidentemente, de um enorme equívoco, cujas consequências práticas são desastrosas. A escolha de um figurino organizativo determina o regime jurídico da pessoa criada, o que compreende aspectos relativos a controle, responsabilidade, eficácia dos atos e contratos, prerrogativas, bens, pessoal e procedimentos financeiros.
Ao legislador e muito menos ao administrador público é dado eleger livremente, segundo seus humores, a modalidade organizativa de determinada atividade administrativa. Impõe-se um juízo de adequação, ou seja, uma correspondência entre o meio e a finalidade a ser alcançada. No Brasil, desgraçadamente, há uma histórica tendência de fuga do regime publicístico mediante contrafações administrativas, as quais, na correta afirmação de Ricardo Marcondes Martins, têm “por efeito mascarar, disfarçar, esconder o conceito de fato aplicável, ou seja, o correto regime jurídico incidente. Enfatiza-se: a invocação do conceito incorreto, e do regime a ele associado, tem o efeito de camuflar o conceito correto e seu regime correto de lado. A contrafação importa, portanto, numa fraude” [2].
Os serviços sociais autônomos, ilustres desconhecidos do Direito Administrativo brasileiro, constituem uma das modalidades preferidas de fraude ao regime jurídico-administrativo. Mas qual é a razão que leva a tal preferência? A resposta é simples: são pessoas de direito privado criadas por lei e que não integram a Administração Pública, dotadas de autonomia administrativa e limitadas, formalmente, apenas ao controle finalístico, pelo Tribunal de Contas, de aplicação das dotações orçamentárias ou das contribuições parafiscais que recebe [3]. Disso resulta, por exemplo, que tais entidades podem editar suas próprias normas de contratação de terceiros e de seleção de pessoal.
As sucessivas ondas de criação de serviços sociais autônomos em desacordo com a ordem jurídica mereceram a seguinte observação da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “Tais entidades, embora criadas com a denominação de serviço social autônomo, fogem inteiramente às características dos modelos anteriores. É como se a simples denominação fosse suficiente para definir a natureza da pessoa jurídica. O real objetivo foi o de fugir ao regime jurídico próprio das entidades da Administração Pública indireta” [4].
Quando, porém, parecia que a febre dos serviços sociais autônomos havia arrefecido, eis que surge uma insólita figura decorrente da Lei nº 13.465/2017: o “serviço social autônomo” por mera declaração de vontade privada! Em outras palavras: esqueçam o antiquado princípio da legalidade, agora qualquer pessoa jurídica de direito privados sem fins lucrativos pode se declarar “serviço social autônomo” e atrair o seu regime jurídico. Com isso arruinou-se a única certeza que havia em torno dos serviços sociais autônomos, qual seja: a sua criação por força de lei em sentido formal.
Embora isso possa parecer absolutamente extravagante, foi exatamente o que os instituidores do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico (ONR), cuja finalidade é implementar e operar, em âmbito nacional, o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI), fizeram no dia 10 de março deste ano, ao aprovar o estatuto da entidade. Com efeito, o artigo 76, §2º, da Lei nº 13.465/2017 prescreve que “o ONR será organizado como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos”.
Já o artigo 1º do Estatuto do ONR estabelece o seguinte: “O OPERADOR NACIONAL DO SISTEMA DE REGISTRO ELETRÔNICO DE IMÓVEIS (ONR), também identificado pela sigla ONR, é uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, sob a forma de serviço social autônomo, instituída nos termos do art. 76, da Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017”. Vê-se, pois, que uma norma estatutária pretende converter uma pessoa jurídica de direito privado em serviço social autônomo. É a quintessência da ilegalidade, cuja obviedade nos faz cogitar em um possível equívoco redacional. De todo modo, é urgente a supressão do aludido trecho do artigo 1º do estatuto do ONR que sugere a forma de serviço social autônomo, a fim de que se reintegre a ordem jurídica.
Rafael Valim é doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP.
[1] Schmidt-Assmann, Eberhard. La teoria general del Derecho Administrativo como sistema. Madri: Marcial Pons, 2003, p. 251.
[2] MARCONDES MARTINS, Ricardo. Teoria das contrafações administrativas. A&C – R. de Dir. Administrativo & Constitucional. Belo Horizonte, ano 16, n. 64, p. 115-148.
[3] STF, RE 789874, relator: ministro Teori Zavascki, Tribunal Pleno, julgado em 17/9/2014.
[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 29ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 610.