STF: uma instituição confrontada com as grandes questões políticas nacionais

 

Se quiser sobreviver ao processo de erosão democrática, o Supremo deverá trocar o discurso da eficácia normativa pelo discurso do cálculo institucional e político

Em 2002, Álvaro Uribe foi eleito o 56º presidente da Colômbia com 53% dos votos, logo no primeiro turno das eleições. Aproveitando-se do momento turbulento pelo qual seu país atravessava, Uribe evocou com maestria o discurso da segurança pública e acusou seu antecessor, Andrés Arango, de aprofundar a já avançada crise que havia se estabelecido entre o governo colombiano e as Farc.

Uribe adotou uma política de segurança pública que se mostrou bem-sucedida, e os colombianos presenciaram uma queda vertiginosa nos índices de assassinatos e sequestros no país. É desnecessário dizer que o então presidente recebeu apoio popular ímpar, chegando a ter seu governo aprovado por mais de 90% dos eleitores. Valendo-se dessa situação política extremamente favorável, a base de Uribe no Congresso colombiano não perdeu tempo e apresentou um projeto de emenda constitucional para que o presidente pudesse concorrer à reeleição (possibilidade não prevista pelo texto original da Constituição).

Como era de se esperar – e no Brasil sabemos muito bem disso –, a constitucionalidade da referida emenda foi desafiada perante a Corte Constitucional da Colômbia. Os juízes daquele tribunal, em decisão histórica, teceram considerações valiosas sobre a “emendabilidade” da Constituição. Segundo a maioria, caberia apenas ao povo colombiano “substituir a ordem constitucional vigente”, competindo ao Congresso emendar a Constituição, sem descaracterizá-la.

Colocando essa doutrina em prática, a Corte entendeu que um mandato de oito anos não alteraria a substância da Constituição, que define elementos sociais e democráticos como sustentáculos do Estado colombiano. Em 2006, então, Uribe venceu novamente as eleições e se tornou o primeiro presidente reeleito do país com mais de 60% dos votos.

Uribe voltou a pontuar alto nas pesquisas de satisfação popular de seu governo e, mais uma vez, seus aliados políticos buscaram emendar a Constituição para permitir que o presidente fosse reconduzido ao cargo para exercer um inédito terceiro mandato. Nada obstante, dessa vez a Corte Constitucional decidiu que a emenda proposta era inconstitucional, visto que se apresentava como uma substituição ilegítima da Constituição – é dizer, um terceiro mandato permitiria que Uribe nomeasse praticamente a totalidade dos cargos-chave da estrutura estatal, concentrando muito poder no executivo federal e desequilibrando a balança entre as instituições da República.

Mesmo gozando de altos índices de aprovação e contando com o apoio da elite política da Colômbia – o que certamente lhe renderia capital político para ao menos tentar contornar a decisão da Corte –, Uribe acatou o julgamento e não concorreu à reeleição em 2010. Esse é um caso paradigmático para o direito constitucional comparado, demonstrando que é possível para uma corte – desde que realizados os cálculos institucionais devidos – desmontar (ou ao menos enfraquecer) um projeto de corrosão democrática e de concentração de poder.

Passando para a análise do cenário político brasileiro, diversos aspectos do caso colombiano podem ajudar a pensar em estratégias constitucionais para evitar o processo de declínio da democracia liberal que se avizinha. Nosso papel não é soar o alarme do fim dos tempos, mas tão somente traçar um paralelo entre o que vem se desenhando no Brasil e o que já é realidade em países como a Hungria e a Polônia, mas que deixou de se realizar na Colômbia.

Para ilustrar o argumento que será desenvolvido a seguir, é preciso levar em conta uma das linhas estruturantes da agenda política do presidente Jair Bolsonaro: o combate à “doutrinação ideológica” nas instituições de ensino do país, notadamente nas universidades da rede pública e federal. É possível indicar dentro desse eixo político ao menos duas políticas que o governo indicou predisposição de perseguir nos próximos anos: a aprovação do projeto de lei “escola sem partido” (ou algum substituto ao texto que hoje tramita no Congresso Nacional) e a triagem política de bolsistas de pós-graduação (hipótese que, até o momento, foi apenas ventilada nos corredores do Ministério da Educação).

Do ponto de vista eminentemente constitucional, estamos diante de duas propostas claramente contrárias ao projeto constituinte de 1988. O art. 205 da Constituição estabelece os princípios nos quais o ensino no Brasil deverá se basear. Dentre os incisos dessa norma podemos encontrar menção à “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento” e ao “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”.

Ditar o que pode ou não o professor ensinar a partir de categorias político-partidárias, como pretende fazer o programa escola sem partido – ainda que indiretamente, através de terrorismo legiferante –, é tolher a liberdade de cátedra. De outra sorte, filtrar quem irá ser beneficiado por bolsas de pesquisa na pós-graduação, mais uma vez valendo-se de critérios político-partidários – mirando, assim, o raio “despetizador” contra as universidades –, também é tolher a liberdade de pesquisa e de divulgação do pensamento. Ambas as estratégias representam um perigo ao pluralismo de ideias e concepções pedagógicas.

Nada obstante, enfrentar essas questões na arena judicial é um problema. Podemos partir do pressuposto de que sim, essas políticas públicas, uma vez concretizadas, serão levadas para aquela que é arena de contestação política por excelência no Brasil, o Supremo Tribunal Federal. O impasse que se coloca (ou melhor, que se projeta) não é tanto a respeito do resultado que podemos esperar de um eventual julgamento, mas sim como (e se) o Supremo poderá desarmar essas duas bombas. Afinal, estamos diante de duas políticas que fazem parte de um dos eixos estruturantes da plataforma eleitoral do atual presidente.

Por outro lado, não é possível esperar que o Supremo atue com deferência sublime. Evitar o conflito com o presidente a qualquer custo por medo de qual será o preço a se pagar certamente não é a solução. Assim como a solução não será derrubar todas as propostas avançadas pelo governo federal – o que possivelmente levaria a um desgaste ainda maior da já surrada imagem do Judiciário brasileiro. A situação parece ainda mais crítica quando lembramos que, durante as eleições, Bolsonaro sugeriu aumentar o número de ministros de 11 para 21 caso a corte não cooperasse com seu governo.

O cenário que se desenha, ainda que hipoteticamente, é o seguinte: de um lado, Bolsonaro acaba de se eleger com amplo apoio popular, apoiando-se numa plataforma eleitoral conservadora e que prega, como um de seus pontos gravitacionais, o combate à “doutrinação ideológica”. Do outro lado, o Supremo terá que, cedo ou tarde, se pronunciar sobre a constitucionalidade das políticas adotadas pelo governo federal, as quais – ao menos as duas antes indicadas – parecem inconstitucionais de plano.

Antes de sugerir uma linha de atuação para a corte brasileira, é necessário dar um passo para fora da turbulência política em direção às novas pesquisas a respeito do processo de enfraquecimento da democracia liberal e do projeto de corrosão constitucional capitaneado por alguns líderes políticos em países como Venezuela, Filipinas, Índia e Turquia.

Como ensina Scheppele, o constitucionalismo liberal e democrático geralmente é encarado como algo garantido e estável, uma realidade institucional quase inevitável que bebe da fonte do que Fukuyama denominou “o fim da história”. Nada obstante, a prática vem demonstrando que a forma constitucional pode permanecer inalterada enquanto o “conteúdo constitucional e liberal” é drenado para dar espaço a políticas autoritárias, colocando em perigo o Estado de Direito e a independência do Poder Judiciário. Esse processo é chamado de declínio democrático (democratic backsliding). [1]

Ainda, para Huq e Ginsburg, estamos diante de um processo de erosão democrática. Trata-se de uma decomposição lenta, mas ainda substancial, dos três pré-requisitos de uma democracia liberal e constitucional: eleições livres e justas, direitos de associação e de expressão e Estado de Direito (rule of law). Assim, é possível identificar ao menos cinco mecanismos de erosão democrática, os quais atacam, simultaneamente, diferentes aspectos daqueles pré-requisitos. São eles: (1) o uso de emendas constitucionais para alterar arranjos governamentais, (2) a eliminação dos freios e contrapesos entre os poderes do Estado, (3) a centralização de poder no executivo, (4) a contração ou distorção da esfera pública e (5) a eliminação ou supressão da competição entre partidos políticos e da perspectiva de rotatividade no poder entre forças políticas. [2]

Para combater o processo de erosão democrática, entretanto, é necessário construir um novo paradigma de atuação para os órgãos que exercem a jurisdição constitucional, especialmente o Supremo no Brasil. Já não vivemos na era em que as rupturas democráticas acontecem da noite para o dia (como em 1964 no Brasil). A tônica agora é outra, as democracias estão sendo esvaziadas por líderes com inclinações autoritárias, mas o ritual constitucional e democrático persiste – embora seu conteúdo próprio esteja lentamente evaporando. As cortes constitucionais precisam vislumbrar o que está em jogo e polir suas respostas judiciais de acordo com o ritmo dos acontecimentos que levam ao declínio democrático.

Dixon e Issacharoff sustentam que a deferência judicial pode ser uma maneira de evitar uma colisão direta entre as cortes e os atores políticos, dando tempo para o Judiciário “entrincheirar-se enquanto instituição”. É dizer, as cortes podem apresentar suas visões ao público a respeito de uma questão política sensível (como fez a Corte colombiana quando discorreu sobre os limites para emendar a Constituição em 2006) e, ao mesmo tempo, enquanto avaliam as circunstâncias do ambiente político, adiar o uso dos remédios constitucionais adequados (o que, de certa maneira, foi a estratégia que a Corte colombiana adotou, declarando inconstitucional a proposta de emenda de 2010 valendo-se de uma doutrina apurada ainda em 2006). [3]

No caso do Supremo, entretanto, existem ao menos dois entraves que precisam ser endereçados neste espaço. O primeiro é o grau avançado de individualismo na corte brasileira, o que podemos chamar de “poderes individuais dos ministros”. O segundo, ao seu turno, é a consolidação do paradigma da eficácia normativa da Constituição, o que podemos chamar de “constitucionalismo da efetividade”.

Os poderes individuais dos ministros – assim conceituados por Diego Werneck e Leandro Ribeiro [4] – representam um entrave ao combate à erosão democrática pelo Supremo porque enfraquecem sua imagem, impossibilitando o desenvolvimento de uma estratégia coordenada entre seus onze membros. Em outras palavras, o Supremo ainda não desenvolveu um espírito institucional, o que, como demonstra o caso colombiano, é essencial para a defesa da democracia.

O constitucionalismo da efetividade, de outra sorte, impossibilita a consolidação do paradigma do pragmatismo constitucional no Brasil. Avaliar a jurisdição constitucional apenas pelo viés da eficácia normativa da Constituição é deixar de lado outra função igualmente importante: o cálculo institucional e político que o Supremo deve fazer enquanto colegiado, assumindo seu papel de ator político. Isso não significa abandonar o constitucionalismo da efetividade, mas sim sopesá-lo com o pragmatismo constitucional – como fez, mais uma vez, a Corte colombiana.

Retomando o exemplo do combate à “doutrinação ideológica” capitaneado por Bolsonaro, é possível vislumbrar um cenário no qual o Supremo deverá se manifestar tanto a respeito da constitucionalidade do programa escola sem partido quanto a respeito da constitucionalidade da triagem política de bolsistas. Se a Corte brasileira enfrentar a questão a partir do constitucionalismo da efetividade, ambas as políticas deverão ser declaradas inconstitucionais. Nada obstante, considerando o exercício dos poderes individuais na Corte, é possível que algum ministro mais sensível ao ambiente político bloqueie a tomada de decisão colegiada – pedindo vista dos processos, por exemplo.

Ambas as alternativas são desastrosas. O Supremo precisa coordenar suas ações internas em defesa da democracia, e isso envolve realizar cálculos institucionais enquanto (pasmem) instituição. De certa maneira, assim, o constitucionalismo da efetividade já é temperado pelo pragmatismo constitucional através do exercício dos poderes individuais, mas ainda falta uma coordenação intramuros para que o Supremo enquanto instituição assuma conscientemente esse papel.

Finalmente, mais uma vez apenas para exemplificar o debate aqui proposto, poderia o Supremo, ainda que com ressalvas, conferir o selo da constitucionalidade ao programa escola sem partido (que em grande parte apenas repete diretrizes de ensino que já estão dispostas em lei), evitando uma colisão direta com os poderes eleitos e, ao mesmo tempo, reafirmar sua posição em defesa dos princípios que regem o ensino segundo a Constituição. Ao assim proceder, o Supremo, à moda da Corte colombiana, acumularia capital político para, num segundo momento, derrubar a triagem política de bolsistas, que se apresenta como uma estratégia agressiva de concentração de poder e que consolidará consequências nefastas para o a democracia brasileira no longo prazo.

 

[1] SCHEPPELE, Kim Lane. Worst Practices and the Transnational Legal Order (or How to Build a Constitutional “Democratorship” in Plain Sight. Working Paper, 2016. Disponível em: https://www.law.utoronto.ca/utfl_file/count/documents/events/wright-scheppele2016.pdf

[2] GINSBURG, Tom. HUG, Aziz. How to Save a Constitutional Democracy. Chicago: The University of Chicago Press, 2018, p. 71 – 73.

[3] DIXON, Rosalind. ISSACHAROFF, Samuel. Living to Fight Another Day: Judicial Deferral in Defense of Democracy. New York University School of Law. Law and Legal Theory Research Paper Series. Working Paper No. 16-01, 2016.

[4] ARGUELHES, Diego Werneck. RIBEIRO, Leandro Molhano. ‘The Court, It is I?’ Individual judicial powers in the Brazilian Supreme Court and their implications for constitutional theory. Global Constitutionalism: Human Rights, Democracy and the Rule of Law. v. 07. n. 02. Jul. 2018. p. 236 – 262.

 


João Victor Archegas é bacharel em Direito pela UFPR e pesquisador do Ninc – Núcleo de Investigações Constitucionais.