Comecemos com um exemplo. Imagine um médico qualquer. E que ele diga nas redes sociais e no hospital em que trabalha que antibióticos são coisas inúteis e que livros sobre medicina são 99% lixo. Algo como “Não me importa o que diz a doutrina médica; importa é o que eu penso acerca da medicina”. Acha grave? Quem se trataria com um médico desses? Eis a pergunta de um milhão de antibióticos. A situação descrita acima pode até parecer esdrúxula. Ou não. Na sequência, explicarei.

O Direito tem se deparado com situações desse tipo já há algum tempo. Afinal, difícil é se esquecer quando o então ministro Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça, disse, em um acórdão, não se importar com “o que pensam os doutrinadores”. Esse problema não é novo, que fique claro. Escrevi sobre isso logo após o ocorrido (2004), e parece que esse negacionismo deitou raízes nas redes sociais.

Mas não é só isso: é o simbólico. É o que isso representa. Porque os episódios são muitos. São várias as instâncias de um fenômeno comum: o desprezo pela teoria em nome de um realismo sem epistemologia, que sequer se reconhece como realismo — porque despreza a teoria.

Pois em recente publicação, o juiz Antônio Sergio Bernardinetti publicou em suas redes a seguinte “sentença”: “Ignore a doutrina. 99% é lixo. Pouco se aproveita. A maioria ou advoga em causa própria ou só quer vender livro mesmo. Aliás, poucos são os livros de Direito que têm algo a ser aproveitado. Melhor estudar filosofia e economia. Jurisprudência… tem pra todo gosto. Se não for vinculante, ignore. Leia a norma e interprete à luz do caso concreto. O resto é hipocrisia” (31 de julho de 2021, Instagran).

Pense, portanto, na alegoria com a medicina que fiz no início do texto. Pensou? Muito bem. Então, sigamos.

Ao contrário do que disse o ministro Gomes de Barros e do que afirmou o juiz, devemos nos importar (muito) com o que a doutrina diz (Pontes, Bonavides, Ovídio, Barbosa Moreira… são doutrinadores, só para avisar). Vale insistir: o Direito não é algo à disposição do juiz. Caso realmente se pretenda fazer Direito sem Direito, ele será tudo… menos Direito. O que é o Direito sem a doutrina, pois? Resta muito pouco. Má metafísica e uma péssima teoria política do poder.

Reprisado o absurdo, segue-se com a reprise de alguns argumentos. Não existe Direito sem doutrina. Defender o contrário é postular por um Direito anêmico que pretende negar a sua própria existencialidade. Por isso que, quando o então ministro disse o que disse, eu afirmei, de forma peremptória, que o papel da doutrina é constranger esse tipo de pensamento solipsista, na medida em que importa, sim, o que a doutrina pensa.

Nesse contexto, não faz sentido dourar a pílula. A doutrina brasileira precisa, urgentemente, voltar a doutrinar e não se deixar doutrinar. Não pode ser glosa de decisões. Deve se dar o respeito. Não pode ficar silente. Do contrário, contentar-se-á com o papel ao qual é relegada por aqueles que dizem que ela não importa: a de mero repositório de jurisprudência. Vinculante, claro, já que “tem pra todo gosto. Se não for vinculante, ignore. Leia a norma e interprete à luz do caso concreto. O resto é hipocrisia” (sic).

Após muito debate e não pouca resistência, o Código de Processo Civil conseguiu firmar alguns avanços. Se ainda resta dúvida sobre o papel da doutrina, imagine um cenário de amnésia coletiva em que o 926 e o 927 do CPC sejam esquecidos por todos. Juízes e tribunais não precisariam sequer respeitar a coerência e a integridade que o Direito exige.

Ao fim e ao cabo, cumpre refletir sobre isso: o que o Direito exige. Como afirmo em Verdade e consenso, a doutrina deve doutrinar, sim. Esse é o seu papel. Aliás, não fosse assim, o que faríamos com as mais de mil faculdades de Direito, os milhares de professores e os milhares de livros produzidos anualmente? E mais: não fosse assim, o que faríamos com o parlamento, que aprova as leis? E, afinal, o que fazer com a Constituição, lei das leis?

A propósito: se o juiz Bernardineti tem razão, por qual razão tantos juízes e ministros e desembargadores escrevem livros? 99% seria lixo (sic)? Ou a parte do “lixo” (sic) exclui juízes que escrevem?

Se você ficou em dúvida e acha que eu exagero (ou exagerei), pense nos médicos. Ah, você está com consulta marcada? Ou uma cirurgia? Cuidado com quem você se trata.

Numa palavra final.

Insisto — teimosamente, como o faço há tantos anos — no ponto: o que é o Direito sem a doutrina? Sem teoria?

Repristinar um arremedo do velho realismo jurídico (porque o que o juiz diz não tem relação com o realismo), além de problemático em si mesmo, é autossabotagem e falha pelos próprios termos. Se o Direito é mera previsão de como vão decidir os tribunais, como prever aquilo que não tem nenhum critério?

Pensem nisso: sem critérios, é possível que um juiz diga qualquer coisa sobre qualquer coisa, sem nada que o vincule. Quem constrói os critérios? Pois é: a doutrina. A teoria do Direito. Porque, sem o constrangimento, sem a teoria que diz o que o Direito é — desde-já-sempre à luz daquilo que ele deve ser em seu melhor —, nem mesmo a lei democraticamente aprovada é capaz de impor limites; afinal, sem critérios, a atribuição de sentido fica livre e ninguém poderá fazer nada numa comunidade jurídica onde todos são leviatãs.

O Direito só é possível com critérios. Ou ele não é Direito. Ele não pode ser o que cada um pensa que ele é. Isso, aliás, consta nas centenas de livros doutrinários, muitos deles escritos por juízes-ministros-excelentes-doutrinadores.

Esta coluna não é contra o juiz Bernardineti; é, sim, apenas uma crítica — acadêmica — contra a sua posição sobre o papel da doutrina (e da própria magistratura) que pode influenciar jovens juízes, promotores e estudantes de Direito. Seria ruim que sua posição fosse majoritária. Por isso a minha crítica. Cada um é responsável pelo que cativa.

E esta coluna é em singela homenagem aos doutrinadores brasileiros: juízes, promotores, procuradores, desembargadores, ministros, professores que se dedicam a querer doutrinar. Não é fácil escrever. Só quem escreve, sabe. Também é uma homenagem aos médicos que leem livros de doutrina sobre medicina.

O resto é hipocrisia.

 

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.