A reforma administrativa, que está no Congresso Nacional (PEC 32/2020), contém uma série de medidas que resultarão em prejuízos à população e aos servidores públicos. Com as mudanças propostas pela equipe do governo federal, várias garantias de continuidade da prestação de atividades fundamentais pelo Estado simplesmente desaparecerão. Estudos realizados no âmbito do funcionalismo comprovam a ineficácia das alterações pretendidas. Um deles foi transformado numa carta aberta endereçada a todos os senadores e deputados federais. O texto, datado de 6 de março deste ano (acesse aqui), foi assinado pela Federação Nacional dos Servidores do Poder Judiciário nos Estados, e destaca os pontos resumidos na sequência.

 

 

O tamanho do Estado

Os vínculos e emprego no setor público brasileiro, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), alcançaram 11,4 milhões de trabalhadores em 2017. Desse total, 60% estão nos municípios, 30% estão nos Estados e 10% pertencem aos quadros da União. A PEC 32/2020 atinge esse enorme contingente de servidores, alterando profundamente seus regimes jurídicos e lhe retirando conquistas trabalhistas e direitos adquiridos.

 

A questão da estabilidade

A PEC 32/2020 propõe nova redação para o artigo 41 da Constituição Federal, permitindo a estabilidade apenas para os cargos “típicos de Estado”, a serem definidos em lei complementar federal (artigo 39, § 1º). Consequentemente, os cargos que não se enquadrarem nesse conceito perderão a garantia constitucional da estabilidade, desde que sejam preenchidos, com as respectivas investiduras, após a entrada em vigor da emenda (os atuais servidores, conforme o artigo 2º, da PEC, não perderão o direito à estabilidade). O instituto da estabilidade é uma conquista da sociedade brasileira, consolidada na Constituição Federal de 1988. Trata-se de mecanismo de combate a arbítrios praticados por abuso de poder político e econômico.

 

Sobre a redução da jornada e de remuneração

A PEC 32/2020 modifica o § 20 do artigo 37 da Constituição, inserindo o tema da redução da jornada de trabalho e de remuneração de servidores públicos. Diz a proposta: “É vedada a redução da jornada e da remuneração para os cargos típicos de Estado”. Ao excluir expressamente os cargos típicos de Estado, a nova regra autoriza que a redução atinja todos os demais setores, incluídos os atuais quadros do serviço público. Essa possibilidade, ainda sob o texto constitucional em vigor, foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da ADI 2.238, e também durante a discussão da PEC nº 186/2019 (Emergencial).

 

Sobre a vinculação de futuros servidores ao INSS

A redução do número de contribuintes para os regimes especiais de Previdência, prevista na PEC 32/2020 (artigo 9º), afetará aposentadorias e pensões que não estejam vinculadas ao INSS. Nos últimos anos, a União e vários Estados aprovaram reformas baseadas na necessidade de superação do déficit no “sistema”. Se houver permissão constitucional para que os entes vinculem os futuros servidores ao regime geral, os atuais funcionários ativos e aposentados, bem como os seus pensionistas, serão prejudicados. Sem o ingresso de novos contribuintes, os regimes próprios terão as receitas enfraquecidas e serão obrigados a promover reajustes de alíquotas de contribuição previdenciária para todos.

 

Sobre cargos em comissão e funções de confiança

Uma das conquistas da sociedade brasileira com a estabilidade e o concurso público, consagrados no texto de 1988, foi a limitação de cargos em comissão e funções de confiança na administração pública. Com isso, prevaleceu o investimento em servidores de carreira. O inciso V do artigo 37 da Constituição determina que “as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento.” A farra na criação de cargos de provimento sem concurso foi limitada por esse dispositivo, que fortalece o princípio segundo o qual a ocupação de cargos públicos deve ser feita, como regra, com base no concurso público, o que permite que qualquer brasileiro tenha a possibilidade de servir na administração pública. As indicações políticas são, portanto, exceção.

Mas a PEC 32/2020 pretende alterar o inciso V do artigo 37, estabelecendo que “os cargos de liderança e assessoramento serão destinados às atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas”. Como se vê, na comparação das duas redações, há nítida e inovadora conceituação, que prevê que futuros cargos poderão ser ocupados sem concurso público. Eliminam-se as funções de confiança e os cargos em comissão (e todas as suas peculiaridades) e criam-se cargos de “liderança e assessoramento”, que poderão ser ocupados por qualquer pessoa. Desaparecerá a garantia de provimento mínimo para servidores concursados. Não existirá mais a limitação para áreas de direção ou chefia, mas sim para o que se chama de atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas. Neste último caso, a PEC inova também ao permitir a criação de cargo sem concurso para exercer atribuição técnica, o que hoje é vedado. Isso é grave. Aliada ao aumento das terceirizações, a medida tende a precarizar as relações de trabalho e de carreira no setor público. Uma lei complementar federal (artigo 39, III) instituirá normas gerais de ocupação desses cargos, e os Estados e municípios também deverão instituir regime jurídico de pessoal (artigo 39-A, V). Por fim, ato do chefe de cada Poder substituirá gradualmente os atuais cargos em comissão e as funções de confiança pelos cargos de liderança e assessoramento (artigo 4º).

 

Sobre a cooperação com entidades públicas ou privadas

Esse novo instituto, previsto no artigo 37-A, não limita quais serviços poderão ser objeto de cooperação. A redação abre espaço para alcançar a atividade-fim dos órgãos oficiais, burlando a regra da contratação por concurso de provas e títulos para atividades próprias de servidores públicos, subordinada a planos de carreiras.