A imprensa tradicional, assim concebida como as empresas que durante décadas dominaram o mercado telemático, tem se apresentado como arauto da defesa do conhecimento e da democracia. Divulga e ataca todos os atos que se apresentam como negação da ciência ou como afrontas à ordem democrática, chegando mesmo, em algumas situações, ao enfrentamento de instituições e pessoas que desprezam a ciência ou ameaçam as garantias constitucionais.

Quando se trata de ataques aos direitos constitucionais dos trabalhadores e trabalhadoras, no entanto, o lado empregador dessas empresas fala mais alto e passam a se postar daquela mesma forma que criticam. Para efeito de garantirem uma produção com menor custo, aliam-se a golpistas e a negacionistas e aplaudem todas as iniciativas de supressão de direitos sociais. Foi assim na “reforma” trabalhista, quando, negando fatos históricos, invertendo dados e forjando uma opinião pública a favor de seus interesses capitalistas, se postaram como as grandes protagonistas do golpe dado contra a classe trabalhadora.

Agiram da mesma maneira na chamada “PEC do fim do mundo” (que congelou os gastos sociais por 20 anos) e também nas iniciativas do atual governo federal (que tanto criticam, mas que, em grande medida, ajudaram a eleger), tanto na reforma da Previdência, quanto nas MPs que chegaram a autorizar, em total afronta à Constituição, a redução de salários e demais direitos pela via do acordo individual entre empregado e empregador. Assim, ao mesmo tempo que expressam oposição à política sanitária (ou a ausência dela), apresentam-se como aliadas na promoção da denominada “pauta liberal” (neoliberal), com privatizações, reforma tributária sem taxação das grandes fortunas e em prejuízo dos mais pobres, além dos já promovidos ajuste fiscal e arrocho salarial de servidores, com vistas à redução dos serviços públicos e a consequente abertura de campos para a iniciativa privada (PEC 186, já promulgada como EC 109/21).

Um dos exemplos mais eloquentes e recentes dessa parcialidade da imprensa tradicional se deu por ocasião da prolação da decisão do STF que praticamente eliminou a atualização dos créditos trabalhistas. Julgando as ADCs 58 e 59, nas quais se discutia a constitucionalidade do § 7º do artigo 879 da CLT — o qual, mesmo depois de o STF dizer que a TR era imprópria para a correção de dívidas, determinando, por consequência, a aplicação do índice do IPCA-E —, estabeleceu que os créditos trabalhistas seriam atualizados pela TR.

A inconstitucionalidade, pois, considerando os próprios parâmetros fixados pelo STF, era flagrante, mas essa corte, a partir de um cálculo matemático, expresso na própria decisão, não quis simplesmente dizer isso e, então, extrapolando os limites da lide, saiu do tema correção monetária e adentrou o tema dos juros de mora, não tratado na ação. Como resultado, no aspecto da correção monetária, disse o inevitável, ou seja, que o § 7º do artigo 879 é inconstitucional e determinou a aplicação do IPCA-E. Mas seguiu adiante e, arbitrariamente, primeiro, limitou o índice de correção monetária até a data da citação do devedor (em processo judicial) e, segundo, determinou que da citação em diante deveria ser aplicada a taxa Selic (que tecnicamente é uma taxa de juros remuneratórios do capital, que hoje está em 2,75% ao ano).

Para tanto, afastou, sem declaração de inconstitucionalidade, a regra do § 1º do artigo 39 da Lei nº 8.177, aplicada na Justiça do Trabalho de forma incontestada desde 1991, que fixava juros de mora para os créditos trabalhistas na ordem de 1% ao mês, desde o ajuizamento da reclamação trabalhista, cuja aplicação, inclusive, não interrompia, como devido, a incidência da correção monetária (durante um tempo pela TRD, depois pela TR e, ultimamente, pelo IPCA-E). Essa redução da efetividade dos direitos trabalhistas promovida pelo STF, sem qualquer amparo na Constituição, o que é muito grave para a própria preservação da democracia, dos direitos civis e políticos e dos demais direitos fundamentais, não gerou nenhuma pequena nota na imprensa tradicional. Os arautos da defesa da democracia, do conhecimento e da Constituição simplesmente silenciaram.

Podia-se imaginar que a imprensa tradicional não sabia o que estava acontecendo. Ledo engano. Sabia e, com o silêncio, anuía.

Tanto que tão logo surgiram na Justiça do Trabalho decisões que, aplicando (repito, aplicando) a decisão do STF, de modo, inclusive, a estendê-la aos consectários jurídicos pertinentes, a imprensa tradicional veio rapidamente à tona, demonstrando que está em alerta para defender o “direito” que o STF conferiu aos que descumprem a legislação do trabalho e, por conseguinte, ao menos aparentemente, defendendo a si mesma e a seus patrocinadores, na qualidade de devedores trabalhistas, não importando se, para isso, tenha que fazer vistas grossas das garantias constitucionais conferidas aos trabalhadores enquanto cidadãos e desprezar o conhecimento jurídico, além de se valer da tática da desinformação para desconstruir os argumentos que estão expressos nas decisões divulgadas e, desse modo, criar uma versão distorcida e própria de seu conteúdo.

E o passo dado foi o mais corriqueiro: o de utilizar a notícia como forma de fazer uma cobrança pública, nem tão velada assim, para uma “intervenção” do STF.

Vale reparar que a matéria assinada por Adriana Aguiar, veiculada na internet, no dia 17 de março, pelo jornal Valor Econômico, do grupo Globo, traz a chamada “Juízes do Trabalho aplicam correção maior que a estabelecida pelo STF” [1], quando, na verdade, conforme reconhecido até mesmo no corpo da matéria, as decisões não aplicaram juros de mora e, sim, juros compensatórios (suplementares), que são institutos diversos e que se aplicam com frequência nos demais ramos do Judiciário na hipótese fática retratada nos autos [2] [3]. As decisões se valeram de dispositivo legal expresso, cuja aplicação, inclusive, se apresentou como decorrência lógica da própria decisão do STF.

A pergunta que fica é: com uma imprensa — cujo papel é fundamental, cabe frisar — desleal e comprometida com os interesses que desprezam os direitos sociais e a independência judicial, como se pode ter esperança de que vamos efetivamente conseguir garantir a aplicação da Constituição para todos os cidadãos e cidadãs brasileiros — nos quais se incluem, obviamente, os trabalhadores e as trabalhadoras —, sendo isso a condição básica do respeito à ordem democrática?

Há de se ver, agora, se o STF vai entender o recado e atender ao chamado!

 

Jorge Luiz Souto Maior é desembargador do TRT-15 e livre-docente em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP).

 


[1]. https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/03/17/juizes-do-trabalho-aplicam-correcao-maior-que-a-estabelecida-pelo-stf.ghtml.

[2] ‘Apelação – seguro de vida – pagamento extemporâneo da indenização – cobrança – encargos contratuais – juros e correção monetária – integração da sentença – juros de mora – abusividade – reequilíbrio do contrato – percentual ínfimo – indenização suplementar – prejuízo excedente aos juros de mora. – artigo 406, do código civil, que estabelece cláusula dispositiva – patente a abusividade (artigo 51, do código de defesa do consumidor) evidenciado o desequilíbrio do contrato. Juros de 1% ao ano, embora igualmente aplicável à seguradora, com manifesta desproporção, certo que a ré poderia rescindir o contrato em tamanha morosidade – integração pelo índice legal – artigo 422, do código civil; – legítima a incidência de indenização suplementar com fundamento no artigo 404, parágrafo único, do código civil. Demonstrado prejuízo pelo pagamento a destempo da indenização securitária – indenização suplementar porque inexistente cláusula penal e insuficientes os juros de mora – integração da sentença; recurso provido’ (tj-sp – apl: 10017721620168260003 sp 1001772-16.2016.8.26.0003, relator: maria lúcia pizzotti, data de julgamento: 07/06/2017, 30ª câmara de direito privado, data de publicação: 10/07/2017).

[3] ‘Indenizatória. Acidente de trânsito. Abalroamento do automóvel em que trafegava o autor por outro, de propriedade de locadora, resultando no óbito de sua genitora. Pleito inicial e recursal exclusivo concernente ao ressarcimento extrapatriominal a ser fixado pelo juízo. […] Indenização suplementar, prevista no artigo 404, parágrafo único, do código civil, que é atrelada a insuficiência dos juros de mora à satisfação dos prejuízos materiais suportados pelo inadimplemento das obrigações pecuniárias. Interpretação silogística do pedido deduzido na exordial que revela a pretensão de utilização de referida verba, de natureza acessória, como critério de correção de eventual condenação arbitrada pelo juízo, para a apuração dos consectários da mora, enquanto não satisfeita a condenação, o mesmo sucedendo em relação ao termo a quo da contagem dos juros moratórios, a contar do evento danoso, quando reconhecida a sua incidência a partir da citação […]’ (TJ-RJ – apl: 00262189820128190209 rio de janeiro barra da tijuca regional 6 vara civel, relator: mauro dickstein, data de julgamento: 30/05/2017, décima sexta câmara cível, data de publicação: 09/06/2017).