Na data de 21 de março, comemora-se o Dia Internacional da Síndrome de Down. Não por coincidência, foi nessa mesma data que ocorreu a anulação da lei de segregação racial na África do Sul. Também em 21 de março de 1965, o pastor batista Martin Luther King liderou 3.200 pessoas no início da terceira e bem-sucedida marcha pelos direitos civis de Selma até Montgomery, Alabama (EUA). Bem como se lembra a data em todo o mundo pelo dia internacional de luta pela eliminação da discriminação racial, tendo sido criado pela ONU em referência ao massacre de Sharpeville, ocorrido no ano de 1960, na cidade de Johanesburgo, na África do Sul, onde em uma marcha pacífica a polícia sul africana conteve o protesto com rajadas de metralhadoras, vitimando de morte 69 pessoas e deixando 180 feridas. Além de ser o Dia das Mães na Jordânia, Síria, Líbano e Iêmen. Portanto, a data carrega em si importância e história de luta e de resistência.

Recentemente, a data foi oficializada no Brasil pela Lei 14.306, de 3 de março de 2022, que dispõe, no parágrafo único do artigo 1º, que “os órgãos públicos responsáveis pela coordenação e implementação de políticas públicas voltadas para a pessoa com síndrome de Down são incumbidos de promover a realização e divulgação de eventos que valorizem a pessoa com síndrome de Down na sociedade”.

Não haveria, portanto, a necessidade de tal norma, pois se faz claramente necessária a efetividade de políticas públicas voltadas para essa parcela tão esquecida da sociedade. Aliás, há até autores afamados e juízes notáveis que não hesitam em afirmar, com alguma solenidade e impostação, que, se não houver uma lei indicando a solução da questão que examinam, será possível ou mesmo será inevitável denegar o pedido feito pela pessoa. Para esses juristas, que são muitos, e mesmo a maioria, os direitos das pessoas emanam ou nascem das leis postas pelos poderes do Estado e delas (das leis escritas) vem a autoridade das decisões. E, mais que isso, os direitos são os que as leis estatais escritas enunciam, nada mais nada menos.

É por essa razão que essa corrente de juristas criou e desenvolveu a ideia de que as leis valem porque existem, e a sua validade não depende do seu conteúdo. Qualquer conteúdo legal poderá ser afirmado como Direito, como foi enunciado pelo jurista austríaco Hans Kelsen (1881-1973), em livro que granjeou enorme notoriedade e ainda hoje é citado como paradigma positivista dotado da força de encerrar uma discussão.

Nesse dia, é importante rememorar que a Síndrome de Down não é uma doença, mas sim uma alteração genética nos cromossomos humanos que afeta, em diversos graus, o sistema de cognição, podendo ainda manifestar algumas condições físicas específicas em cada pessoa. De acordo com o Censo do IBGE, 45 milhões de brasileiros apresentam algum tipo de deficiência, sendo cerca de 300 mil com Síndrome de Down. Ou seja, uma considerável parte da nossa população é composta por pessoas com essa condição genética. Em escala global, essa circunstância se repete, o que denota a importância de um dia dedicado a fortalecer os direitos dessas pessoas.

Historicamente, tal como as pessoas com deficiência, aqueles que nascem com Síndrome de Down sempre sofreram fortes estigmas sociais, sendo muitas vezes considerados como personae non grata nos mais diversos meios da sociedade. Juridicamente, na tentativa de se sanar este problema, são enormemente necessárias as discussões promovidas por diplomas legais, com especial destaque para a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas, para se alcançar essa desejável evolução, se requer necessariamente uma postura de indignação e insatisfação para com o pensamento dogmático, cheio de tradicionalismos. Aliás, refiro no meu livro Hermenêutica Judicial (2021, p. 60) o seguinte:

O sociólogo alemão Nikas Luhmann (1927-1998) observa que a imutabilidade do pensamento jurídico não se adequa a natureza do direito enquanto ciência humanística e social, bem como as necessárias mudanças que devem acompanhar as evoluções de uma sociedade: a constância das possibilidades de modificação mantém a consistência de que o direito a cada momento vigente é resultante de uma seleção, de que ele vige por força dessa seleção a qualquer momento modificável (Sociologia do Direito II. Tradução Gustavo Bayer. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro. 1985. p. 9)

A referida declaração trouxe à baila a necessidade de proteger os direitos de todos os seres humanos, sem distinção alguma, garantindo-se-lhes direitos essenciais à vida digna. Especificamente, tais previsões foram repetidas por outros diplomas dessa natureza, havendo que se destacar o decreto 6.949/2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas Com Deficiência. Como escrevi no meu citado livro:

De acordo com o filósofo e jurista Jeremy Benthan (1748-1832), a teoria moral seria uma obrigação de consciência onde no seu mais íntimo pensar, ao fugir dela, se estaria fugindo de um dever/agir ético, que ele chega a denominar de um alto engano. Ao propor um sistema de filosofia moral Jeremy Benthan entende que deve existir uma necessária preocupação radical em alcançar uma solução prática a ser exercida pela sociedade (p. 60)

Uma vez sendo consideradas pessoas com deficiência, as pessoas com Síndrome de Down são protegidas pelos mesmos diplomas legais. Sendo assim, as garantias de adaptação razoável, desenho universal e outras medidas que se destinam à inclusão também devem ser pensadas para tutelar os interesses dessa importante fração da sociedade.

Segundo o filósofo Ronald Dworkin, o direito, em sua aplicação, deve levar em consideração os princípios fundamentais que justificam a sua existência. Nesta senda, quando se trata de pessoas com Síndrome de Down, tanto as atuações do Estado quanto da sociedade civil devem,  sempre: 1) respeitar a dignidade da pessoa humana; 2) não discriminar; 3) garantir a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; 4) respeitar a diferença e aceitar as pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade.

Considerando a importância de tutela dos direitos das pessoas com Síndrome de Down, é importante pontuar que os princípios mencionados são meramente exemplificativos. A Constituição Federal e leis infraconstitucionais, tais como o Estatuto da Pessoa Com Deficiência (ou lei brasileira de inclusão), por exemplo, preveem uma alta gama de preceitos importantes para aplicar os direitos das pessoas com deficiência. Todos esses elementos jurídicos determinam a forma como o Estado e a sociedade civil devem atuar. Segundo o professor Paulo Ronder, o direito tem como função tutelar a cooperação social. Cooperar é se solidarizar com o seu semelhante, e construir uma sociedade solidária é um dos propósitos da existência da Constituição Federal, que sobretudo busca garantir a dignidade da pessoa humana.

Mas, infelizmente, tamanha riqueza jurídica, apesar de importante, não muda a realidade de que um longo caminho precisa ser trilhado. Direito sem ação é norma vazia. Muitas vezes, a norma legal garante prerrogativas que não se manifestam in concreto. A legalidade ou legalismo puro simplesmente esteriliza o pensamento jurídico, tornando-o por diversas vezes ineficaz. No seu livro A Crucificação e a Democracia, o professor Gustavo Zagrebelsky (2011, p. 44) demonstra um importante conflito entre o legalismo e a justiça, ao se referir ao julgamento de Cristo:

Todo o acontecimento é muito escandaloso e simbólico, ainda mais admitindo (sempre com Quinzio) que nenhum dos autores daquele drama foi movido por má-fé, que cada um fazia o que seu dever pedia. Os homens do Sinédrio pensavam em ‘prestar culto a Deus’ (João, 16,2), Pilatos pensava em prestar culto ao Imperador de Roma e a multidão era movida por amor à pátria. Se concedermos que os que agiram na cena do processo de Jesus o fizeram ‘sem intenção’ e inconscientemente e se lhes imputarmos uma ‘culpa não culpada’, então os eventos se esvaziarão de todo significado subjetivo particular para assumir o valor de paradigma.

Por exemplo, não obstante o fato de que pessoas com síndrome de Down possuem vagas especiais em concursos públicos, o que se observa, conforme reportagem da Folha de S.Paulo, é que as pessoas com Síndrome de Down não conseguem acesso direto ao trabalho no serviço público. Tal contraste entre a norma legal e o mundo fático pode ser manifestado de inúmeras maneiras. Por exemplo, apesar de a lei brasileira de inclusão (Lei 13.146/2015) garantir o respeito ao desenho universal, muitos produtos e serviços não obedecem ao referido preceito, causando, por sua vez, exclusões às pessoas com Síndrome de Down e outras deficiências. Sendo assim, observa-se um cenário que ainda tem muito o que mudar.

Então, nesse importante dia, em que se reforça a luta pelos direitos das pessoas com Síndrome de Down, é valioso pontuar que, embora as vastas previsões normativas existentes, a real mudança para um cenário inclusivo e com respeito à dignidade das pessoas humanas só é alcançada mediante ação e conscientização. Para tanto, políticas públicas devem ser adotadas para trazer ao debate social a importância do respeito aos direitos das pessoas com Síndrome de Down, através de fóruns, eventos temáticos e até mesmo oficinas, onde as pessoas da sociedade civil, bem como servidores públicos, possam se capacitar técnica e humanamente para entender e concretizar os direitos previstos na nossa legislação.

 

Mário Goulart Maia é advogado e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça.