No Tribunal de Justiça de São Paulo: desembargadores questionam decisões do CNJ
O ano de 2019 tem sido marcado no Tribunal de Justiça de São Paulo por uma série de questões envolvendo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Isso levou a direção paulista a questionar o compromisso do CNJ com o preceito da autonomia administrativa dos tribunais, garantida pela Constituição Federal. No lançamento do Anuário da Justiça São Paulo 2019, no dia 11 de setembro, muitos desembargadores reproduziram esse questionamento e demonstraram preocupação com posições recentes do conselho em relação ao TJ-SP.
Recentemente, em agosto, o presidente da corte, desembargador Manoel Pereira Calças, retirou da pauta administrativa do Órgão Especial um processo sobre um novo programa de armazenamento de processos, aguardando uma anunciada resolução do CNJ sobre o caso. Enquanto não há posicionamento, o tribunal segue gastando parte do seu orçamento.
O desembargador Artur Marques, vice-presidente do TJ-SP e idealizador do novo processo de armazenamento, apontou para o apoio da Justiça paulista ao CNJ, mas lembrou que existem limites à interferência do órgão, apontando que “o STF, em precedentes em que se questionou a competência do CNJ, já definiu parâmetros que dizem respeito à não intervenção em matéria administrativa do ponto de vista da autonomia do tribunal”. “O CNJ tem ampla competência, muito respeitada em São Paulo, sobretudo porque São Paulo cumpre todas as resoluções e, quando tem divergência, sempre se predispôs a analisar a questão.”
Naquele mesmo mês, uma liminar do Conselho, em decisão do conselheiro Aloysio Corrêa da Veiga, relator de pedido de providências, suspendeu o pagamento de auxílio financeiro a juízes do Tribunal para a compra de obras jurídicas, software e hardware. O Provimento 64/12017, da Corregedoria Nacional de Justiça, submete ao prévio controle do CNJ o pagamento de qualquer verba remuneratória ou indenizatória não prevista na lei. O cancelamento do benefício causou mal-estar entre os desembargadores paulistas. O desembargador Luiz Edmundo Marrey Uint chamou a decisão de “lamentável”, e observou que o auxílio mitiga o fato que o TJ-SP não tem atualizado o acervo de obras jurídicas de sua biblioteca.
Questionou, também, se isso não vai impactar a capacitação dos juízes, que não mais terão o mesmo acesso à literatura especializada mais recente. “Ou seja: ‘Julgue sem se atualizar.’ É essa a ideia de Justiça? Daqui a pouco vai ser ‘Julgue sem ler’”. Essa foi a mesma crítica feita pelo presidente da 26ª Câmara de Direito Privado, desembargador Reinaldo Felipe Ferreira, que disse ser “absurdo e retrocesso o CNJ interferir nessa parte que é da cultura e da formação do juiz”.
A sensação de indisposição do CNJ com TJ-SP cresceu a partir de fevereiro deste ano, quando a atual administração do TJ-SP definiu que iria trocar a plataforma de processo eletrônico e a infraestrutura de tecnologia da corte. Para isso, firmou contrato com a Microsoft, no valor de R$ 1,32 bilhão, observando critérios de inovação estabelecidos pelo Núcleo Jurídico do Observatório de Inovação da Universidade de São Paulo, para utilização de serviços de nuvem e novos softwares para colaboração, comunicação e produtividade. No dia seguinte ao anúncio, o CNJ suspendeu o acordo. Segundo a liminar do conselheiro Márcio Schiefler Fontes, houve dispensa de licitação e possível risco à segurança nacional.
Tanto a USP quanto o Órgão Especial do TJ-SP saíram em defesa do acordo. No entanto, ao reconsiderar o caso em março, após diversas explicações produzidas pela direção do tribunal paulista, justificando a escolha do ponto de vista técnico e financeiro, Schiefer resumiu a objeção à falta de notificação do CNJ da realização do negócio, e manteve a suspensão. Quando retomou o caso em abril, o Conselho autorizou o tribunal a analisar outras opções de sistema informatizado, mas continuou bloqueando o contrato.
Em junho, por dez votos a um, os conselheiros sustentaram a posição contra o contrato firmado entre Microsoft e TJ-SP e foram além, determinando que o tribunal abandone o serviço atualmente em uso e adote o PJe. Esta decisão foi imediatamente seguida por novo ato de apoio do Órgão Especial do tribunal paulista ao contrato. Para Marrey Uint, a determinação do CNJ é equivocada. Segundo ele, o calcanhar de aquiles do tribunal é justamente a informática, e, no momento, o TJ-SP está refém do problema.
O desembargador Percival Nogueira encara a intervenção com naturalidade, mas observa que “os conselheiros, imbuídos talvez de um espírito de resolver tudo, acabam ultrapassando um pouco do limite de atuação deles e invadindo a seara administrativa que seria do tribunal”. O desembargador Mário Devienne Ferraz considera essencial que qualquer decisão do CNJ que impacte as administrações seja tomada de comum acordo com os tribunais, mas compreende que “é natural que uma decisão de vanguarda, como o contrato com a Microsoft, cause um certo impacto”.
Jacob Valente, desembargador da Seção de Direito Privado, ressaltou que “evidentemente, toda vez que um tribunal, um juiz é contrariado com uma pretensão, gera um questionamento”, e lembrou que o CNJ, desde sua criação, sofreu muitas críticas. Em 2009, logo após a criação das Metas do CNJ, o ministro Marco Aurélio protestou contra a divulgação da produtividade do STF, a mais alta corte do país, e contra a exigência de julgar até o final daquele ano todos os processos distribuídos até 2005.
Naquela época, o ministro disse que o STF “jamais se submeterá a diabruras deste ou daquele órgão”, e chamou o CNJ de “super órgão”, acima da própria Constituição Federal. Essa visão se modificou com o tempo, e, hoje, desembargadores como Percival Nogueira enxergam o órgão como uma “super corregedoria”.
Mas nem a suspensão do auxílio à compra de livros, nem o bloqueio aos contratos de serviços de informática são os primeiros ou maiores atritos. Em 2011, o CNJ se envolveu em controvérsia sobre as eleições à presidência do TJ-SP. O desembargador Ivan Sartori foi eleito por maioria de votos, apesar de ser superado em antiguidade por outro candidato, o desembargador Roberto Bedram. Houve reclamação de desrespeito à Lei Orgânica da Magistratura (Loman), mas o CNJ entendeu que, na ausência de candidatura de membros mais antigos, os mais novos tinham caminho aberto. O Órgão Especial do Tribunal acabou decidindo, em acordo com a argumentação de Paulo Dimas Mascaretti, que deveria prevalecer a previsão constitucional de autonomia administrativa, e que cabe a cada tribunal decidir sobre sua própria direção.
Apesar do histórico e do atual momento, não existe entre os magistrados um consenso negativo em relação ao CNJ. O desembargador José Maria Câmara Júnior lembra que ele mesmo fez parte de um esforço no período de criação do Conselho, quando o TJ-SP deslocou servidores de alto nível para dar suporte à implantação da sua estrutura. Ele destaca a parceria entre o órgão e o Tribunal, reforçando que “o CNJ veio para ajudar”.
Otávio Augusto de Almeida Toledo, desembargador da Seção de Direito Criminal, também destaca a legitimidade da atividade do CNJ, mas aponta que, “uma vez estando absolutamente dentro dos ditames legais, não há o CNJ que se insurgir contra qualquer política, qualquer ato praticado por uma gestão como a do Tribunal de São Paulo”.
Devienne Ferraz reconhece a legitimidade da missão do Conselho de supervisão de todo o funcionamento da Justiça, e afirma que o Tribunal não deve fechar as portas para o CNJ, reforçando que o órgão é uma realidade. O desembargador Carlos Eduardo Donegá Morandini concorda quanto à permanência do CNJ e a necessidade de os tribunais se submeterem às suas deliberações. No entanto, observa também que, aceitando que o CNJ traça diretrizes e os tribunais devem segui-las, “há que se avaliar se isso interfere concretamente no pacto federativo” e na autonomia dos tribunais.
Fonte: Carlos de Azevedo Senna – Conjur – 13/9/19