Protesto de poucos: duas pessoas se manifestando a favor da cassação de Temer, em 6 de junho
Os protestos contra a corrupção do PT e a favor do impeachment de Dilma Rousseff bateram sucessivos recordes de público entre 2015 e 2016 e marcaram a agenda de um Brasil mergulhado em uma crise política e econômica. Era o Brasil reencontrando os protestos de ruas depois do marco das jornadas de 2013, que também cobraram da classe política mais atenção aos temas caros à sociedade. A crise política dos últimos anos, porém, evoluiu para drama e atingiu patamares de surrealismo em 2017, atingindo seu ponto alto nesta segunda-feira (26/6) com a denúncia da Procuradoria Geral da República contra o presidente Michel Temer por corrupção passiva. Entre a saída de Dilma e a acusação de Rodrigo Janot contra Temer, estão as delações dos executivos da Odebrecht e da JBS escancarando a corrupção de toda a elite política do país. Ainda assim, ao contrário dos últimos anos, não se viu uma explosão de indignação nas ruas, uma catarse como foi há dois anos.
Assim, depois de quatro anos demonstrando sua indignação em atos massivos, o Brasil parece viver uma ressaca. O que se escuta em jantares de família, em bares, em supermercados, em comércios ou cabeleireiros é quase sempre o mesmo: “adianta alguma coisa”? O gigante, que parecia acordado, voltou a adormecer.
Esther Solano, professora da Unifesp que vem pesquisando as últimas ondas de manifestações, avalia que existe uma frustração que atinge os dois lados da polarização política – isto é, tanto os que gritaram pelo impeachment como os que reagiram com o “não vai ter golpe”. Já Angela Alonso, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e professora da USP, argumenta que atos massivos “raramente acontecem na vida de uma sociedade”, e que é natural, depois de “grandes ciclos” de protestos, uma ressaca subsequente. “Muitos do que ficaram nas ruas são os ativistas profissionais”, explica. Houve, argumenta ela, uma leitura equivocada de que os atos convocados por setores que ela identifica como “patriotas” fossem apenas contra a corrupção. “Muita gente foi às ruas contra o PT, e o PT já não é mais governo. Esse grande contingente que foi mobilizado já não tem a mesma motivação para se manifestar”. Com isso, o Governo Temer vai se parecendo cada vez mais ao de José Sarney: com uma rejeição recorde, mas com a perspectiva de eleições diretas em pouco mais de um ano, ele vai ficando e sendo tolerado. Existe o temor de uma piora em um quadro que já é péssimo, com efeitos diretos na economia, ou seja, no bolso das pessoas.
Esse esfriamento das ruas ficou claro sobretudo com os acontecimentos dos últimos meses. Em meados de maio, quando foi noticiada a existência de conversas entre Temer e Joesley Batista, grupos de direita como o Vem Pra Rua e o MBL chegaram a agendar um ato em São Paulo para o fim de semana, mas logo desmarcaram por causa, segundo argumentam, da Virada Cultural que acontecia na ocasião. Tratou-se, de toda forma, de uma reação diferente de quando o ex-presidente Lula foi escolhido ministro e os áudios de sua conversa com Dilma Rousseff foram divulgados. A avenida Paulista foi imediatamente ocupada por manifestantes de verde de amarelo naquela ocasião. Já nos dias do julgamento da chapa Dilma-Temer pelo TSE, que ocorreu na primeira semana de junho deste ano, foram inexpressivas as manifestações de grupos de direita ou de esquerda (que viu alguns de seus setores se calarem, uma vez que a cassação de Temer envolvia a criminalização da campanha petista de 2014). A pressão nas ruas também foi nula durante a avaliação, por parte do plenário do STF, sobre a permanência do ministro Edson Fachin na relatoria do caso JBS, o que colocava em jogo o ritmo da Lava Jato.
Rogério Chequer, principal liderança do Vem Pra Rua, que organizou protestos contra o Governo Dilma, acredita que a sensação de que as ruas se calaram se dá porque as manifestações entre 2015 e 2016 “foram as maiores da história do Brasil”. Agora, ele explica, “existe uma decepção pelo fato de que uma melhoria econômica indiscutível não foi seguida de uma melhoria ética, o que desanima”. Ele aposta, entretanto, que as pessoas e grupos chegarão mais unidos em 2018 devido ao desejo comum pela renovação política. Seu movimento tem apostado por ações em meios digitais e nas redes sociais, pressionando individualmente cada parlamentar e grupos de interesses. “É uma estratégia feita com mais agilidade e é mais efetiva”, explica, citando o “mapa do fim do foro privilegiado”, que, para ele, agilizou a aprovação da medida no plenário do Senado.
Ele assegura ainda que defende a saída do presidente Temer e uma transição rápida para não interferir na economia. “Estávamos esperando justamente o julgamento do TSE, que era uma chance de fazer uma transição de forma institucional e rápida. Agora estamos começando a nos organizar para fazer algo mais incisivo nas ruas. Por causa das férias de julho, tudo indica que vai ser em agosto, mas ainda não está marcado”, garante. Citando o artigo 16 da Constituição, que prevê que qualquer alteração do processo eleitoral só poderá entrar em vigor após um ano, ele rejeita a ideia de eleições diretas ainda neste ano. “Zelamos pela Constituição, principalmente nessa fase de transição. Eu não gosto das eleições indiretas, mas uma mudança agora abre um precedente perigosíssimo”.
Líder do Nas Ruas, Carla Zambelli admite que poucas pessoas estiveram nos quatro atos convocados em maio pelo grupo – dois em frente ao STF, um na PGR e outro em frente à casa de José Dirceu. O coletivo organiza agora um protesto contra o STF e sua lentidão para julgar os processos da Lava Jato. “O movimento não saiu das ruas, mas o povo não está comparecendo”, diz Zambelli, que acredita que a população começa a enxergar uma “luz no fim do túnel” na economia. “No ano passado existia um só mote, que era o impeachment. Simples e fácil de entender. Hoje são vários: ‘Joesley na cadeia’, ‘Fora Temer’, ‘Dilma sem direitos políticos’, ‘fora lista fechada’, ‘fim do foro privilegiado’… São tantas coisas que as pessoas não entendem ou não se identificam”, argumenta. Ela também cita o “cansaço”, a falta de “cultura política” no país e o medo de que a queda de Temer gere “instabilidade” para empresários e trabalhadores. “Para aderir ao ‘Fora Temer’ as pessoas têm que estar num nível de desespero que não estão agora. Com a Dilma, chegamos ao fundo do poço. Existia a corrupção e existia a incompetência. No caso do Temer, existe a corrupção, mas ele é mais competente”.
Ao mesmo tempo, atos convocados por movimentos e sindicatos de esquerda contra a administração peemedebista reuniram milhares de pessoas, e uma greve geral conseguiu paralisar o país por um dia em abril deste ano. Até conseguiram atrasar algumas votações no Congresso, mas foram protestos com força limitada e sem respaldo popular suficiente. Muitos desses grupos se ausentaram das ruas durante os governos petistas, perderam espaço para movimentos autonomistas a partir de 2013 e defenderam o mandato de Dilma Rousseff até o ano passado. Hoje recobram o controle das ruas que haviam perdido, mas suas manifestações são interpretadas por muitos como uma manobra pelo “volta Lula”. “Esses grupos tradicionais receberam grandes choques. Foram desafiados pela direita e também dentro da esquerda, por grupos autonomistas que não reconhecem seus métodos. Houve uma crise, e agora eles tentam se recuperar. Hoje as manifestações da esquerda têm os tamanhos que sempre tiveram. Mas o estilo é muito parecido ao dos anos 80. São sindicatos, carros de som, os slogans… Uma linguagem antiga para uma geração nova”, explica Alonso, do Cebrap.
Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e um dos principais organizadores dos protestos contra Temer, diz não ser correto “tratar as manifestações de 2017 como descenso”. Ele cita a greve geral em abril e grandes mobilizações em São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro desde março. “Há um caldo de rua forte, majoritário ao Fora Temer e contra as reformas. Já não existe a divisão de antes. Ninguém nas ruas está gritando para o Temer ficar”, opina. Ele argumenta que houve uma ascensão das mobilizações a favor dos direitos e, de forma mais tímida, pela realização de eleições diretas. “Mas concordo que há também uma descrença cada vez maior pelas soluções institucionais. Tem a ver com abismo criado entre Congresso e Governo, de um lado, e o povo do outro”, diz Boulos, para quem o primeiro legisla de costas para a população e o segundo age como se não tivesse nada a perder. “Isso gera um sentimento de que não adianta fazer manifestações de maneira institucionalizada. As pessoas esperam cada vez menos que suas demandas tenham eco. Essa frustração pode gerar desmobilização em alguns setores, mas também radicalização”, explica. Há outra greve marcada para o próximo dia 30, mas ainda não há clareza de que trará a movimentação esperada.
A rejeição ao Governo Temer (apenas 7% de popularidade, segundo o último Datafolha), a oposição à reforma da previdência (71% de rejeição, segundo o mesmo o instituto) e o respaldo a eleições diretas (83% de apoio, diz o Datafolha) são pontos comuns entre os dois lados da atual polarização política. Entretanto, ainda não foram capazes de se unir nas ruas. Esther Solano, especialista da Unifesp, explica que há duas bolhas claras no Facebook que não se comunicam. “Antes havia certo emaranhado de páginas de movimentos, figuras e partidos. A partir de 2014 formam-se basicamente duas bolhas, algo visualmente muito escancarado. São duas bolhas incomunicáveis. Aqueles que estavam em relativo contato nas redes e nas ruas em 2013 não têm mais contato. Ninguém se fala, não há pontes”, disse ela durante um evento sobre as jornadas de junho de 2013, realizado no dia 13 na Tapera Taperá.
Alonso, do Cebrap, explica que “uma coisa é exprimir opiniões” em pesquisas e outra “é deixar a rotina o trabalho e fazer uma ação contrária”. Ela considera muito difícil, no atual contexto, que haja um novo Junho de 2013 unindo diversas agendas, a não ser que “esse processo se revele um poço sem fundo, gerando um esgotamento”, diz. “Existia uma grande diversidade de pautas em 2013. Parte focalizou no impeachment e outra parte focalizou no ‘não vai ter golpe’. Mas depois disso houve uma pulverização das agendas de novo. Acho difícil todos unidos gritando pelo ‘Fora Temer'”.