Ivan Serpa – Fase Negra (1964) / detalhe

 

Em seu icônico discurso de 1941, o presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt, definiu as quatro liberdades essenciais: de expressão, de religião e as liberdades em relação ao medo e à fome. Para além de eleições periódicas, um sistema social inclusivo deve oferecer esse espaço individual de autodeterminação. A liberdade de rogar aos céus por um resgate foi o que restou aos 207 trabalhadores submetidos a condições de trabalho análogas à escravidão em Bento Gonçalves (RS). Contratados por uma empresa terceirizada para atuar na colheita de três grandes vinícolas, eles suportaram maus-tratos físicos e psicológicos, cárcere privado, habitações insalubres e atrasos no pagamento prometido.

Segundo a entidade representativa das vinícolas de Bento Gonçalves, a culpa seria do Bolsa Família, ao impedir o povo de correr atrás do seu ganha-pão. Exemplar da seiva escravocrata que ainda recheia a brasilidade cordial, um vereador de Caxias do Sul (RS) justificou a barbárie alegando a indolência dos “baianos”, que querem ficar “tocando tambor na praia”. Um verdadeiro coach de senzala!

Esse preconceito em relação ao Bolsa Família é antigo, e parece ter natureza cíclica. Foi saindo de moda ao longo dos governos do PT (2003-2016) e voltou com toda a força quando Jair Bolsonaro destampou a caixa de ressentimentos reacionários, em que o racismo, a misoginia e a xenofobia protagonizam um violento show de horrores. Relançado no dia 2 de março pelo governo Lula em formato turbinado, o novo Bolsa Família cobrirá cerca de 21 milhões de famílias com pagamento médio de R$ 715 por família. Como a ignorância destemida é uma prisão cognitiva, vale a pena sintetizar a experiência e os resultados do programa até aqui [Souza et al. (2019): “Os Efeitos do Programa Bolsa Família sobre a Pobreza e a Desigualdade: um balanço dos primeiros quinze anos”.]

Os programas de transferência de renda aliviam a pobreza extrema, eliminam a insegurança alimentar das famílias, além de melhorarem a escolaridade e os indicadores de saúde das crianças. Creches em período integral liberam as mães solo, que compreendem a maioria das chefias de lar, elevando a inserção das mulheres no mercado de trabalho, bem como as libertam do medo da violência doméstica ao fortalecer sua independência material. Integrado a uma rede programas sociais, o BF estimula a agricultura familiar ao torná-la fornecedora da alimentação escolar. Reduz-se, com isso, a obesidade com subnutrição resultante do consumo de alimentos ultraprocessados, normalmente mais baratos.

Ao aliviar as restrições orçamentárias das famílias, o BF estimula a economia, com significativos efeitos multiplicadores sobre a renda. A focalização das famílias traz redução das desigualdades raciais, sociais e de gênero e restaura o tecido social. A reconstituição do Cadastro Único (CadÚnico) permite calibrar as transferências de acordo com o número de integrantes da família, corrigindo o estrago feito pelo governo Bolsonaro com seu Auxílio Brasil. Espera-se cortar mais de 2,5 milhões de benefícios irregulares, aí inclusos militares e golpistas do 8 de Janeiro, abrindo espaço para a inclusão de 700 mil famílias no programa.

Apoiada por uma política de emprego e de valorização do salário mínimo, a proteção social dá suporte ao desenvolvimento produtivo e tecnológico do país. Ao estimular a educação de crianças e garantir dignidade às pessoas, ela incentiva a entrada no mercado de trabalho em melhores condições. Ademais, dá às pessoas o poder de dizer “não” a condições sub-humanas de trabalho, como no recente caso das vinícolas gaúchas.

Diferentemente da digitalização da esmola via Pix, o BF constitui verdadeira liberdade econômica para dezenas de milhões de famílias que vivem flertando com o abismo da penúria material.

Sem a proteção social como política de Estado, as quatro liberdades de Roosevelt continuarão sendo um privilégio de poucos.

 

André Roncáglia é professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP