Atualmente, encontra-se em discussão no Congresso a possibilidade de substituição da Lei de Segurança Nacional. Diversos foram os projetos debatidos de forma concomitante, inclusive com a retomada de propostas mais antigas, que haviam permanecido por anos paradas no Legislativo. Subitamente, a substituição da Lei nº 7.170/1983 passou a ser uma indiscutível prioridade, ganhando inclusive contornos de regime de urgência, ainda que trate de temas extremamente sensíveis para o Estado brasileiro: estamos em ano prévio à eleição, e também atravessamos, seguramente, um dos períodos de maior instabilidade e polarização política da Nova República, potencializado pelo que parece ser a maior crise mundial em matéria de saúde pública. Nos últimos dias, o PL nº 6.764/2002 veio a se tornar o principal texto em debate, norteando uma série de discussões dos mais notáveis juristas do país.

A análise desse tema, a nosso ver, passa, desde o início, por uma encruzilhada: devemos aceitar a mudança como obra feita e inescapável, e assim passamos a discutir dogmaticamente em cima dos inúmeros tipos previstos no novo PL, ou devemos questionar a política legislativa adotada para tal mudança, que parece lenir a racionalidade necessária para a construção de uma lei cujo objetivo é ditar os limites da manifestação política?

No que tange à perspectiva dogmática, pode-se, desde já, apontar que o projeto tem problemas. Talvez valha pensar com maior vagar sobre a alocação de todos esses crimes dentro do Código Penal, como o texto prevê. Entendemos a força do argumento favorável a essa técnica legislativa por colocar os novos tipos penais sob a sistemática de bens jurídicos da codificação, aliando-os ao uso das regras comuns da Parte Geral do CP/1940 [1]. Por outro lado, como se nota da sua redação, cria-se a necessidade de tipos penais com articulação minuciosa (em alguns momentos, chegando ao excesso) pelo medo de interpretações alargadas e descontextualizadas. Ou, o contrário, cria-se esse mesmo risco no caso da inobservância dessa cautela, quando alguns tipos fazem referência apenas a “motivação política”. A lei especial possibilita um maior desenho do cenário de aplicação das disposições penais, incluindo conceitos relevantes para a compreensão de cada norma. Nesse sentido, com todas as deficiências — algumas delas questionadas pelas ADPFs perante o STF —, a redação dos artigos 1º e 2º da Lei nº 7.170/1983 traz balizas mais uniformes que a variedade de fins especiais de agir, muitas vezes complexos, previstas no projeto. Sabe-se, ainda, que o substitutivo poderá prever até mesmo a inclusão de tipos penais que não necessariamente tutelam a salvaguarda do Estado democrático de Direito, abrangendo questões de outra monta, como as eleitorais.

Essa não é uma questão nova no debate da matéria, muito menos no que tange à política legislativa penal. Tome-se o exemplo recente da nova Lei de Licitações, que acrescentou o Capítulo II-B ao Título XI da Parte Especial do Código Penal, com os crimes sobre a questão. Mas, ao menos desde a Constituição de 1988, se não antes, a opção de técnica tem sido a elaboração de leis especiais, não apenas quando da construção de microssistemas (como o Código de Defesa do Consumidor), mas também quando são leis de conteúdo exclusivamente penal (vejamos, por tantas, a lei de crimes contra a ordem tributária). Afinal, não parece claro o que move o nosso legislador a inserir, manter ou retomar (esta última, a hipótese em discussão) determinados crimes na codificação penal ou na legislação extravagante.

Contudo, nossa preocupação vai além desse ponto. Sabemos que, em matéria de ciência da legislação, a tentativa de emprestar-se um procedimento que não seja totalmente dependente de flutuações políticas em matéria de produção legislativa é árdua, sobremaneira na área penal. Ainda que se entenda que necessariamente os valores dos grupos políticos presentes no Parlamento auxiliem a guiar a política criminal de determinada legislatura, há o limite da dogmática penal para aceitar inclusões provenientes de alardes midiáticos que podem ser conjugados para esperados resultados eleitorais. Contudo, é obrigação do jurista buscar essa regulação e o seu posterior controle, pela teoria da legislação, não aceitando a norma como algo pronto a ser questionado apenas de forma posterior, no Judiciário, após a ocorrência de diversos e irreparáveis danos.

Por isso, perguntamos: quais os interesses envolvidos por detrás dessa celeridade na mudança da Lei de Segurança Nacional? O intrincado xadrez entre as ações do Executivo, Legislativo e Judiciário sobre a questão traz mais incertezas que respostas. Outras perguntas: foi questionada, em um primeiro momento, a necessidade de que essa área seja tratada pela via penal, inclusive com novos contornos ao bem jurídico previamente tutelado? E com essa quantidade de criminalizações? Ainda que seja despiciendo dizer que o funcionamento das instituições constitucionais seja digno de tutela, o seu modo, exatamente pela sua importância, necessita de discussão com maior vagar.

O Decreto nº 9.191/2017, um dos únicos a tratar mais expressamente dessa questão, propõe alguns questionamentos dessa índole ao se pensar na confecção de uma norma penal. Não seria o caso de proporcionar um maior debate junto à sociedade civil sobre tais temas? Ou deve-se seguir o que já vem sendo apontado pela pesquisa feita pela FGV para a série Pensando o Direito [2] no que tange às normas penais, que é a reforma constante sempre no sentido de aumentar penas e criar novos tipos? Quais os fatores que apontam para a necessidade do regime de urgência, para além da temática tratada?

A reforma da Lei de Segurança Nacional reacende, antes de mais nada, o debate acerca da necessidade de se construir uma política legislativa séria, com instrumentos de logística formal e material, e que sirva como braço de uma política criminal coerente, voltada a alcançar objetivos pré-definidos e comprováveis. Sem isso, a reforma corre o risco de ser uma contradição em seus próprios termos, pois não haverá pena de prisão capaz de proteger os constantes ataques à democracia que ocorrem por meio de um procedimento legislativo irracional.

 

Diego Nunes e Chiavelli Falavigno são professores adjuntos da UFSC.

 


[1] https://www.conjur.com.br/2021-abr-13/direito-digital-lei-seguranca-nacional-sono-leve-forca-oculta-ou-requiem-rene-dotti.
[2] Disponível em: https://www.justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao-legislativa/pensando-o-direito/publicacoes/anexos/vol-32_serie_pensando_o_direito_convocacao_1_2009_analise_das_justificativas_para_a_producao_de_normas_penais.pdf. Acesso em 17/4/2021.