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Como é de conhecimento geral, o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 4.253/2020, que estabelece normas gerais de licitação e contratação, em substituição à Lei nº 8.666/1993, foi sancionado no dia 1º de abril. O presente trabalho tem como objetivo destacar alguns dos principais institutos e pontos de inovação do novo regime geral de licitações que se anuncia e discutir o papel da doutrina e do Tribunal de Contas da União (TCU) na interpretação da novel legislação.
Influências da jurisprudência do TCU na nova lei
O papel do TCU na pacificação de entendimentos relacionados ao regime licitatório até então vigente teve como pressuposto a sua competência de efetuar o controle das despesas decorrentes dos contratos e demais instrumentos regidos pela Lei nº 8.666/1993, conforme o seu artigo 113. Diante dessa atribuição do tribunal, de dizer o direito nos casos concretos submetidos à sua apreciação, seria natural e esperado que os agentes administrativos, especialmente os vinculados à administração pública federal, buscassem seguir as decisões do TCU a respeito da matéria, inclusive para evitar sanções e medidas cautelares nas licitações e contratos.
Essa relação de sobreposição institucional, de caráter material, chegou, inclusive, a ser pacificada pelo TCU, que editou a Súmula 222, vazada nos seguintes termos: “As decisões do Tribunal de Contas da União, relativas à aplicação de normas gerais de licitação, sobre as quais cabe privativamente à União legislar, devem ser acatadas pelos administradores dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”. Cabe destacar que o entendimento acima sumulado somente se aplica aos agentes públicos dos entes subnacionais se eles estiverem administrando recursos federais. Muito embora essa ressalva não esteja expressa no texto da referida súmula, ela se impõe sob o ponto lógico-normativo, uma vez que é somente nesse contexto que os administradores dos estados, do Distrito Federal e dos municípios estão sujeitos à jurisdição do TCU.
A atuação do TCU também se mostra importante na densificação dos espaços discricionários da lei. Nesse contexto, o controle do tribunal incide com menor grau de intensidade, tendo um viés pedagógico e prospectivo, servindo como fonte de inspiração às escolhas do administrador nas zonas permitidas pela lei. Por óbvio, a atividade de subsunção dos fatos ao direito posto é algo em constante construção, haja vista a impossibilidade de se precisar o sentido da lei, em todas as situações do mundo real, que muitas vezes não são antecipadas pelo legislador. É nesse contexto que a prática administrativa, a jurisprudência e a doutrina se mostram como fontes importantes de revelação do direito, que se inicia na lei, por dedução, mas se materializa sempre a partir de um caso concreto, numa espiral indutiva de crescente construção de sentidos.
Os diversos ciclos interpretativos acabam inspirando novas leis, que, por sua vez, seguirão o mesmo processo de revelação de sentido, a partir da aplicação prática, da jurisprudência e da doutrina, até a próxima alteração normativa. A nova lei de licitações incorporou vários institutos e procedimentos que foram manejados, inicialmente, na jurisprudência do TCU. A título de exemplo, cabe listar os seguintes:
a) Definições de superfaturamento e sobrepreço (roteiro de auditoria de obras públicas).
b) Imposição de práticas de planejamento, gestão de riscos e melhor governança nas contratações públicas (Acórdão nº 2.622/201-Plenário).
c) Especificação de fontes de pesquisa de preço para estimativa do valor da licitação para aquisição de bens e contratação de serviços em geral (Acórdão nº 2.170/2007-Plenário).
d) Uso do Banco de Preços em Saúde (BPS) (Acórdão nº 247/2017-Plenário).
e) Possibilidade de indicação de marca, desde que circunstancialmente motivada (Acórdão nº 1.521/2003-Plenário).
f) Vistoria prévia ao local da obra somente quando for imprescindível ao cumprimento adequado das obrigações contratuais, podendo ser substituída por declaração (Acórdãos nºs 234/2015, 802/2016 e 2.361/2018, todos do Plenário).
g) Credenciamento (Acórdão nº 351/2010-Plenário).;
h) Adjudicação por itens como regra geral no sistema de registro de preços (Acórdão nº 737/2015-Plenário).
i) Uso do sistema de registro de preços para serviços comuns de engenharia, em que a demanda pelo objeto é repetida e rotineira (Acórdão nº 3.605/2014-Plenário).
j) Diferenciação entre reajuste e repactuação na contratação de serviços contínuos (Acórdão 1.827/2008-Plenário).
k) Contratação integrada a partir de elementos oriundos de anteprojeto e projeto com nível de detalhamento de projeto básico, com possibilidade de modificação pela contratada (Acórdão nº 2.745/2013-Plenário).
l) Matriz de riscos (Acórdão nº 1.510/2013-Plenário).
Proximidade da nova lei com o regime jurídico das concessões e parcerias público-privadas
A nova Lei de Licitações possui vários pontos de contato com as leis de concessões públicas e parcerias público-privadas. Essa incorporação de institutos dos referidos regimes é muito bem-vinda, na medida em que há uma maior delegação dos riscos supervenientes à iniciativa privada, que passa a ter maior liberdade para executar os objetos contratados incorporando sua natural eficiência no desempenho dos misteres contratuais. Entre os institutos inspirados nas leis de concessões públicas e de parcerias público-privadas, ressaltam-se os seguintes:
a) Procedimento de manifestação de interesse (PMI).
b) Diálogo competitivo.
c) Serviços e fornecimentos contínuos.
d) Contratos de eficiência.
e) Fornecimento e prestação de serviço associado.
Proximidade da nova lei com o RDC
A nova lei incorporou várias inovações trazidas pelo RDC, a saber, a inversão e “desinversão” de fases, o orçamento sigiloso, a contratação integrada, a matriz de riscos, a fase de lance (aberta, fechada ou híbrida), a remuneração variável, entre outras.
Principais novidades
As principais novidades do novo regime de licitações e contratos são as seguintes:
a) Contratação semi-integrada (artigos 6º, inciso XXXIII, e 46, §5º).
b) Elaboração, na forma de regulamento, de plano de contratações anual (artigo 12, inciso VII).
c) Disciplina rígida da fase preparatória da licitação.
d) Definição de critérios rígidos para a elaboração do orçamento estimativo da contratação de bens, serviços e obras de engenharia (artigo 23).
e) Obrigatoriedade de se exigir, no edital, a implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor (artigo 25, §4º).
f) Contratação simultânea (artigo 49).
g) Controle prévio de legalidade dos atos praticados na fase preparatória da licitação (artigo 53).
h) Credenciamento (artigo 79).
i) Obrigatoriedade de constar dos contratos os critérios e a periodicidade da medição, quando for o caso, e o prazo para liquidação e para pagamento (artigo 92, inciso VI).
j) Possibilidade de exigência de seguro-garantia com cláusula de retomada (performance bond) (artigo 101).
k) Fornecimento e prestação de serviço associado (artigo 113).
l) Possibilidade de utilização de meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias (artigo 151).
m) Tipificação de infrações administrativas sujeitas a sanção (artigo 155).
n) Disposições sobre o controle das contratações públicas (artigos 170 e 171).
o) Vinculação dos demais aos órgãos de controle, que deverão orientar-se pelos enunciados das súmulas do Tribunal de Contas da União (artigo 172).
p) Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) (artigo 174).
q) Deslocamento das disposições sobre crimes em licitações e contratos administrativos para o Código Penal (artigo 178).
r) Possibilidade de escolher entre usar o regime licitatório antigo ou o novo, a cada licitação, durante o período de dois anos da publicação da nova lei (artigo 191).
Aspectos negativos da nova lei
Não obstante os aspectos positivos do novo regime, que, conforme visto, incorporou inovações e consolidou a disciplina das diversas normas em uma só, a nova lei apresenta um aspecto passível de crítica em sua estruturação: o seu caráter bastante analítico. Essa concepção detalhista acaba indo de encontro a vários princípios eleitos pela própria legislação, tais como a eficiência, a economicidade e a celeridade, na medida em que aumenta a burocracia e, por conseguinte, os custos administrativos para os participantes, com reflexos nos preços de suas propostas e no tempo demandado para a conclusão do certame.
A quantidade de procedimentos e formalismos a cumprir também impõe custos para o próprio poder público, que deve compor uma estrutura administrativa, de recursos humanos e materiais, compatível com o rigor formal exigido nas diversas etapas do procedimento de licitação, sem contar a carga de treinamento que deve impor ao seu quadro funcional. Não se nega que a disciplina analítica da nova lei teve o propósito de reduzir os espaços de incerteza para o agente de contratação, no afã de minimizar a ocorrência de erros, na busca da melhor satisfação do interesse público. Porém, essa concepção acaba também reduzindo os espaços legítimos de inovação e experimentação por parte dos gestores, o que prejudica a própria evolução dos institutos, dentro da lógica indutiva de aperfeiçoamento do direito exposto no tópico “b”.
Conforme visto, a preservação das zonas de discricionariedade se revela útil para a decantação e assimilação das melhores práticas hauridas da experiência acumulada ao longo do tempo. As diversas situações concretas acabam sendo submetidas ao controle do TCU, que, por sua vez, tem as suas decisões submetidas ao crivo da doutrina. Todo esse processo dialético se mostra importante para a construção perene de sentidos, para a própria evolução da norma jurídica.
No que se refere aos aspectos materiais da legislação, cabe mencionar o prazo extremamente exíguo, de apenas 25 dias úteis, prorrogável por igual período, para que o tribunal de contas competente se pronuncie definitivamente sobre o mérito da irregularidade que deu causa à suspensão cautelar do certame licitatório, nos termos do artigo 171, §1º. A regra é criticável sob o ponto de vista formal, especialmente se a intenção foi reputá-la como norma geral de licitações e contratos, aplicável aos entes subnacionais. Sob essa premissa, caberia indagar se o legislador federal não adentrou o espaço legítimo de autonomia dos estados, do Distrito Federal e dos municípios ao disciplinar tema afeto à organização interna de seus órgãos e procedimentos.
Sob o ponto de vista substantivo, entende-se que o prazo estipulado poderá ser inexequível para a apreciação de processos que envolvam questões de elevada complexidade, além de prejudicar o próprio órgão licitante e a empresa interessada, quanto ao exercício do contraditório e da ampla defesa, necessários para a decisão de mérito do TCU. Por fim, não se pode olvidar a possibilidade de interposição de recursos contra a deliberação do tribunal, o que impossibilitará o atendimento ao comando existente no referido parágrafo.
A proposta também parece colidir com o princípio da razoabilidade, na sua vertente que impõe a razoável duração do processo. Por evidente, não se toleram trâmites processuais demorados, que prejudicam a administração pública e os contratados. Todavia, a busca pela rápida solução de controvérsias não pode atropelar a realidade fática dos processos, tampouco o rigor técnico que se exige na apreciação de questões muitas vezes complexas, que demandam uma extensa dilação probatória.
Outra disposição que tem despertado objeções da doutrina é o artigo 172. Conforme o dispositivo, “os órgãos de controle deverão se orientar pelos enunciados das súmulas do Tribunal de Contas da União relativos à aplicação desta Lei, de modo a garantir uniformidade de entendimentos e propiciar segurança jurídica aos interessados”. A regra parece, à primeira vista, violar o pacto federativo, caso se interprete “órgãos de controle” como os tribunais de contas e a própria estrutura de controle interno dos entes subnacionais. Sob essa perspectiva, ela adentra a autonomia dos estados e municípios e está em desacordo com o desenho do sistema de controle externo da administração pública estabelecido na Constituição, que, diferentemente do Poder Judiciário, não é caracterizado pela ideia de unicidade de jurisdição. Como é cediço, a esfera controladora convive com múltiplos espaços de competência, não havendo nenhuma hierarquia técnico-funcional entre o TCU e os demais tribunais de contas.
Por fim, cabe ressaltar um aspecto da nova lei que já se encontrava presente no regime anterior, mas que parece ter se intensificado: o excesso de disposições que visam a objetivos estranhos à busca da melhor proposta, que se inserem no bojo de outras políticas públicas, de cunho social (artigos 25, §9º, 26, 60 e 63, inciso IV). Não se pode olvidar que tais disposições visam a satisfazer interesses relevantes e envolvem louváveis intenções. Todavia, as regras acabam por aumentar os custos dos particulares que contratam com o poder público e, por conseguinte, oneram os preços contratados. Ademais, engessam a administração e geram o aumento da burocracia na licitação e na fiscalização contratual, o que acaba por prejudicar a eficiência estatal e por piorar o desempenho do governo em diversas áreas.
Considerações finais
A nova lei de licitações consolidou vários institutos e procedimentos deduzidos da jurisprudência do TCU e de leis e normas infralegais esparsas, que, por sua vez, também ressoaram vários precedentes do aludido órgão de contas. Ela praticamente unificou as modalidades licitatórias para aquisição de bens, execução de obras e prestação de serviços, submetendo-os a um procedimento detalhado, que buscou prestigiar a etapa de planejamento.
Como qualquer norma que se insere no ordenamento jurídico, é preciso aguardar certo tempo para que a comunidade acadêmica e os operadores do Direito absorvam os novos institutos e conceitos. Talvez o período de dois anos de experimentação da nova lei seja importante para a extração de sua melhor exegese. O TCU e a doutrina continuarão a exercer o seu papel de decantação do sentido da nova lei conforme os casos concretos, o que se dará a partir dos valores e dos princípios anunciados pelo regime jurídico que se inaugura, numa combinação dos métodos dedutivo e indutivo.
Benjamin Zymler é ministro no Tribunal de Contas da União, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), graduado em Engenharia Elétrica pelo Instituto Militar de Engenharia (IME).
Francisco Sérgio Maia Alves é mestre em Direito e Políticas públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), graduado em Engenharia Civil Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), auditor federal de Controle Externo no Tribunal de Contas da União e assessor de Ministro.