Cartórios abarrotados: Justiça Criminal negociada conseguirá mudar a realidade do Judiciário brasileiro?

 

Falar em Justiça Criminal negociada era um despautério tempos atrás. A ideia soava como inconcebível. Todavia, como a humanidade é dinâmica, o Direito não pode permanecer estático.

A Constituição Federal deu o primeiro passo quando previu a criação dos Juizados Especiais para causas de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, no artigo 98, inaugurando a possibilidade de negociação das penas através da transação. No entanto, da sua promulgação, em 5 de outubro de 1988, até a aprovação da primeira lei dos Juizados Especiais decorreram sete anos.

A Lei nº 9.099 somente seria aprovada em 26 de setembro de 1995, e abrangeria, inicialmente, apenas as contravenções e os ilícitos penais cujas penas atingissem no máximo um ano, segundo o artigo 61 em sua redação original: “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial” (redação original da Lei nº 9.099, de 1995, revogada pela Lei nº 11.313, de 2006). Era pouco, mas era o começo.

A Lei dos Juizados Especiais trazia, também, o instituto da suspensão condicional do processo, este com abrangência mais ampla, pois já incluía todos os delitos com pena mínima igual ou inferior a um ano. Segundo o artigo 89: “Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)”.

A diferença entre utilizar pena mínima ou máxima é gritante. Pena máxima de um ano abrange apenas os ilícitos de penas diminutas; mas pena mínima de um ano atinge um rol bastante significativo de infrações de média gravidade, muitos crimes patrimoniais recorrentes no cotidiano do foro.

Assim, enquanto a possibilidade de transação da pena (artigo76 da Lei nº 9.099, de 1995) ficava restrita às contravenções e aos delitos menores, a suspensão condicional do processo podia ser aplicada em várias hipóteses de crimes patrimoniais sem violência, atingindo um universo de abrangência bastante significativo (artigos 155, caput, 168, caput, 171, 180, caput, do Código Penal, entre inúmeros outros).

A ideia de que com as novas medidas seria possível reduzir o número de processos, no entanto, se mostrou, ao menos no Estado de São Paulo, extremamente equivocada. A Polícia Civil, por falta de funcionários, havia deixado de instaurar inquéritos para os pequenos delitos e, agora, com a criação do termo circunstanciado (artigo 69) se viu estimulada a agir. O volume de procedimentos criminais aumentou exponencialmente. A quantidade de procedimentos cresceu em lugar de diminuir. A Justiça passou a cuidar de um número maior de causas e a estar mais presente na vida das pessoas.

A morosidade, todavia, permaneceu; pois, embora os Juizados tenham nascido céleres, algum tempo depois a taxa de congestionamento se tornou expressiva. O novo procedimento trouxe um ganho de rapidez e eficiência, mas não na medida das expectativas.

Alguns anos depois, as infrações de menor potencial ofensivo tiveram seu âmbito de abrangência ampliado de um para dois anos, inicialmente pela Lei dos Juizados Especiais Federais, Lei nº 10.259 de 12 de julho de 2001, e, posteriormente, pela Lei nº 11.313, de 2006, que deu não redação ao conceito de delitos de menor potencial ofensivo. No artigo 61: “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa” (Lei 9.099, com a Redação dada pela Lei nº 11.313, de 2006).

A Lei do Crime Organizado (Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013), trouxe uma grande novidade: a delação premiada; e acabou criando hipótese singular de Justiça negociada, de abrangência restrita, mas de grande importância. O instituto da delação premiada ganhou as manchetes da imprensa em grande escala, e popularizou a ideia de negociação na Justiça Criminal. Aquilo que outrora era visto como inviável hoje é percebido como uma realidade e uma necessidade.

O projeto, encaminhado ao Congresso pelo Ministro Sergio Moro recebeu na Câmara dos Deputados a identificação como PL nº 882, de 2019, e tinha duas possibilidades de acordo ou Justiça negociada: o acordo de não persecução penal (criado pelo CNMP com a Resolução 181, de 2017) e o acordo de aplicação imediata de penas, inspirado na plea bargain, instituto de larga aplicação nos Estados Unidos da América.

O primeiro atingiria os crimes cujas penas se limitassem a 4 anos de privação de liberdade (vide a redação do artigo 28-A do CPP, proposta no PL nº 882-CD de 2019), e dar-se-ia na fase pré-processual, antes do oferecimento da denúncia. Havendo descumprimento do acordo, o Ministério Público oferece a denúncia e o processo prossegue seu andamento usual. Havendo cumprimento, extingue-se a punibilidade e o agente permanece primário.

No acordo para aplicação imediata de penas (vide a redação do artigo 395-A do CPP, proposta no PL nº 882 de 2019), a negociação ocorreria no curso do processo e poderia abranger todo tipo de crime. Com a confissão, o réu dispensaria o Estado de produzir provas de sua culpabilidade, o processo encerrar-se-ia de modo mais célebre e o acusado ganharia uma redução significativa por isso.

O Congresso Nacional, no entanto, não aprovou a plea bargain no âmbito da nova lei que deve ser publicada nos próximos dias. A proposta de aplicação imediata de penas, através de negociação, encontrou resistência, gera receios, e assim, não foi aprovada. Não desta vez, mas deverá vir num futuro próximo. Traz muitos ganhos: de eficiência, celeridade, e até de Justiça se bem aplicada (embora exija profissionais preparados, e uma nova cultura dos operadores do Direito).

Rejeitada a proposta de plea bargain, o Congresso decidiu ampliar o âmbito de abrangência dos acordos de não persecução, e não se restringiu ao crime, mas também permitiu os acordos nos casos de improbidade.

O artigo 3º do PL nº 6341, de 2019, estabelece inúmeras alterações no Código de Processo Penal, e cria o artigo 28-A onde estabelece que os acordos de não persecução penal serão permitidos nas hipóteses de crimes “sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”, o que abrange enorme gama de crimes patrimoniais e outros delitos. Só não será mais eficiente porque não atinge réus reincidentes e criminosos habituais, “exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas” (§ 2º, inciso II), nem permite a execução forçada da pena, pois, na hipótese de descumprimento do acordo, o Ministério Público deverá oferecer denúncia (§ 10 do mencionado artigo).

Aproveitando as ideias das Resoluções nº 179 e  nº 181 do CNMP (ambas de 2017), a Câmara dos Deputados trouxe para o pacote anticrimes, também, a possibilidade de acordos nos casos de improbidade administrativa. O artigo 6º do PL nº 6341, de 2019, traz alterações na Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que trata do enriquecimento ilícito de agentes públicos e das lesões ao patrimônio público.

Aqui, haverá forte contestação à constitucionalidade do dispositivo diante dos termos do § 4º do artigo 37 da Constituição Federal: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

Também, a impossibilidade de negociar o valor do prejuízo a reparar deve causar dificuldade para a realização desses acordos, pois, haverá hipóteses em que a estimativa da Promotoria pode estar muito além daquilo que o investigado reconhece como devido.

De qualquer maneira, embora ainda esteja sujeito a muita polêmica e, inicialmente, talvez, poucos efeitos práticos; o certo é que possibilitar os acordos em matéria de patrimônio público pode apontar um caminho para a solução dos graves problemas que enfrentamos nesta área.

É óbvio que muitos casos de corrupção não permitirão apenas o mero acordo com devolução do dinheiro e multa de 20% como previsto no projeto aprovado: “Art. 17-A O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução cível, desde que, ao menos, advenham os seguintes resultados: I – o integral ressarcimento do dano; II – a reversão, à pessoa jurídica lesada, da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados; III – o pagamento de multa de até 20% do valor do dano ou da vantagem auferida, atendendo a situação econômica do agente. § 1º. Em qualquer caso, a celebração do acordo levará em conta a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, na rápida solução do caso. § 2º. O acordo também poderá ser celebrado no curso de ação de improbidade” (PL nº 6341, de 2019, artigo 6º).

Casos em que a dilapidação do patrimônio público é reiterada ou envolve somas extremamente relevantes quiçá não permitam o acordo; mas o novo texto legal permitirá excluir dos processos judiciais àqueles casos de valor menos significativos, e àqueles decorrentes de lesão por ação culposa do agente.

O projeto aprovado envolve inúmeras alterações na legislação, as quais exigem avaliação e debates por partes, pois, há avanços e também diversos retrocessos. Muitas novidades. De forma que aqui registramos apenas as primeiras impressões acerca dos acordos de não persecução, os quais representam novidades significativas para os nossos sistemas processuais.

Esperemos que possam trazer ganhos de celeridade, eficiência e maior Justiça, ao permitir que o investigado possa reconhecer a culpa apenas nos limites do que ela efetivamente tenha ocorrido. Resta saber se os operadores do Direito conseguirão extrair ganho de qualidade para a Justiça, pois o enorme número de ações penais em curso tem trazido evidente perda de qualidade na solução dos conflitos: o tempo médio despendido para a solução das causas caiu abruptamente, levando a Justiça a imprimir um ritmo de decisões robotizadas, sem a atenção necessária para a individualização da hipótese.

Esperemos que as mudanças permitam que se consiga a solução dos conflitos; e não apenas a mera solução dos processos.

 

Ricardo Prado Pires de Campos é presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático e mestre em Direito Processual Penal.