Fiz meu primeiro controle difuso de constitucionalidade no dia 6 de outubro de 1988, conforme relato no livro 30 anos de Constituição em 30 julgamentos. [1] Nesses mais de 30 anos, tenho lutado pela efetivação dos preceitos e princípios da mais completa Constituição já aprovada no mundo contemporâneo. Desconheço outra mais detalhada, garantística e até mesmo dirigente no campo social.
Sexagenário, tenho um rol de lutas desse quilate, desde a prática como promotor e procurador de Justiça por 28 anos, assim como no campo da doutrina, por meio de dezenas de obras — todas apontando para uma adequada hermenêutica da Constituição. Uma das lutas mais ferrenhas que travamos foi a do artigo 283 do CPP (presunção da inocência), conforme a história recente mostra.
Mas há lutas cujo resultado só aparece muitos anos depois. Permito-me, hoje, revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição do processo penal, reconstruindo (um pouco) a história institucional de um dispositivo do CPP.
1. Corria o ano de 2008…
Falo do artigo 212, em vigor desde 2008. Já no dia seguinte, passei a questionar, como procurador de Justiça, os processos nos quais o juiz fazia as perguntas, como se a o dispositivo nada dissesse. Lembremos o dispositivo: “As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”. O parágrafo único do dispositivo estabelece que, “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”.
Muitos doutrinadores do Processo Penal deram suporte à interpretação (equivocada) de que nada havia mudado no campo prático. Vejam essa doutrina que auxiliou para a inaplicabilidade do art. 212. Na verdade, Guilherme Nucci (Cf. Código de Processo Penal comentado. 8 ed., 2008, pp. 479-480), logo que saiu a lei, sustentou aquilo que o Poder Judiciário queria ouvir (v.g. STJ – HC 121215/DF DJ 22/02/2010), isto é, que a “inovação [do artigo 212 do CPP], não altera o sistema inicial de inquirição, vale dizer, quem começa a ouvir a testemunha é o juiz, como de praxe e agindo como presidente dos trabalhos e da colheita da prova. Nada se alterou nesse sentido”.
Observe-se que o STF citou muitas vezes a doutrina de Luís Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da lei de trânsito. RT, 2008, p. 302), que disseram: “A leitura apressada deste dispositivo legal pode passar a impressão de que as partes devem, inicialmente, formular as perguntas para que, somente a partir daí, possa intervir o juiz, a fim de complementar a inquirição. Não parece se exatamente assim. […] Melhor que fiquemos com a fórmula tradicional, arraigada na ‘práxis’ forense […]”. Como os leitores perceberão, Juarez Tavares e eu fizemos uma “leitura apressada” (sic)… só que correta.
De todo modo, é possível perceber como a doutrina auxilia a não aplicação de dispositivos que garantem direitos. Esta é apenas a ponta do iceberg da dogmática processual.
Sigo. Exarei centenas de pareceres colocando como preliminar a nulidade do processo, face ao descumprimento do artigo 212. Sim, porque 100% dos feitos vinham com esse defeito. Lembro de uma conferência de encerramento do simpósio da ABDConst nos idos de 2012, em que o tema foi esse. Devo ter escrito mais de dez textos abordando o artigo 212 e sua força normativa.
Escrevi com André Karam Trindade artigo clamando pela aplicação plena e garantista do artigo 212. Isto porque, depois de (então) dezenas de pareceres pugnando pela nulidade absoluta dos feitos, perdia por causa da aplicação da tese de que “tem de provar o prejuízo”, como constou, por exemplo, em voto da min. Cármen Lúcia em um caso de Recife, no qual o réu fora condenado a mais de 9 anos, sendo que a prova foi feita pelo juiz.
Os tribunais tiveram idas e vindas. Há exceções. Veja-se que já em 2010, na 6ª Turma do STJ, por voto da relatora ministra Maria Thereza de Assis Moura, acatando os argumentos do grande procurador da República Juarez Tavares, firmou a plena eficácia do dispositivo. Juiz só faz perguntas complementares.
2. E o tempo passa…
Dez anos depois, escrevi texto lamentando que o STF ainda não firmara a efetividade plena do artigo 212. Vejo, agora, passados tantos anos, que tínhamos razão os que defendiam a tese de que o artigo 212 foi (e é) importantíssima conquista. Já há decisões do STF acatando a norma correta a ser extraída do texto do artigo 212.
Quantos acusados foram vitimados nesses anos todos pela falta de aplicação de um dispositivo garantidor como o artigo 212?
Veja-se que ainda agora causa surpresa anulações de processos por incumprimento do artigo 212. Isso mostra a crise paradigmática do Direito. Para nós (Juarez e eu — e peço desculpas pelo esquecimento de outros parceiros), já no dia seguinte da aprovação do dispositivo, anular processos era obrigação. Passados tantos anos, não devia causar espécie.
Este texto vai em homenagem a Juarez Tavares e aos juristas que defenderam (não foram muitos, é verdade), desde o primeiro dia, a plena aplicação do artigo 212.
Afinal, para muitos de nós, complementares sempre foram (e são) perguntas que vêm depois. Aliás, a questão é até mais profunda. Afinal, a lei fala que as perguntas que podem ser formuladas pelo juiz devem se restringir a pontos não esclarecidos. Ademais, parece que, em determinados casos, o STF continua batendo na tecla da exigência de “provar o prejuízo”. Como se faria isso?
Uma pergunta: o juiz viola o art. 212, condena o réu a 10 anos e esse terá que provar que foi prejudicado? Coisas da dogmática jurídica (criterialista) do Brasil.
[*] Cf. 30 anos da CF em 30 julgamentos: uma radiografia do STF. SP, Gen, 2018.
Lenio Luiz Streck é jurista e professor de Direito Constitucional.