A mobilização causada pela pandemia do coronavírus em escala global se associa intimamente a um mundo em que as fronteiras nacionais não dão conta de manter fora de seus muros os indesejados e, consequentemente, as pestes que supostamente carregam em seus corpos. O contexto de disseminação da epidemia, associado à intensificação da mobilidade humana, levou os governantes a tomarem medidas fortemente restritivas de circulação de pessoas, sendo a que tem sido considerada como mais eficaz a de isolamento social. Os países fecham as fronteiras nacionais e impedem a entrada de estrangeiros em uma luta contra um inimigo invisível.
A proposta destas linhas é de avançar algumas reflexões sobre necropolítica e a gestão da crise no Brasil. O objetivo é demonstrar que a gestão da pandemia deve ser compreendida em um quadro mais amplo de funcionamento do capitalismo neoliberal contemporâneo, para o qual não bastaria apenas o direcionamento das condutas através do controle dos corpos, mas mais propriamente, decidir sobre aqueles que podem viver e os que devem ser deixados morrer.
A necropolítica estaria relacionada às formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte, realizando uma reconfiguração profunda nas relações de resistência, sacrifício e terror nas sociedades contemporâneas (MBEMBE, 2003, 2016). Autores críticos do neoliberalismo reconhecem o sistema como incompatível com a luta contra a desigualdade. Sustentam que as políticas neoliberais seriam políticas de morte, seja pela atuação da força policial ou porque deixam aqueles que não são “úteis” ao sistema morrer em virtude de políticas de austeridade, em nome do suposto bom funcionamento da economia. Se deixa morrer, ou se matam, os mais vulneráveis.
No Brasil dos últimos anos temos assistido aos cortes nos orçamentos da saúde, educação, da previdência, a precarização das relações de trabalho e enfraquecimento dos sindicatos. Ocorrem cortes sistemáticos de recursos e bolsas das universidade. Reduções de orçamento afetam a pesquisa e o Sistema Único de Saúde. Assistimos à autorização de comercialização de quantidades alarmantes de agrotóxicos proibidos em diversos países. Quando não se mata a tiro a população, se deixa morrer envenenada ou em acidentes de trânsito, à míngua, sem acesso aos tratamentos de saúde, ou na ignorância e sem possibilidades de ascensão social.
Aqui, a necropolítica tem sido acompanhada da criação de uma realidade paralela, da negação da ciência e de valores que se buscavam consolidar relacionados à valorização dos direitos humanos, às relações de gênero e busca pela igualdade, ao respeito aos povos tradicionais, indígenas, negros e quilombolas, respeito à educação, aos professores e estudantes. Assistimos também a um processo de depreciação das artes, da filosofia, da história, das ciências em geral e ciências sociais em particular em prol de uma proposta fundamentada no fanatismo religioso, conservadorismo e na militarização do ensino e das escolas.
Durante a crise provocada pela pandemia de coronavírus no Brasil, os mais vulneráveis, moradores em situação de rua ou moradores de favelas, completamente à deriva dos discursos oficiais, se perguntam como lavar as mãos quando frequentemente não têm sequer água disponível, ou de que modo fazer o isolamento social em habitações onde coabitam mais de dez pessoas em aglomerados populacionais onde o distanciamento social é difícil, senão impossível.
A propagação rápida e silenciosa da pandemia, chamada pelo eufemismo de “gripezinha” por parte do ainda presidente, coloca em alerta os especialistas que compreendem a dimensão da gravidade da situação. Cada vez mais surgem suspeitas de subnotificação de casos de contaminação e de mortes.
Tanto as ações quanto as omissões do governo federal, em especial as do atual chefe do Executivo, ridicularizado pela imprensa internacional, podem ser entendidas como parte de uma política perversa mais ampla de deixar morrer os mais vulneráveis, os pobres, os mais idosos, aqueles que não são considerados úteis ou produtivos, que face às circunstâncias já se encontram relegados à condição de “mortos vivos”.
Daniel Granada é doutor em Etnologia e História pela Université de Paris Ouest / University of Essex e professor do Departamento de Ciências Naturais e Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina – Curitibanos.
Referências
CLARA, Valverde G. De la necropolítica neoliberal a la empatía radical: Violencia discreta, cuerpos excluidos y repolitización (Espanhol) Capa Comum – 17 nov 2015.
https://www.brasildefato.com.br/2019/07/19/neoliberalismo-leva-a-morte-as-pessoas-que-nao-sao-lucrativas-diz-escritora/.
MBEMBÉ, Achille. NECROPOLÍTICA*- biopoder, soberania, estado de exceção política da morte. Arte & Ensaios, revista do ppgav/eba/ufrj | n. 32 dezembro, 2016. https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169.
MBEMBÉ, J.-A. and Libby Meintjes. “Necropolitics.” Public Culture, vol. 15 no. 1, 2003, p. 11-40. Project MUSE muse.jhu.edu/article/39984.