O processo criminal tem como ator principal o réu. Em qualquer obra jurídica contemporânea, essa é uma afirmação indiscutível. As normas de direito material visam regular a atuação do poder punitivo do Estado em face do réu. As normas processuais buscam garantir que todo o rito – encenação – respeite os direitos do réu enquanto se busca aplicar o poder punitivo. O roteiro foi pensado e idealizado nessa forma. Essa é a dramaturgia, ou deveria ser.

Mas, aparentemente, a prática processual penal – aquela que se dá sobretudo nas salas de audiência (cenário) – fugiu do teatro clássico e passou para uma esquizofrênica Commedia dell’arte. O improviso, a confusão de papéis entre os atores e sobretudo a usurpação do papel principal por um ator mais vaidoso e egocêntrico, que, na verdade, se torna diretor da sua própria atuação e dos demais é a marca dessa peça.

Inicia-se com um cenário estático: não haverá movimento – o jogo cênico é mínimo. Os personagens desempenharão suas funções em lugares marcados, sem liberdade de transitar livremente, cada um recebendo a iluminação que lhe é devida, ao seu tempo. A linguagem cenográfica fala: personagens periféricos ficam mais às bordas do palco. Já os personagens mais importantes estarão ao centro, para que todos possam vê-lo.

E a peça tem início. No lugar de três sinais que indicam a abertura das cortinas, uma voz mecanizada anuncia a próxima audiência. Abrem-se as cortinas e você encontrará, quase sempre, no primeiro ato, um réu que teve seu protagonismo roubado, e seu inseparável ator de defesa. Às vezes, quando são diversas as encenações em um único dia, o réu chega por último, quando todos os demais já estão instalados para o início da peça. E chega com certa notoriedade: escoltado por figurantes que marcham lhe escoltando, em figurinos suntuosos, sendo conduzindo até seu local marcado, muitas vezes com algemas e marca-passo nada cenográficos. Embora sua chegada represente o verdadeiro início da peça, após as apresentações iniciais, não chega a ameaçar o protagonismo todo. Apenas foi necessário que todo o elenco estivesse presente para começar o espetáculo. Sendo ele o primeiro ou último personagem no palco, é só mais um personagem.

O protagonista senta-se ao centro. Seu figurino é o mais elaborado e representa sua vaidade: vestes suntuosas, ainda que não talares. É tentador tornar-se o protagonista quando você, diretor, não está satisfeito com os bastidores. E o caminho é fácil, bastando ignorar a crítica, por mais especializada que seja, e que demonstre a fuga do roteiro. Ao seu lado estão personagens que também roubam a cena, e às vezes até disputam o papel principal, mas geralmente se conformam em servir como coadjuvantes de destaque. Tudo está completo. Podemos começar.

Ouvem-se testemunhas, apresentam-se alguns adereços e contracenam-se em um ritual que muitas vezes é repetitivo. E, por ser tão repetitivo, para que conhecer o roteiro? Volumes e volumes de papel que falam – provavelmente – de mais do mesmo? E só falam daquele infeliz ator que está ali sentado, de cabeça baixa. Sequer bom ator é: se passa por inocente muito mal! Melhor não ler, vamos de improviso e sentindo como reagir.

Para deixar mais elucidativo (?), vamos revestir a encenação com um clássico: Dom Quixote de la Mancha! Parece cair muito bem. O personagem principal é um destemido aventureiro que, por muito ler livros de cavalaria, decide-se tornar-se igualmente um herói. Tem ao seu lado um personagem fiel e escudeiro que lhe acompanha nas mais desafortunadas histórias e sente, ao seu lado, a glória de lutar contra moinhos de vento como se um dia fossem capazes de fazer parar de ventar.[1] Aqui temos nosso Dom Quixote que, por ler muitos manuais de direito, tem a firme convicção que pode fazer justiça.

No espetáculo da audiência, aventuram-se em uma parceria tão consolidada que revestida do romantismo que só cabe aos verdadeiros amigos. “Esse meu mestre, por mil sinais, foi visto como um lunático, e também eu não fiquei para trás, pois sou mais pateta que ele, já que o sigo e o sirvo, se é verdadeiro o refrão que diz: ‘diga-me com quem anda e te direi quem és’ e o outro de ‘não com quem nasce, mas com quem passa’” (Parte 2, Capítulo 10).

Chegamos ao momento da verdadeira tensão no palco: o interrogatório seria o momento em que o miserável personagem poderia galgar seu espaço na peça. É seu monólogo. Sua defesa. Mas um bom protagonista consegue fazer desse só o seu degrau para mais uma brilhante atuação de inquirição e realização da (sua) justiça! Ali é o momento em que se revela a intriga na condução do brilhantismo do Cavaleiro da Triste Figura. Em um encurralamento das ovelhas, brada sua lança e consegue extrair daquele personagem diminuto as verdades escondidas.

Vejam que mesmo na fala do réu, o diretor-juiz consegue assumir o protagonismo quando o encurrala para extrair quaisquer verdades que desejava. A peça precisa seguir sob o seu controle. Só assim haverá a consagração ao final, com os aplausos do público. Esse é outro grande problema dessa relação: o diretor-ator-protagonista, que deveria estar satisfeito com as coxias, passa a gostar da vaidade dos aplausos, e, portanto, dirige a peça ao gosto do público.

Terminado o monólogo-interrogatório daquele miserável que teve o revés de encontrar na sua frente o justiceiro Quixote, podemos avançar para o desfecho da narrativa. A justiça lhe será feita com a pena que merece, e certamente ele merece por ter feito o que fez. O que fez? Não importa muito ao certo, mas“cada um é filho das suas obras” (Parte 1, Capítulo 47). Para justificar a imposição das sanções e dos castigos, o diretor retorna à história, aos livros das leis e aos livros do direito. Isso é o de menos. Em algum lugar ele encontrará a sua teoria necessária para desconstruir os princípios que o engessavam. “Não há livro tão ruim – disse o bacharel – que não tenha algo de bom” (Parte 2, Capítulo 3).

A cena final precisa ser de um último regozijo para o nosso protagonista. Agora ele terá a honradez dos cavalheiros que vagam por aí fazendo justiça para, do alto de seu rochedo, anunciar ao miserável qual sua pena. Assim como fazem os homens de verdade, face-a-face, olhando naqueles olhos cabisbaixos para anunciar-lhe qual a sua desgraça. Mas, sem soberba o fará entender que é para o seu bem e de todos os demais. Que lhe serão dados os tratamentos cabíveis, na medida dos seus erros. E é bom que ele assim entenda, não adianta revoltar-se se foi feita a minha justiça! Aliás, deveria é ser grato por tamanha benevolência, afinal, “entre os pecados maiores que os homens cometem, ainda que alguns digam que é a soberba, eu digo que é a falta de agradecimento” (Parte 2, Capítulo 58).

Fim do último ato, toda a encenação poderá ser recomeçada. Precisa ser recomeçada. O povo clama por mais um espetáculo daquele protagonista. Nada muda, salvo o ator que teve o protagonismo roubado e a liberdade tolhida. Outro assume seu lugar, embora muito se pareça com o anterior. O público sequer irá notar a diferença. O próprio elenco quase não nota a mudança! Tem a mesma estatura, cor de pele, porta-se com o mesmo cair de ombros e rosto! Que escola de atuação incrível por sua homogeneidade. Avançamos com a cobrança do horário do fiel escudeiro para o próximo espetáculo, já que“senhor, uma andorinha só não faz verão” (Parte 1, Capítulo 13).

Pena que a leitura do Dom Quixote não foi bem apropriada por nosso protagonista, pois até o cavaleiro que luta contra moinhos de vento, no auge de seus devaneios, alerta que “a liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os homens receberam dos céus. Com ela não podem igualar-se os tesouros que a terra encerra nem que o mar cobre; pela liberdade, assim como pela honra, se pode e deve aventurar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pôde vir aos homens” (Parte 2, Capítulo 58).

 

Rochester Oliveira Araújo é mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, defensor público no Espírito Santo e membro do Núcleo de Execução Penal da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo.

 


[1] Dizem alguns que o personagem que está mais ao lado do Cavaleiro da Triste Figura é, na verdade, o Rocinante. Que poderia ser azul, e feito de papel marchê. Contudo, assim sendo, é mais provável que esse personagem seja desempenhado pela defesa do que pela acusação no processo penal.