Memória indígena: epidemias envolvem narrativas que desconsideram a versão de grupos minoritários

 

Em artigo que aborda uma epidemia na cidade de Belém, entre 1748 e 1750, Antonio Otaviano Vieira Junior, da Universidade Federal do Pará (UFPA), observa que, dos 3.061 mortos naquele episódio, apenas 35 eram considerados brancos. Os demais eram índios. Esses números despertam a reflexão sobre quem teve suas interpretações e lembranças preservadas pela história. O texto reproduzido abaixo integra uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e as Ciências Sociais publicada em conjunto pelas seguintes entidades: Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), Associação Brasileira de Antropologia (ABA),  Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM).

 


O direito de fala e de memória na epidemia

Antonio Otaviano Vieira Junior

 

Aqui estou, em março de 2020, na cidade de Belém, na Amazônia brasileira, trancado no apartamento com minha família e acuado pela Covid-19. Depois da quarentena, da estocagem de comida e do sumiço do álcool gel das prateleiras das farmácias, busquei um consolo para amparar minhas incertezas e esperanças. O encontrei no ofício que exerço, de historiador. Recuei aos anos de 1748-1750, também anos de epidemia em Belém, para estabelecer um diálogo com a atual crise epidêmica. E o ponto que destaco como historiador é: quem viveu a experiência do contágio em 1748, quem teve suas interpretações e lembranças acerca da epidemia preservadas. Num exercício de imaginação, não é de se estranhar que muitos falassem sobre a epidemia.

Falaram em diversas situações que entrecortavam o cotidiano da cidade, em conversas e reclamações que foram levadas pelo vento. Falaram na saída da igreja da Sé, após a distribuição de esmolas feitas pelo bispo ou depois dos emocionados sermões, falaram na porta do Colégio Santo Alexandre, onde os jesuítas – por conta da epidemia – vendiam carne e manteiga de tartaruga, falaram no mercado diante da alta do preço da farinha ou falaram enquanto deparavam com corpos insepultos ou poças de vômito e de sangue encontradas nas ruas enlameadas. Homens, mulheres, brancos, negros, índios, crianças, velhos, escravos, livres, locais, estrangeiros… muitos viveram e falaram da epidemia.

Embora muitos tenham falado sobre o contágio, poucos foram realmente escutados e menos ainda tiveram seus medos, pedidos e sentidos registrados pela escrita. No geral, as falas sobre a epidemia que atravessaram o tempo e alcançaram meu olhar de historiador foram escritas por juízes locais, governadores da capitania do Grão-Pará,  vereadores, proprietários de escravos índios, religiosos, conselheiros reais que viviam em Lisboa e até mesmo pelo rei português D. José I. Outras tantas pessoas foram silenciadas pelo tempo, seus sentimentos nos chegaram apenas como um leve sopro, uma espécie de lapso de quem controlava as memórias.

Numa das memórias sobreviventes, chegou-nos uma contagem dos mortos pela epidemia em foram arroladas 3.061 pessoas que morreram na freguesia (espécie de bairro de Belém) Santana da Campina. Dos mortos, apenas 35 eram considerados brancos; os demais eram índios. Números indicativos dos indígenas como a população mais atingida pela epidemia, aqueles que tiveram que fugir para a floresta com medo do contágio e com isso contaminavam suas aldeias, aqueles que mesmo doentes eram obrigados a remar pesadas canoas, plantar roças ou a caçar para seus senhores. Essa população não teve suas falas sobre a doença registradas e preservadas para o futuro – pelo menos não as encontrei. Dos índios nada ouvi (li), embora muitos deles tenham falado e sofrido com a doença.

Então, para pensarmos a epidemia de ontem, como também a de hoje, logo me veio a ideia de Michel Foucault que nos faz considerar a doença como uma construção de fala, ou seja, discursiva. Parte da existência da doença era/é produto de narrativas, das falas ouvidas e registradas. Mas, nesse processo de construção discursiva da epidemia, é importante não considerar apenas aqueles que foram/são ouvidos, mas também aqueles que foram/são silenciados. E para entender a existência narrativa da doença é estratégico entender quem fala. Assim, uma mesma epidemia pode ser considerada uma “gripezinha”, uma “pandemia” ou um “castigo dos céus”. As diferentes vozes que ecoam se aproximam e se distanciam pautadas em interesses de grupos sociais específicos, de demandas econômicas e de projetos políticos. Nos ruídos do passado, as vozes dos que mais morreram foram silenciadas.

A diferença para os dias de hoje não se resume apenas ao maior nível de alfabetizados, como também o acesso às redes sociais, que amplia o número de narrativas e narradores da Covid-19. Mesmo assim, há silêncios, alguns impostos pelas ditaduras nacionais (Coreia do Norte, por exemplo), por baixos níveis de alfabetização e de acesso à internet (como alguns países africanos, Vietnã ou vilas do interior do Brasil) ou por condições precárias de sobrevivência (moradores de rua da cidade de Nova York ou os refugiados sírios). Daqui a 100 anos, quem terá a voz registrada, como a atual pandemia será apresentada e quem será silenciado?![*]

[*] ‘O poder da cultura advém da forma poderosa com que apaga os rastros históricos de sua própria criação’. MISKOLCI, Rochard. O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX. São Paulo: Annablume, 2013, p. 13.

 


Antonio Otaviano Vieira Junior é professor titular da Faculdade de História da UFPA.