O sistema processual civil brasileiro por muito tempo foi moldado para atender à prestação da tutela jurisdicional em casos de lesões a direitos individuais. Não se previam instrumentos, seja para a tutela coletiva desses direitos, seja para a tutela de direitos transindividuais, de titularidade indeterminada, como são os denominados difusos e coletivos.

Ocorre que a sociedade atual caracteriza-se por uma profunda e substancial alteração no perfil dos direitos desde sempre conhecidos, reconhecendo-se aqueles tipicamente vinculados à sociedade de consumo e à economia de massa, padronizada e globalizada, pertencentes não mais ao indivíduo, considerado como tal, mas sim a toda coletividade (como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e os direitos dos consumidores).

O surgimento dessas novas categorias de direitos exigiu que o processo civil fosse remodelado. Com o aparecimento de normas de direito material decorrentes dos novos bens jurídicos ameaçados, foi preciso desenvolver mecanismos correspondentes de natureza processual para operacionalizar sua defesa em juízo.

Em que pese as diversas modificações legislativas, ocorridas principalmente a partir de 1985, a começar pela Lei da Ação Civil Pública, foi com a Constituição de 1988 que a revolução atingiu seu ápice. A transformação do Estado e a evolução da sociedade fizeram surgir novas situações tuteláveis, bem como a necessidade da criação de instrumentos aptos a assegurar sua proteção, afinal, o reconhecimento e a declaração de um direito no texto constitucional são insuficientes para assegurar sua efetividade. Assim é que se conceberam as chamadas “ações coletivas”.

Contemporaneamente, o tema da coisa julgada diante das ações coletivas é um dos mais polêmicos de todo o exame da “tutela coletiva”. A coisa julgada não é, conforme há muito ensina Enrico Tullio Liebman, um efeito da sentença, mas a qualidade ou autoridade que recobre seus efeitos e os torna imutáveis e indiscutíveis, sendo tal instituto um dos aspectos mais relevantes na distinção entre tutela coletiva e individual.

Ocorre que, segundo o art. 16 da LACP, na ação civil pública, a sentença “fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator”.

A presente redação do dispositivo legal decorreu da famigerada Lei nº 9.494/74, flagrantemente criada para a defesa de interesses fazendários, que, por sua vez, tem norma específica trazendo semelhante limitação, nos termos de seu art. 2-A.

Interpretação literal e conjunta dos dispositivos sugere que a coisa julgada, no âmbito da tutela coletiva, estaria circunscrita a um determinado espaço físico. Como se percebe, essa previsão, em sua literalidade, é incompatível com a regência da coisa julgada. Pensar que uma qualidade de determinado efeito só existe em porção do território, afirmam Marinoni, Arenhart e Mitidiero[1], seria o mesmo que dizer que uma fruta só é vermelha em certo lugar do país. O que os dispositivos, evidentemente, objetivam é limitar a eficácia subjetiva da sentença (e não da coisa julgada).

Aqui, é preciso recorrer aos ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho[2]quando afirma que não devemos esperar do legislador a edificação de um sistema logicamente bem construído, harmônico e cheio de sentido. Essa tarefa difícil está reservada, única e exclusivamente, ao cientista, munido de seu instrumental epistemológico, transformando a multiplicidade caótica de normas numa construção congruente. A interpretação, muitas vezes, não poderá ser literal, sob pena de se construir um sistema jurídico verdadeiramente esquizofrênico.

O leitor mais atento, contudo, já pôde perceber que a problemática trazida pelos artigos ora objetos de análise se desenvolve para muito além de atecnicas legislativas e confusões conceituais.

Nos termos do art. 81 do CDC, existem três diferentes espécies de direitos tutelados pelo microssistema coletivo em geral. São eles: a) os direitos difusos; b) os direitos coletivos em sentido estrito; c) os direitos individuais homogêneos.

Os direitos difusos são os direitos subjetivamente transindividuais, de natureza materialmente indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e indetermináveis, ligadas por circunstâncias de fato.

Os direitos coletivos em sentido estrito, por sua vez, são os direitos igualmente transindividuais e de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas indeterminadas (embora determináveis), ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.

Como se percebe, os direitos difusos e coletivos são direitos “essencialmente coletivos”, nas clássicas lições de Barbosa Moreira. Por isso inconcebível a limitação da tutela oferecida a estes direitos a certos parâmetros territoriais.

A própria indivisibilidade do direito transindividual demonstra a incompatibilidade lógica e ontológica de limitação territorial com essas espécies de direitos. Basta imaginar um direito difuso, de toda a coletividade (como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado), sendo limitado a apenas um determinado território (em decisões proferidas em processos coletivos decorrentes da tragédia de Mariana ou Brumadinho, por exemplo), o que feriria de morte a própria ideia de indivisibilidade que é essencial aos direitos transindividuais.

Ocorre que os direitos individuais homogêneos são, em verdade, direitos individuais, perfeitamente atribuíveis a sujeitos específicos. Os direitos homogêneos são, por esta via exclusivamente pragmática, transformados em estruturas moleculares, não como fruto de uma indivisibilidade inerente ou natural, mas por razões de facilitação de acesso à justiça, pela priorização da eficiência e da economia processuais.

Assim, a afirmação de Barbosa Moreira segundo o qual os direitos individuais homogêneos podem ser classificados como “acidentalmente coletivos” deve ser entendida com reservas. É classificação decorrente não de um enfoque material do direito, mas sim de um ponto de vista processual. O “coletivo” diz respeito apenas ao modo como aqueles direitos podem ser tutelados.

Tais afirmações são reforçadas pelas lições de Teori Zavascki[3] quando afirma que não se deve confundir direito coletivo com defesa coletiva de direitos (individuais). Tal distinção, inclusive, dá nome a sua mais célebre obra: “Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos”.

Portanto, os direitos individuais homogêneos caracterizam-se por serem direitos típica e fundamentalmente individuais. Trata-se de simples opção legislativa, no sentido de otimizar a resposta jurisdicional que se oferece a situações de direitos individuais de massa.

Sendo assim, em mais uma esforço hermenêutico, somente é possível conferir algum sentido e aplicabilidade ao texto legal no âmbito dos direitos individuais homogêneos, interpretando o art. 16 da LACP à luz do art. 2-A da Lei nº 9.494/97. Afinal, nesse caso, o objeto do litígio são direitos individuais e divisíveis, formados por uma pluralidade de relações jurídicas autônomas, que comportam tratamento separado, sem comprometimento de sua essência material.

Após tantas críticas apresentadas e tendo algumas delas sido superadas, resta saber: seriam tais dispositivos legais constitucionais?

Ao prever e garantir os direitos coletivos e individuais violados em massa, implicitamente a Constituição exigiu do legislador ordinário o desenvolvimento de mecanismos eficientes de proteção desses interesses. O direito transindividual não pode ser confundido com o direito individual e, mesmo este último, diante das peculiaridades da sociedade de massa, merece tratamento diferenciado.[4]

Há quem sustente, como Nelson Nery e Rosa Maria[5], em que pese discordemos veementemente, a tese de que a modificação legal tenha sido ineficaz por ter modificado dispositivo que já não mais se encontrava em vigor.

Segundo esse entendimento, a partir do momento em que o CDC passou a regulamentar de forma exaustiva o tema da coisa julgada na tutela coletiva por meio de seu art. 103, o art. 16 da LACP, com redação anterior, que não trazia qualquer limitação territorial ou subjetiva, teria sido tacitamente revogado. Como o CDC é de 1990 e a mudança do art. 16 para a atual redação deu-se em 1997 (Medida Provisória 1.570/97), a modificação teria sido ineficaz e, portanto, inaplicável.

Não concordamos com esse entendimento porque, para ampará-lo, seria necessário afastar a ideia de microssistema coletivo, com interação e diálogo (e jamais revogação, salvo se expressa) de leis que versam sobre processo coletivo.

Sustentam os autores, ainda, que o “Presidente da República editou [a atual redação do art. 16 da LACP], por meio de medida provisória, sem que houvesse autorização constitucional para tanto, pois não havia urgência (o texto anterior vigorava há doze anos, sem oposição ou impugnação)”.

Em que pese mais sedutor tal argumento, entende o STF que a definição do que seja relevante e urgente para fins de edição de medidas provisórias consiste em um juízo político de competência do Presidente da República, controlado, em regra, pelo Congresso Nacional. Desse modo, salvo em caso de “notório abuso”, o Poder Judiciário não deve se imiscuir na análise dos requisitos da MP, quanto mais décadas após sua edição.

Não obstante, todos os esforços hermenêuticos e argumentativos anteriores para salvar os dispositivos legais foram em vão. A verdade é que as regras não sobrevivem a um controle de validade substancial das normas a partir da Constituição, por: a) ofenderem a isonomia; b) já que fomentam o conflito lógico e prático de julgados; c) além de comprometerem o acesso à justiça; d) com ressonância na própria eficiência da prestação jurisdicional; e) e estarem em desacordo com o princípio hermenêutico da máxima efetividade; f) em violação ao princípio da vedação à proteção insuficiente; g) ou, em última análise, por afrontarem o próprio espírito e características mais elementares da tutela coletiva.

A exigência de diversas ações coletivas a respeito da mesma circunstancia fático-jurídica poderá gerar decisões contraditórias. E, uma vez existindo várias decisões de diferente teor, também restará maculado o princípio da isonomia, com potencial tratamento jurisdicional distinto para sujeitos pela simples razão de serem domiciliados em diferentes localidades.

Mais que isso, limitar a abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los. De outro lado, contribui para a multiplicação de processos, a sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser suficiente, em flagrante atentado ao princípio da eficiência.

Por isso, é de precisão cirúrgica Ada Pellegrini Grinover[6] quando constata que “no momento em que o sistema brasileiro busca saída nos precedentes vinculantes, o menos que se pode dizer do esforço redutivo do Executivo é que vai na contramão da história”. O leitor há de convir: ou a demanda é coletiva, ou não o é; ou a coisa julgada é erga omnes, ou não o é.

Aliás, o objetivo do dispositivo de limitar a abrangência dos efeitos da sentença nem em demandas individuais se prestaria. Ora, imagine se uma sentença de divórcio proferida por Juiz de São Paulo não pudesse valer no Rio de Janeiro, continuando os (ex?) cônjuges casados nesta comarca.[7]

A tutela coletiva tem origem constitucional, em regras inúmeras, coroadas na cláusula que concebe a garantia do acesso à Justiça (art. 5º, inciso XXXV), exigindo-se que se oferte, àquele que se diz titular de um direito, mecanismos adequados de proteção, ou seja, meios de tutela efetivamente predispostos e consentâneos para a realidade do direito material específico. A garantia exige, portanto, a concepção de instrumentos hábeis a lidar, de maneira completa, com esses interesses.

Não há dúvidas, portanto, em que pese a omissão doutrinária acerca do tema, de que a Ação Civil Pública possui natureza jurídica de verdadeira garantia fundamental, ou seja, de instrumento constitucional que assegura e promove os direitos fundamentais, igualmente constitucionais.

No âmbito jurisprudencial, o STJ vinha oscilando no que diz respeito à aplicabilidade dos artigos em tela. Finalmente, nos embargos de divergência no REsp nº 1.134.957/SP, a Corte Especial, em sessão ocorrida em 2016, consagrou seu atual e dominante entendimento, consolidando que a sentença coletiva não deve ter abrangência restrita à competência territorial do órgão julgador, afastando-se a aplicabilidade do art. 16.

Não obstante, a matéria segue pendente de enfrentamento pelo STF no RE nº 1.101.937/SP, com voto do Ministro Relator Alexandre de Moraes no sentido da plena eficácia e constitucionalidade dos dispositivos analisados.

Respeitosamente, os efeitos erga omnes ou ultra partes das decisões proferidas no âmbito da tutela coletiva serão de âmbito nacional, regional ou local, não conforme a arbitrária e ilegítima vontade dos poderes Executivo e Legislativo, nem mesmo de irrefletidas interpretações pretorianas, mas sim conforme a extensão de dano ou referente ameaça, bem como a qualidade dos direitos postos em Juízo.

Percebe-se que, ao longo desse trabalho, em cada tentativa de “salvar” as normas, o que se buscou, em verdade, foi fortalecer a desconstrução delas que estaria por vir. Ou seja, nem mesmo com todo esforço hermenêutico ou argumentativo é possível concordar com a incidência, seja indiscriminada, seja mitigada, desses famigerados dispositivos legais. Fique, portanto, o alerta aos desavisados: ou a demanda é coletiva, ou não o é; ou a coisa julgada é erga omnes ou não o é.

 

 

[1] MARINONI, Luiz Gulherme et al. Novo Curso de Processo Civil. 3. ed. V. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 522.

[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 219.

[3] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela dos direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 38.

[4] MARINONI, opus citatum, p. 475

[5] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 1.473.

[6] GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação civil refém do autoritarismo. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9171-9170-1-PB.htm>. Acesso em: 4 de julho 2019.

[7] NERY JUNIOR, opus citatum, p. 1.475.

 


Luís Henrique Linhares Zouein é pós-graduado em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro